Por Maicon Cláudio da Silva.
Para além da permanente sangria no orçamento federal, os estudos da Auditoria Cidadã da Dívida tem demonstrado que a dívida pública brasileira é repleta de ilegalidades. Sobre esses aspectos, alguns antecedentes históricos nos possibilitam refletir também a respeito da natureza da dívida pública e de sua legitimidade.
Segundo Nildo Ouriques[1], em Junho de 2004 a assessora de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, fez ressurgir o debate sobre uma doutrina jurídica muitas vezes esquecida, a da dívida odiosa. Na ocasião, a propósito da invasão estadunidense do Iraque, Rice afirmou que “As pessoas precisam entender que o Iraque não será capaz de recuperar-se se paga essa custosa dívida”. Em 2003 o porta-voz da Casa Branca, Scott McCleallan, manifestando a mesma posição, disse que a reconstrução do Iraque “não deve receber o peso da dívida de um regime brutal, que estava mais interessado em utilizar os recursos em palácios e salas de tortura”. Curiosamente, a grande maioria dos credores iraquianos era europeia.
Geopolítica a parte, as declarações desses alto-funcionários da Casa Branca levantaram novamente o tema da legitimidade da dívida pública. A Doutrina da Dívida Odiosa é mais comumente conhecida por ter sido aplicada pelos próprios Estados Unidos da América, em 1898, a respeito de Cuba.
Depois de décadas de constantes rebeliões e de luta pela independência da Espanha, e devido aos interesses dos Estados Unidos em assumir o controle do território cubano, o governo estadunidense declarou guerra à Espanha logo de uma suposta explosão do encouraçado Maine no porto de Havana. Declarada a guerra, os Estados Unidos vencem a Espanha e em 1898 se firma um protocolo de paz. Alguns meses depois, Espanha e Estados Unidos assinam o Tratado de Paris, pelo qual os territórios de Cuba, Porto Rico, Guam e Filipinas são cedidos aos Estados Unidos.
Logo da resolução do conflito, o governo espanhol exigiu dos Estados Unidos o pagamento das obrigações externas contraídas pelo governo colonial de Cuba. A argumentação principal vinha do reconhecimento e pagamento efetuado pelas anteriores colônias da Espanha na América do Sul e América Central de todas as dívidas contraídas pela Espanha nesses territórios até o momento da independência.
Segundo Alejandro Olmos Gaona, os Estados Unidos rechaçaram o pagamento com dois argumentos fundamentais:
a) Que a dívida não havia sido contraída em benefício do povo de Cuba, mas sim utilizada contra seus interesses, e
b) Que as condições (prazos de emissão, juros, etc.) haviam sido impostas ao povo de Cuba pelo país ocupante. (GAONA, La deuda odiosa, p. 78, tradução nossa).
Finalmente, os Estados Unidos da América obtém ganho de causa na Comissão de Paz, que declarou que “desde o ponto de vista moral, a proposta de impor essas dívidas a Cuba é igualmente insustentável” já que a luta de independência de Cuba representou as esperanças e aspirações do conjunto do povo cubano e que “derrubar os habitantes por uma dívida criada pela Espanha no esforço para se opuser a independência, seria uma injustiça maior”[2].
Contudo, ainda segundo Alejandro Olmos, o primeiro antecedente significativo de aplicação desse tipo de doutrina vem de Portugal, e curiosamente tem muito a ver com a história brasileira.
Quando em 1826 morre Dom João VI, rei de Portugal, na linha de sucessão lhe seguia seu filho D. Pedro I, Imperador do Brasil. Mas D. Pedro queria continuar no Brasil e abdicou ao trono português em favor de sua filha D. Maria, de sete anos, ficando o príncipe D. Miguel, irmão de D. Pedro, como regente. Em um ato de usurpação, D. Miguel se proclamou rei em 1827 derrubando a Constituição do Estado.
Na tentativa de solucionar a crise portuguesa, D. Pedro I abdica do trono do Império do Brasil em favor de seu filho, D. Pedro II, e viaja a Inglaterra para reunir-se com sua filha, D. Maria. Logo, com apoio da França e da Inglaterra, chega a Portugal e se enfrenta com D. Miguel, restaurando sua filha ao trono em 1833.
Acontece que durante o transcurso da guerra, D. Miguel havia contraído um empréstimo de banqueiros franceses de 40 milhões de francos a um prazo de 32 anos e juros de 5%. Quando chegou o momento do pagamento, a rainha D. Maria se negou a pagar a dívida, sustentando que havia sido contraída por um usurpador e que seus atos eram inválidos.
Durante décadas os detentores dos títulos buscaram obter seu pagamento, mas a situação só se resolveu em 1891, com reduções substanciais dos juros. Ainda assim, no ano seguinte, Portugal decidiu reduzir unilateralmente os serviços da dívida a 50% e logo a 33%.
Atualmente também tem sido demonstrado frequentemente pela Auditoria Cidadã que a principal característica do Sistema da Dívida brasileira é a ausência de contrapartida da dívida “pública” para o país ou para a sociedade. Da mesma maneira, o Sistema da Dívida tem possibilitado a transferência de suntuosos recursos públicos para o setor financeiro privado.
Grande parte da dívida pública brasileira tem origem no período da ditadura civil-militar iniciada em 1964 e finalizada em 1985, um regime sabidamente sem respaldo popular. Essas dívidas foram refinanciadas posteriormente em situações escusas, sem qualquer tipo de questionamento de suas origens.
Da mesma maneira, também no chamado período democrático, há que se questionar sobre os verdadeiros beneficiários do sistema da dívida. O rentismo crescente na economia brasileira, as altas taxas de juros, a cobrança de juros sobre juros, as irregularidades contratuais, e a transformação de dívidas privadas em dívidas públicas, tudo isso tem sido constante na direção do Estado brasileiro. Não por acaso a ex-presidente Dilma Rousseff vetou um projeto de lei para que fosse realizada uma auditoria da dívida pública federal. Também não por acaso, o Estado brasileiro tem ignorado sistematicamente desde 1988, o que determina o artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, segundo o qual, no prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição “o Congresso Nacional promoverá, através de comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro.”[3]
Assim sendo, uma verdadeira auditoria da dívida brasileira há que buscar, para além das irregularidades formais do endividamento do Estado nacional, o esclarecimento efetivo de sua natureza e de seus verdadeiros beneficiários. É neste processo que a doutrina da dívida odiosa desempenha um papel precioso como instrumento jurídico para uma solução política. Segundo ela, não cabe à sociedade arcar com os custos do pagamento de uma dívida contraída por regimes ou causas ilegítimas. Não se trata, portanto, de nenhuma reivindicação revolucionária, mas sim de seguir os passos ensinados pelos próprios Estados Unidos da América, a grande potência imperial.
Fonte: IELA.