Trinta anos da morte do maior poeta brasileiro: Carlos Drummond de Andrade

Por Julinho Bittencourt.

Alguém contou a história em uma crônica. O autor passeava com o neto por Copacabana quando passou o poeta Carlos Drummond de Andrade pelo calçadão. O autor, que não lembro quem foi, disse ao neto: “Olha, lá vai o maior poeta do Brasil”. O menino, entre estupefato e surpreso disparou: “Mas tão pequenininho assim, vovô?”.

Drummond seguiu o seu caminho, como sempre fazia, se fingindo de anônimo ou, melhor ainda, vivendo como gostaria de ser e de estar, perdido pela multidão. Viveu no Rio de Janeiro a maior parte de sua vida, mas nunca deixou Itabira. Escreveu na cidade uma das obras mais importantes, exuberantes e fundamentais da nossa literatura.

O poeta nos deixou há exatos trinta anos, em função de problemas cardíacos, doze dias depois de sua filha, Maria Julieta, que foi vítima de um câncer. Não é exagero dizer que o poeta morreu de tristeza. Dias após a morte insuportável da filha, seu médico perguntou, diante de sua depressão infinda, o que poderia receitar a ele. Drummond respondeu seco: “Um infarto fulminante”.

Foi membro do Partido Comunista durante a juventude. Deixou o partido, mas nunca abandonou o gosto pela militância e, sobretudo, o humanismo. Em 1979, em plena campanha pela anistia aos presos políticos, publicou em sua tradicional coluna uma ode para que ela fosse ampla, geral e irrestrita. Seu texto habitou cartazes, campanhas, assembleias estudantis e de trabalhadores:

“Assim te desejo, assim te espero para os que necessitam de ti e os que já não necessitam, pois habitam a mansão além da política, das crises sociais e da injustiça (como, e com que ridículo, anistiar um Juscelino, um Lacerda?). Quero-te alta e perfeita, e não uma baixinha anistia de quatro dedos e andar cambaio. Quero que voes. Com asas te imagino, sobre os desencontros e mesquinhezas dos pobres intérpretes de tua grandeza luminosa.”

Com a sua arma mais poderosa, uma improvável e prosaica máquina de escrever, Drummond povoou nossos sonhos, nos encheu de esperanças e, acima de tudo, nos ensinou a amar:

“As sem-razões do amor

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.”

Nos ensinou também que a norma culta, que ele tanto dominava, poderia ser um tanto profanada, desde que tivesse o sabor da fala das gentes do povo e, assim, trocava sem medo o verbo haver pelo ter:

“No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra”

Certa vez reclamou que não faziam canções de seus poemas. Diante da consternação geral e do medo, o compositor conterrâneo apresentou a sua “Canção Amiga”, que encantou o Brasil e o poeta:

E, diante da total desesperança, Drummond nos entregou mais um de seus poemas definitivos, algo que nos cabe hoje, três décadas depois de sua partida, como uma luva:

“JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, – e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais!
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?”

Mas foi diante de uma das maiores tragédias da humanidade, quando a cidade soviética de Stalingrado resistia contra o nazismo que avançava sobre a Europa, que Drummond nos entregou o seu maior canto de esperança e fé na raça humana:

“Carta a Stalingrado

Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem,
enquanto outros, vingadores, se elevam.

A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,
na tua fria vontade de resistir.

Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.
Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantes
dá um enorme alento à alma desesperada
e ao coração que duvida.

Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente!
As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder,
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados,
as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta,
aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.

Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó minha louca Stalingrado!

A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate,
contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,
contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,
e vence.

As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.”

Foto: Divulgação


Fonte: Revista Fórum

 

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