Por Juliana Borges.
“A arte e a prática de amar começam com a nossa capacidade de nos conhecer e nos afirmar. (…) A afirmação é o primeiro passo para cultivarmos nosso amor interno.”
– bell hooks
O racismo é um elemento estruturador porque um mito fundador da sociedade brasileira. Um mito fundador é o que está constantemente se atualizando e se mantendo estruturalmente na sociedade, de modo que, como nos diz a filósofa Marilena Chauí, “quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo”. Ou seja, o racismo se atualiza e se reconfigura historicamente na sociedade brasileira, alcançando todos os campos das relações sociais, ou seja, político, institucional, cultural, social, físico, territorial e, também, psicológico. São estas amarras, por exemplo, que constituem complexamente o emaranhado racista, passando pela assimilação da cultura e da sociabilidade afro-brasileira, ao passo que os próprios negros negam a si mesmos.
Sendo o ser negro construído como figuração do pólo negativo nas sociedades marcadas pelo colonialismo e a instituição da escravidão – e construindo não apenas uma dicotomia, mas uma ambivalência nestes polos –, este, na busca para ser parte, já que preterido do pertencimento como consequência do sequestro para a escravização, nega a si mesmo e aos seus iguais. Com isso, é fundamental a reconstrução de elos ancestrais da experiência transatlântica de transmigração e a reconstituição do que é ser negro e do que forma seu entorno numa sociedade de castas raciais.
Para a branquitude, há um ideal de negro a ser aceito e imposto, e que se aprofunda em relação às mulheres negras, como um tipo passivo, incapazintelectualmente e, como diria Beatriz Nascimento, “oligofrênico”, “mero objeto sexual” e braçal.
Isto fica evidente, por exemplo, em ambientes autodenominados de esquerda e progressistas quando, sob qualquer protesto ou denúncia de negros em relação a um branco “apoiador”, pede-se que negros e negras sejam “compreensíveis”, “calmos” e, pior, educadores constantes daqueles e daquelas que vivem sob os privilégios de seu fenótipo como herdeiros de uma herança construída por estupros, usurpação, tortura, desumanização, escravização, assimilação e aculturação. Outra característica destes debates é a alusão à compaixão e ao amor diante de uma situação de opressão racista.
Audre Lorde, em “Usos da raiva: mulheres negras respondendo ao racismo”, nos ensina sobre a raiva que sentimos, uma raiva do oprimido que jamais deve ser comparada ao ódio do opressor em relação a nós:
“Minha resposta ao racismo é raiva. Eu vivi boa parte da minha vida com essa raiva, ignorando-a, me alimentando dela, aprendendo a usar antes que jogasse minhas visões no lixo. Uma vez fiz isso em silêncio, com medo do peso. Meu medo da raiva não me ensinou nada. O seu medo dessa raiva também não vai te ensinar nada. Mulheres respondendo ao racismo significa mulheres respondendo a raiva; raiva da exclusão, dos privilégios não questionados, das distorções raciais, do silêncio, do maltrato, esteriotipização, defensividade, má nomeação, traição, e cooptação. Minha raiva é uma resposta às atitudes racistas e às ações e presunção que surgem dessas atitudes.”
O que quero, principalmente, dizer com esta afirmação, é que pedir calma para quem vive cotidianamente situações de opressão e violência é, no mínimo, deselegante e aponta uma imensa ignorância sobre as situações que este grupo social enfrenta. O intelectual negro Frantz Fanon também nos ensinou sobre jamais confundir a raiva do oprimido com o ódio estruturado e estruturador do opressor. Primeiro, porque graus de ódio absolutamente distintos e, segundo, porque as consequências do uso e potências destes distintos graus de sentimento são totalmente diversas. Em relação ao opressor, este ódio constitui e sustenta uma sociedade de castas raciais e sistemas de dominação e opressão; ao passo que em relação ao oprimido, este sentimento tem potência de transformação e construção de luta emancipatória.
Seguindo falando sobre sentimentos, é sobre esta vida repleta de violências e ódios que bell hooks irá falar sobre o amor e sobre a importância de, antes de tudo, reconstruirmos o amor por nós e entre nós negros e negras. Ao falar sobre as mulheres negras, ela diz:
“A abordagem da afetividade seja atrás de ações e práticas sócio-culturais ou educacionais é fundamental no processo de empoderamento e fortalecimento da auto-estima de mulheres negras”
E é a partir desta citação que eu retomo a importância dos espaços auto-organizados para o povo preto. Os espaços auto-organizados são uma necessidade para nós, pois são os espaços em que é possível reconstruir existências e de construir resistência.
Sobre os espaços de auto-organização negra
Historicamente, os espaços de auto-organização negra foram e são negados, desqualificados e desmantelados, e posso citar diversos exemplos: já na travessia transatlântica pela mistura de etnias para evitar a comunicação e a organização de rebeliões pelos sequestrados para a escravização; a senzala como espaço constantemente vigiado; a proibição dos cultos religiosos africanos; a proibição de qualquer organização ou aglomeração negra; a destruição de muitos e a criminalização de tantos outros quilombos; a criminalização de terreiros, escolas de samba, favelas, bailes funk, bailes Black; e a usurpação de qualquer espaço ou manifestação cultural negra.
A manutenção desta estrutura remodelada de desqualificação da auto-organização negra tem raízes fortíssimas ligadas ao passado de desmantelamento da organização dos nossos ancestrais escravizados e com este sentido de aculturação e assimilação.
Muitas são as vezes que escutamos indagações do porquê não podemos fazer a luta juntos, sem sequer se questionar e refletir que apoio é diferente de protagonismo em uma luta. A empatia e a simpatia, sentimentos que conferem humanidade, são constantemente confundidos e colocados acima da compreensão de que negros e negras são seres e sujeitos com humanidade e autonomia e que, portanto, não precisam ser salvos. Não é de salvadores e salvadoras que precisamos, mas de uma branquitude que desmantela seus privilégios no interior de seus privilégios.
Neste sentido, a auto-organização é fundamental como espaço de reconstrução de afetividades perdidas, de encontro de experiências iguais, de reconhecimento de si e do outro de modo a fortalecer e transformar a dor em potência de liberdade, como alerta bell hooks.
Negros e negras não são mortos apenas fisicamente, mas também em um processo sistemático e contínuo que nos afeta psiquicamente. Nossa saúde mental é totalmente ignorada, sendo que vivemos sob constante hostilidade e estresse mental pela perene estrutura de discriminação racial. Com isso, os espaços auto-organizados são espaços de reconstrução, enaltecimento, curae, portanto, de resistências e onde, também, se permite o livre manifestar de nossas feridas e fraquezas, onde não precisamos ser fortes todo tempo e que possamos, entre nós, restaurar nossa humanidade constantemente negada.
Ainda com bell hooks, só se é possível amar e permitir-se ser amada, se reconstrói-se o “amor interno” destruído pelo racismo. E esta reconstrução é um processo de si para com o outro que vive esta mesma experiência sufocante e exterminadora que é o racismo. Respeitem isso.
Fonte: Carta Capital