O dia em que o mar floresceu

Por Urda Klueger.

(Escrito em 1998, quando Jorge Amado e Zélia Gattai ainda viviam)

Manhã de fevereiro, mais precisamente 2 de Fevereiro, e eu estava sentada numas pedras grandes e negras, que avançavam mar adentro, um verde mar cheio de ondas, com a maré a encher, e o mar tinha florescido.

Alguém vai usar essa imagem em sentido figurado, vai achar que se trata de um delírio oriundo de algumas doses de LSD, vai dizer : “A escritora endoidou!”, mas eu garanto: naquele dia o mar tinha florescido de rosas de todas as cores, tinha mais rosas do que o jardim da casa da minha tia Fanny.

Como é que o mar pode florescer?

Na Bahia o mar floresce, principalmente no dia 2 de Fevereiro, dia de Iemanjá.

Era meu último dia em Salvador – marcara a volta para o dia seguinte, para ver como era a festa de Iemanjá. A festa acontece na praia do Rio Vermelho, lugar onde mora um conhecido de todos nós, um baiano que entra em todas as casas do Brasil e do mundo, um tal de Jorge Amado. Jorge Amado mora sobre um morro, em casa idílica que já visitei, e cá embaixo está a praia de Iemanjá, a praia do Rio Vermelho.

Há um outeiro dominando a praia, e sobre ele a igreja católica, e do lado, a casa de Iemanjá. O padre católico abençoa cá e lá; o povo frequenta cá e lá, nessa coisa baiana e doce de ser-se católico e de candomblé ao mesmo tempo, sem conflitos.

A festa de Iemanjá começou antes do sol nascer, com o povo que tinha que ir trabalhar durante o dia indo fazer suas oferendas à rainha do mar antes de pegar no trampo – continuou pelo dia afora e, tanto quanto sei, foi até o dia raiar outra vez. Eu cheguei pouco antes do meio dia e fui logo subindo naquelas pedras de que falei acima, abobada de ver o mar florescido, coberto de rosas de todas as cores. Fiquei olhando e refletindo – nem a mais caprichosa das donas-de-casa de origem alemã de Santa Catarina conseguiria, algum dia, ter um jardim daqueles – era a imensidão do mar verde florescido de rosas, rosas que boiavam e dançavam ao sabor das ondas, e outras flores cheirosas a completarem um séquito do qual Iemanjá deveria estar gostando muito.

Acabei comprando uma rosa também, e entrando numa longa fila que ia dar na Casa de Iemanjá, ao lado da Igreja Católica. Na minha frente, na fila, um casal de jovens franceses, também com suas rosas, totalmente encantados com o bucólico daquilo tudo; pela fila toda, centenas de turistas europeus misturados com os baianos e os brasileiros de todos os quadrantes, todos curiosos, todos, respeitosamente, levando rosas para a rainha da festa.

A casa de Iemanjá, sobre o outeiro, é toda aberta para o mar, o sol e o vento, bem como deve ser a casa de  uma rainha de uma coisa imensa como o mar. Incontáveis mães-de-santo, rigorosamente vestidas de branco, estavam na casa, organizando os balaios de oferendas – toda aquela imensa fila de gente portando rosas e outras oferendas se encontrava com elas, que iam enchendo balaios e mais balaios com as coisas que as pessoas traziam e que Iemanjá gosta, coisas de vaidade feminina: além das flores, as pessoas traziam perfumes, sabonetes, brincos, bijuterias em geral, e até algumas jóias.

Os balaios cheios eram arrumados em fila, na praia, para a grande oferenda da tarde, que completaria os pequenos atos de oferta pelo dia todo, aqueles que já tinham resultado num mar florescido. E eles foram para o mar antes do por-do-sol, em barcos lotados de flores e coisas cheirosas. Havia um frenesi na praia, nessa hora. Iemanjá receberia bem as oferendas? Gente importante estava lá, como Caetano Veloso, Gal Costa, atores que a gente vê na telinha, Jorge Amado e Zélia Gattai, rigorosamente de branco, todos esperando para ver a reação de Iemanjá.

Correu tudo bem. Cada balaio cheio de oferendas que era colocado na água afundava imediatamente, sinal certo de que Iemanjá o recebia com agrado. O povo suspirou de alívio e de satisfação. A rainha do mar estava de bem com eles!

Depois, dançou-se, comeu-se e bebeu-se por toda a noite, para externar a alegria de Iemanjá estar contente. Turistas do mundo inteiro dançaram, comeram e beberam junto, por toda a praia. São coisas da Bahia. Na Bahia, até o mar floresce!

Blumenau, 04 de Março de 1998.

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