A firmeza e serenidade que sua voz transparece são traduzidas, de certo modo, pela forma como os itens são organizados no espaço e no destaque dado a tecidos. Em um vestido transparente, é possível ler um trecho de Ponciá Vivêncio, um de seus livros mais conhecidos: “A vida era um tempo misturado do antes, agora, depois e depois ainda. A vida era um mistura de tudo e todos. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser”.
Conceição conversou com O Beijo por telefone. Na entrevista que se segue, fala sobre o aumento do interesse por produções produzidas nas margens, conta sobre sua trajetória e dá dicas para homens e mulheres negras que querem escrever.
O BEIJO — Você acha que hoje há um maior interesse pelas produções produzidas na margem? Conceição Evaristo — Acho que sim e isso acontece porque as produções do centro já estão gastas. Já não apresentam novidade. E o próprio centro se renova muito pelas produções das margens. Hoje, há uma curiosidade, o centro tenta romper as fronteiras. As margens, por sua vez, têm força, fazem pressão. Elas se esparramam tanto que contaminam o centro. Normalmente, a produção das margens começa em uma posição tida como alternativa, mas sua veemência é tanta que o centro não consegue ficar imune.
O BEIJO — Quais ações são importantes para fomentar a presença de negros e negras na literatura? Sempre destaco a validade das políticas públicas. A Lei 10.639 de 2013, criada no primeiro governo Lula, teve uma importância muito grande ao instituir o estudo das culturas africanas e indígenas. Criou uma demanda , estimulou as editoras a buscarem autores negros. Livros, como o meu, Ponciá Vivêncio, está no vestibular da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e da UEL (Universidade Estadual de Londrina). Outro aspecto é que a política pública contribui com a visibilização da literatura afro-brasileira. Olhos D’Água, outro livro que escrevi, entrou no mercado livreiro através de uma editora que participou de um edital para fomentar as publicações de autoria negra. O que isso criou? Esse livro tem uma boa distribuição, tem uma editora maior, a Mazza. Aí, a editora me escreve no prêmio “Jabuti” na categoria conto. Eu ganho. Se a gente for buscar, o que facilitou isso foram as políticas públicas. Elas contribuem para divulgação dos nossos trabalhos.
O BEIJO — Como você trabalhou sua autoestima diante das dificuldades e da ausência de negros na literatura? É interessante, porque em uma palestra em São Paulo em maio, falei da dificuldade de me reconhecer como escritora negra. Não saio me autoproclamando. Sem sombra de dúvida, isso tem a ver com a dificuldade em nos reconhecer em um espaço ou em funções que são apropriações das classes médias, dos brancos. Nós temos uma dificuldade em nos assumir e em sermos reconhecidos nesses papéis. Tem até um ensaio muito bonito de bel hooks, “As intelectuais negras”, que fala disso. De se quebrar com o imaginário de subalternização das mulheres negras. Outro aspecto dessa questão se relaciona especificamente à literatura e é a questão do público se reconhecer nos textos. Independente da questão racial, há que se ter um certo cuidado com isso. O livro é uma matéria inerte. Ele só ganha sentido na medida que ecoa. No meu caso, meu primeiro momento de reconhecimento foi dentro do movimento negro. Meu texto primeiro é legitimado pelo movimento social negro. Mulheres e homens. À medida que esse texto foi sendo reconhecido, as pessoas o levaram para sala de aula, para Academia, fizeram pesquisa. Existia um público primeiro que me legitimou. Quando fui receber o Prêmio Jabuti, houve um momento de estranhamento, até disse isso que era o prêmio da solidão. Eu olhava o público, os premiados e não via meus pares. Talvez, no momento, meus pares tenham sido representado por uma comunidade indígena que tinha recebido o prêmio também. Os nossos espaços de afirmação, no meio da comunidade branca, ainda são esparsos. Nós chegamos a determinados lugares que a gente conta no dedo quantas pessoas negras têm. Esse lugares são restaurantes, programas culturais, aeroportos.
O BEIJO — Tinha alguma coisa que você fazia para se motivar? Que eu fazia não, que eu faço. Eu tenho muitos amigos negros. O que me sustenta são os meus pares, homens e mulheres que acompanham meu texto. Embora, hoje, eu não tenha somente o público negro. Tem um público branco que sensibiliza com a minha leitura, pesquisadores que defendem o meu texto. Talvez, as pessoas negras que estão em posições raras para negros e que não tem essa relação, tenha uma sensação de solidão ainda maior.
O BEIJO — Quais conselhos você daria para homens e mulheres negras que querem escrever, mas não se sente confortáveis? Em primeiro lugar, você tem que escrever sem pensar no resultado final. Escreva, leia, torne ler de novo, divida isso com os amigos. A gente escreve e fica com muita inibição. Eu dou bronca em muitas mulheres negras: “Sai do armário”. A gente vê o que a pessoa escreveu e vê que ela tem competência. E tem que dividir, se você não tem coragem de mostrar para todo mundo, divida com alguns. Forme grupos de troca de leituras. Isso é muito importante. Eu fazia muito isso no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte. Isso afinou minha sensibilidade. Via o poema de um, via a carta de outro. Liam os meus textos. Fazíamos recitais. Acho muito importante tomarmos contato com os nossos textos. A nossa formação em literatura é marcada por produções hegemônicas, que não nos contemplam. Ler os textos dos nossos pares é um exercício interessante. Ler, discutir. Ver em que o texto do outro se assemelha com o seu. Com quem você está dialogando. Outro dia, uma menina em uma palestra falou comigo. “Ceição, estou escrevendo, mas estou te plagiando”. Falei para ela, você não está me plagiando. Tem um momento que o texto é seu. E a gente pode tentar pensar em uma questão de tradição.
Quanto à questão da publicação, as feministas brancas dizem que escrever é um ato político, mas, para nós, negros, escrever e publicar é um ato político. Nós temos que dar visibilidade aos nossos textos. As meninas mais novas estão fazendo isso com mais coragem do que eu, que levei quase 20 anos para publicar O fio da Memória, oito anos para publicar Ponciá Vivêncio. Publicar é parte da nossa afirmação. /f
Fonte: O BEIJO