Por Bruno Huberman.
As ações do Estado e da prefeitura na região central da capital paulista demonstram o crescimento da militarização e da privatização do espaço urbano. Não foi apenas a Virada Cultural sob a gestão João Doria (PSDB) que foi esvaziada no centro de São Paulo neste final de semana, o fluxo contínuo de comércio e consumo de drogas, em especial o crack, em diversas ruas na região da Luz, no centro de São Paulo, foi esvaziado e espalhado por uma vultuosa operação militar no início da manhã de domingo (21).
Os usuários e traficantes que circulam e moram pela região, conhecida como Cracolândia, foram expulsos por 900 policiais fortemente armados, veículos blindados, helicópteros, atiradores de elite e cães. Dezenas de pessoas foram presas por tráfico de drogas, além da apreensão de armas e drogas — centenas de usuários se espalharam pela região central e outros foram transferidos para o complexo Prates, no Bom Retiro, onde estão dormindo ao relento. A operação serviu também de palco para um fim espetaculoso do Braços Abertos, programa da gestão Fernando Haddad (PT) que visava a redução de danos dos usuários e oferecia moradia em hotéis na região, e a sua substituição pelo projeto Redenção, que prevê a internação compulsória em alguns casos.
Essa intervenção, no entanto, não busca apenas expulsar os traficantes de drogas e alterar o modelo de abordagem aos usuários, mas significa mais uma tentativa dos poderes municipal e estadual em abrir espaço para a revitalização do centro de São Paulo por meio de uma profunda intervenção sustentada pelo tripé mercado imobiliário-mercado financeiro-Estado. A última tentativa aconteceu no início de 2012, quando a Operação Sufoco da Polícia Militar e o Projeto Nova Luz de requalificação urbana, do governador Geraldo Alckmin (PSDB) e do ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD) tentaram, sem sucesso, redesenhar a paisagem do local.
Remoções
Os pertences e barracas da Cracolândia foram removidos por tratores da prefeitura
Agora, a dobradinha de presidenciáveis Alckmin-Doria tenta novamente. Como em outras ocasiões, a partir deste domingo, foi anunciado que a polícia irá ocupar permanentemente a região do fluxo para evitar o retorno dos traficantes e usuários. Na manhã desta segunda-feira (22), a Guarda Civil Metropolitana instalou diversos pontos de revista e controle de movimento na região da Cracolândia. Ademais, a prefeitura iniciou a demolição imediata da infraestrutura associada ao consumo e tráfico de drogas. No domingo, dois muros da alameda Dino Bueno já foram ao chão. É esperado que nos próximos dias, diversos edifícios, como os hotéis e pensões que hospedavam os usuários do programa Braços Abertos, sejam removidos.
Desta vez, entretanto, é possível ver algumas alterações no modus operandi. O que mais chama atenção são os aparatos e veículos militares utilizados pelos policiais e a rede de vigilância que tem se expandido no espaço urbano paulistano, principalmente desde as manifestações de Junho de 2013 e a Copa do Mundo de 2014. O prefeito Doria afirmou que, em conjunto com as demolições e a reurbanização, será ainda instalada uma série de câmeras de monitoramento para a vigilância permanente do local.
Atirador de elite da polícia paulista durante a operação militar na Cracolândia deste domingo
“A Cracolândia aqui acabou, não vai voltar mais. Nem a prefeitura permitirá, nem o governo do Estado. Essa área será liberada de qualquer circunstância como essa. A partir de hoje, isso é passado. Vamos colocar câmeras de monitoramento”, afirmou Dória enquanto caminhava pelo antigo fluxo. “A polícia vai ficar permanentemente aqui, e haverá a interdição imediata de todas as pensões e hotéis, serão bloqueados e na sequência, derrubados, demolidos, o mais rápido possível. Toda a área sofrerá uma amplo projeto de reurbanização”, completou o prefeito paulistano.
