Nosso corpo é a nossa jurisdição? Entenda o que pensa a Justiça sobre o machismo na hora de interpretar as leis.
Um homem agrediu a própria filha de 13 anos com fios elétricos e cortou seus cabelos como forma “de proteção”. O motivo? Ela não era mais virgem. Ele foi absolvido pelo juiz que garantiu que a conduta não era criminosa, mas um “exercício do direito de correção”.
Outro homem foi detido após ejacular em uma mulher dentro de um ônibus na Avenida Paulista. Ele foi liberado sob o argumento de que “não houve constrangimento”. No dia seguinte, o mesmo homem foi flagrado esfregando o pênis em outra mulher dentro do transporte público. Era a 17ª passagem dele pela delegacia por situações similares.
O jovem estudante de medicina é acusado de estupro. Ele foi absolvido após o juiz justificar sua decisão com base na “inconsistência das declarações da ofendida”. O mesmo estudante também é denunciado por outros seis casos de violência sexual.
São inúmeros os casos de violência contra a mulher – Brasil é o 5º país mais violento do mundo contra elas, de acordo com o Mapa da Violência. Os casos acima citados são apenas alguns dos exemplos.
Eles variam o contexto em que ocorreram, a forma como a violência foi submetida e a relação dos agressores com as vítimas. Em comum, compartilham da sensação de impunidade e da dificuldade de serem enquadrados como crimes de gênero.
Para entender porque isso acontece, o HuffPost Brasil fez três perguntas a Maria Gabriela Manssur, procuradora do Ministério Público de São Paulo, que trabalha com o núcleo de combate à violência contra mulher e Maíra Zapater, advogada e especialista em direito penal.
Qual a dificuldade em julgar crimes de gênero?
Para Gabriela Manssur, coordenadora do Núcleo de Combate à Violência contra a Mulher do Ministério Público de São Paulo, o Brasil é um País conservador e, nos últimos tempos, tem vivido uma crise econômica, democrática e de violência que se reflete nos altos índices de crimes de gênero e como os casos repercutem.
“O conservadorismo não está contra os direitos das mulheres, mas ele não se preocupa em fazer valer direitos conquistados pelos movimentos sociais e que são necessários para se evitar a violência. Tanto é verdade que hoje temos um desmantelamento das políticas para as mulheres. E isso reflete muito sobre o fato de que nem ao menos podemos discutir assuntos em alguns órgãos”, argumenta a promotora.
O machismo tem influência nas decisões jurídicas?
Maíra Zapater é especialista em direito penal e considera a absolvição do pai que violentou a filha um caso de “machismo flagrante” no Judiciário. Ela explica que o juiz de Guarulhos, em sua sentença, utiliza uma interpretação do Código Penal ultrapassada.
“De fato, existe um artigo sobre uma pessoa que pode não ser punida em uma ação que em princípio seria crime, mas que naquele contexto está no direito dela. Mas o argumento de que os pais têm o direito de corrigir os filhos a todo custo é uma interpretação dos anos 40”, explica Zapater.
A especialista entende que o caso configura “lesão corporal” e que a sentença proferida pelo juiz tem um recado claro: o homem deve ter controle sobre o corpo da mulher.
“Mesmo que o MP recorra da decisão e ele seja condenado, você já teve uma sentença judicial circulando por aí e o recado dela é muito claro: tudo bem o pai espancar a filha se ela perder a virgindade. Será que a gente consegue conceber a situação de uma mãe espancando um filho porque ele perdeu a virgindade?”, questiona a especialista.
O promotor João Paulo Robortella, em nota enviada ao HuffPost Brasil, afirmou que discorda da sentença inicial e que vai recorrer.
“Basta um mero exercício de lógica para se concluir que não há que se falar em exercício regular de direito pelo pai que empregou violência contra o filho, quando esta é expressamente vedada pelo próprio ordenamento jurídico. […] A verdade é que, com tais ações, o apelado não só ultrapassou os limites da correção na qualidade de genitor, mas também se valeu da superioridade física e da vulnerabilidade da filha do sexo feminino”.
As nossas instituições combatem a violência contra a mulher?
Há mais de 10 anos atuando em casos de crimes contra a mulher, Gabriela Manssur presencia em seu dia a dia a evolução da violência contra a mulher no Brasil.
A promotora defende que as decisões dos agentes em processos judiciais que dizem respeito à questão de gênero precisam ter a “independência funcional”, mas que também precisam estar em compasso com o compromisso do Judiciário de combater a violência contra a mulher. “Esses profissionais precisam saber que cada decisão tem um impacto social muito grande”, explica em entrevista ao HuffPost Brasil.
Em nome dessa sensibilização, Maira Zapater buscou fazer parcerias com escolas de magistraturas para montar cursos e debates sobre questão de gênero, porém, poucos órgãos foram abertos à necessidade do diálogo. De acordo com ela, isso acaba influenciando em como as leis de proteção às mulheres serão interpretadas nos tribunais.
“O único espaço que conseguimos foi na Defensoria Pública de São Paulo e da União. Mas sei que no Ministério Público existem promotoras que fazem um trabalho incrível com as vítimas de violência doméstica. Mas são ações pontuais. São pessoas que pegaram as causas pessoais delas e levaram para as instituições. Não é um movimento generalizado. E isso é um reflexo do que você vê nos cursos de direito. Não é uma culpa exclusiva das instituições, as pessoas continuam reproduzindo o que elas viram na faculdade.”
Apesar da dificuldade de inserir medidas que reforcem a igualdade de gênero em instituições do país, Manssur enfatiza as ações propositivas que os órgãos estão promovendo, como a jurisprudência que tem feito valer a Lei Maria da Penha.
Nesse sentido, ela chama atenção para a súmula do Superior Tribunal de Justiça aprovada em setembro. De acordo com o texto, “é inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas.”
“O que essa orientação quer dizer é que você não pode achar uma ‘besteira’ ou uma ‘brincadeira’ ou uma ‘pequena ofensa’. Os crimes contra a mulher terão que ser julgados e não apenas arquivados.”
O que facilitaria esse processo, para ela, é uma maior capacitação dos profissionais que serão servidores públicos sobre as legislações específicas dos direitos humanos.
“Os cursos preparatórios dos servidores públicos tem que explorar mais os direitos das mulheres. Os concursados têm que estar preparados para ingressar na carreira jurídica e aplicar essas normas de crimes sexuais e feminicídio”, defende.
E finaliza:
“Após o ingresso no sistema, seja o juiz ou o delegado que vai acolher a denúncia, é preciso que a abordagem de gênero permaneça, na teoria e na prática. É preciso entender que não é um crime de menor potencial. Não é insignificante. Tem que ser combatido assim como é um crime contra o patrimônio, por exemplo.”
Fonte: Compromisso e Atitude.