Por Guilherme Delgado.
Irresponsável, ilimitado e infalível são atributos claramente não republicanos, que provavelmente algumas monarquias absolutas ostentaram ou ainda ostentam na história ou algumas figuras pretéritas ao Deus das religiões monoteístas – demiurgos e ídolos.
Tais atributos claramente não cabem nas estruturas do Estado constitucional moderno, mais convencionalmente conhecido por estado democrático de direito. Mas, tais características, associadas a uma determinada instituição estatal, como é o caso do Banco Central do Brasil, legalmente uma autarquia da União, soam como uma espécie de absurdo institucional em franco processo de construção legal. Vejamos, passo a passo, como ocorrem essas estruturações e suas consequências.
1) No projeto original da Constituição de 1988, mediante um artifício de ‘emenda de redação’ não votada no plenário da Assembleia Constituinte, incluiu-se no texto do atual Art. 166, parágrafo terceiro, inciso II, alínea b – a exclusão do serviço da dívida do poder de emenda congressual sobre a proposta orçamentária da União. Isto na prática orçamentária pública significa dizer que a conta da despesa financeira que todo ano vem ao Congresso, gerada ao abrigo da chamada conta única Tesouro-Banco Central, é insuscetível de emenda pelo Congresso.
Tal poder excepcional, inexistente nos países do centro capitalista (EUA, Alemanha, França, Itália etc.), praticamente blinda o nosso sistema financeiro público, gestor de somas colossais de valores – Dívida Pública, Reserva Cambial Externa, Emissão Monetária etc., de qualquer responsabilidade fiscal, algo que ficou ainda mais corroborado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) do ano 2000, ora em vigor. Diga-se de passagem, a tal emenda de redação referida, que se atribui ao ex-deputado constituinte Nelson Jobim, corroborada pela amplitude de permissões às chamadas autoridades monetárias pela LRF, permitem claramente demonstrar o atributo da “irresponsabilidade fiscal”.
2) O segundo atributo da entidade monetária brasileira é sua capacidade ilimitada de produzir despesa financeira. Isto se concretizará já no governo Temer com a PEC 55/2017 (Teto dos Gastos Primários), transformada em Emenda Constitucional n. 95. Nessa Emenda Constitucional todo o gasto não financeiro fica congelado por 20 anos, com algumas exceções pontuais; mas claramente é ilimitado o gasto financeiro, gestado e gerido nos termos irresponsáveis do tópico anterior. A própria função autoatribuída da EC 95-2016 é de transformar o Orçamento Fiscal e da Seguridade Social, completamente restringido na prestação de serviços públicos, em sistema caudatário da despesa financeira.
3) Não bastassem os dois atributos semidemiúrgicos anteriores, agora neste semestre crítico do governo Temer, a entidade arroga-se pela MP 784 de 07/06/2017, já em vigor, atributos de infalibilidade na elaboração de acordos de compromisso e acordos de leniência secretos com entidades integrantes do sistema, eventualmente cometedores de ilicitudes nas práticas financeiras.
Tais ilícitos não precisariam vir a público, nem ser admitidos factualmente pelos seus praticantes. Basta pagar uma multa e tudo ficaria apagado. Sem averiguações criminais, penalidades ou mesmo conhecimento do ocorrido. Aí entram em cena os critérios infalíveis do Banco Central, isento de qualquer controle, recurso ou julgamento de segunda instância. Com essa jurisprudência de atribuir multas, sem confissão de ilícito, instaura-se o absurdo lógico do efeito sem causa.
Todo esse arcabouço de blindagem que o Banco Central realiza não pode ser considerado mera ação corporativa, no sentido da simples autoproteção. O que se está blindando na verdade é o sistema financeiro privado dos vários controles republicanos – administrativo, orçamentário congressual e agora também do Código Penal, tudo feito em nome de um novo “Estado da Segurança Financeira”. Há fatos conjunturais parcialmente explicativos dessa MP, como sejam as delações premiadas do ex-ministro Palocci e do doleiro Funaro, comprometedoras de vários bancos, mas a engenharia da blindagem é mais antiga.
Não é preciso ser especialista em finanças públicas para perceber que por trás dessa blindagem reforçada, esconde-se aquilo que, parafraseando D. Helder Câmara, denunciando a violência número 1 do Estado da Segurança Nacional. Aqui temos como sucedâneo, a corrupção número 1 do “Estado da Segurança Financeira” – gigantesca apropriação indevida (ilegítima) de recursos públicos, sob o manto nada sagrado da legalidade financeira.
Fonte: Controvérsia.