Este conjunto de ações executadas e anunciadas pelo poder público em São Paulo apontam para a constituição de um novo tipo de urbanismo militarizado, isto é, o uso intensivo de técnicas e tecnologias desenvolvidas para situações de conflito militar, como drones, biometria, postos de controle e perímetros de segurança, pelos agentes de segurança públicos para o rastreamento, a triagem e a repressão de grupos e indivíduos indesejadas em regiões da cidade em que pretende-se obter uma valorização da propriedade. Desta forma, a militarização do espaço urbano surge como condição para a sua privatização.
URBANISMO MILITAR
A mudança paradigmática que torna os espaços comuns e privados das cidades, bem como sua infraestrutura — e suas populações civis —, fonte de alvos e ameaças é fundamental para o novo urbanismo militar. Isso se manifesta no uso da guerra como metáfora dominante para descrever a condição constante e irrestrita das sociedades urbanas — e guerra contra as drogas, o crime, o terror, contra a própria insegurança.
Stephen Graham, Cidades Sitiadas: O Novo Urbanismo Militar. Boitempo: 2016. P. 4
Stephen Graham é um geógrafo britânico que há anos tem investigado a cidade como palco e meio de conflitos violentos. Autor do livro “Cidades Sitiadas: O Novo Urbanismo Militar”, lançado pela Boitempo em 2016, ele enxerga um círculo de imitações e reproduções em escala global de mecanismos de segurança e intervenções urbanas que visam a fabricação da ordem social burguesa e a acumulação de capital.
Como resultado, ideias, técnicas e tecnologias essencialmente militares, desenvolvidas para distantes conflitos contra terroristas e insurgentes, estão sendo replicadas nos grandes centros urbanos ocidentais onde há violência e a presença de grupos indesejados e vistos como ameaças — ou concorrentes — à ordem capitalista, como traficantes de drogas, criminosos, imigrantes, manifestantes ou, simplesmente, pobres.
Um aspecto central deste novo urbanismo militar tal qual descrito por Graham é a colonização permanente do espaço urbano com tecnologias de vigilância remota, como câmeras, drones e satélites, para o monitoramento constante do movimento de todos os indivíduos para a prevenção de ameaças futuras a partir de perfis e padrões de comportamento. É a fantasia do controle social absoluto.
Policiais fortemente armados durante a operação de “retomada de território” no centro de São Paulo
Por traz disso está a visão, reproduzida por agentes públicos e corporações de segurança, que veem esta como a única forma de superar os obstáculos apresentados pela densidade demográfica e a infraestrutura urbana, que servem de camuflagem aos milicianos, terroristas, traficantes e criminosos. Os espaços urbanos destruídos por conflitos armados, desastres naturais ou pelo empobrecimento e a desindustrialização, assim como encontros internacionais de cúpula e megaeventos esportivos, são tidos como situações de “conflitos de baixa intensidade” que exigem medidas de segurança excepcionais.
Desta forma, justificam intervenções militares, policiamento intenso, instalação de mecanismos de vigilância, isolamento de perímetros, instalação de biometrias e a (re)construção do espaço com a participação de empresas particulares. A reconstrução do Iraque após a ocupação militar dos EUA, em 2003, a reconstrução de Nova Orleans, após a passagem do furacão Katrina, em 2005, e a realização dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, são exemplos de vultuosas transformações do espaço urbano por meio da militarização e da privatização.
A “guerra às drogas” na Cracolândia paulistana funcionam como um subterfúgio para justificar intervenções do poder público da ordem de um “conflito de baixa intensidade” que leve ao redesenho de um espaço militarizado e privatizado. A Colômbia, em especial as cidades de Bogotá e Medellín, são importantes exemplos de intervenções urbanas militarizadas e privatizantes em nome do combate ao narcotraficantes.
REVITALIZAÇÃO E MILITARIZAÇÃO DE SÃO PAULO
Desde os anos 1970, quando surgiu o discurso da “degradação”, prefeitos buscam promover intervenções urbanas para “requalificar” o centro de São Paulo. A partir dos anos 1990, influenciados pelo modelo de gestão neoliberal das cidades globais e pela competição intercidades por investimentos internacionais, os projetos de reurbanização do centro passaram apontar para revalorização imobiliária, isto é, para o investimento privado como instrumento de requalificação.
Nesse contexto, o Projeto Nova Luz, de 2005, pretendia transformar a região por meio da abertura de praças, bulevares, áreas verdes, ciclovias e equipamento culturais assinados por escritórios de arquitetura internacionais. Desta forma, pretendia-se atrair um novo público e, consequentemente, provocar a revalorização imobiliária e trazer mais investimentos privados.
No entanto, a resistência dos moradores e do comércio popular da região central ao projeto de reurbanização e as malsucedidas operações policiais estão entre motivos que fizeram a “revitalização” do centro fracassar naquele momento e a Cracolândia manter o seu fluxo. Apesar disso, inúmeros empresários e corporações adquiriram propriedades no centro aguardando a almejada valorização.
O prefeito Doria não esconde de ninguém a sua intenção de privatizar o espaço público paulistano. Nos seus primeiros meses, o “prefeito gestor” tem rodado o mundo em busca de investidores internacionais, ofertando tudo que é possível: do Autódromo de Interlagos ao Crematório Vila Alpina. Diferente dos seus antecessores, entretanto, Doria tem conferido uma atenção especial à vigilância e militarização do espaço urbano.
Dronepol
Doria quer uma “cidade linda” vigiada por todos os lados
Além das câmeras de monitoramento na região da Cracolândia, o prefeito já lançou dois programas que apontam para essa direção: o Dronepol, que busca vigiar áreas de difícil acesso, ocupações em áreas de risco e grandes eventos com cinco drones doados por uma empresa chinesa de segurança; e o City Camera, que visa a análise inteligente de mais de 10 mil câmeras de vigilância instaladas na cidade, como em edifícios públicos, residenciais e corporativos, em uma central única, a exemplo do Detecta, do governo estadual, que pretende integrar 900 câmeras na capital paulista.
Essas centrais constituem-se no maior fetiche dos gestores públicos em segurança: o Big Data, um amplo conjunto de dados armazenados em um mesmo local. No caso do Detecta, há a integração do bancos de dados das polícias paulistas, como os registros de ocorrências, Fotocrim (banco de dados de criminosos com arquivo fotográfico), cadastro de pessoas procuradas e desaparecidas, dados do Detran (Departamento Estadual de Trânsito), registro de veículos furtados, roubados e clonados. Até o final de 2016, 559 câmeras de monitoramento estavam ligadas ao sistema Detecta. Segundo informações do governo estadual, os alertas gerados pelo Detecta já teriam ajudado as polícias a prender 2.419 pessoas, interceptar 1.631 veículos e apreender 134 armas de fogo.
Os blindados israelenses adquiridos pela PM paulista são utilizados para reprimir manifestações populares
Ademais, a Polícia Militar de São Paulo tem se mostrado particularmente admiradora de técnicas e tecnologias militares, em especial as israelenses, para controlar, reprimir e perseguir manifestantes e criminosos. Em 2015, o Choque adquiriu seis novos caminhões blindados de uma empresa israelense ao valor de R$ 30 milhões; desde 2013, a PM possui um “esquadrão ninja”, formado por policiais com armaduras e especializados em artes maciais, como a israelense krav maga; e, pelo menos desde 2014, tem utilizado da estratégia israelense de “envelopamento” para o controle de multidões.
Como podemos observar, após ser palco da Copa do Mundo em 2014 e de diversas manifestações populares desde Junho de 2013, cada vez mais técnicas e tecnologias militares são utilizadas pelos agentes públicos de segurança de São Paulo para vigiar e reprimir em nome dos interesses das corporações privadas. A ação na Cracolândia é mais uma situação tida pelos agentes de segurança pública como uma espécie de “conflito de baixa intensidade” que serve à privatização da cidade. Como resultado, cada vez mais, toda a população estará sujeita à vigilância indiscriminada de todo o seu movimento e aos aparatos militares de pacificação.
Fonte: Controvérsia.