Por Fernanda Canofre.
Quando Constanza Moreira teve a ideia de se candidatar às primárias para ser a primeira mulher candidata à Presidência do Uruguai pela Frente Ampla (FA) quase ninguém a apoiou. A maior coalizão de esquerda do mundo, que vivia uma era de manchetes internacionais pelo governo de Pepe Mujica, não se pensava preparada para uma mulher e voltou ao nome do médico, conservador e ex-presidente, Tabaré Vázquez, jogando em lugar seguro.
Mas, quem caminhava no verão de 2014 pelas ruas de Montevidéu encontrava fácil nas ruas e muros a mensagem #constanza2014. Os milhares de estrangeiros visitando o país por causa de Mujica, se perguntavam: mas quem é Constanza? Constanza Moreira conquistou o primeiro mandato em 2010, já como senadora da Frente Ampla. Aos 54 anos, é doutora em Ciências Políticas e foi a primeira mulher a dirigir o Instituto de Ciência Política da Universidade da República, no Uruguai, onde segue dando aulas. Além de escritora e ser conhecida pela militância política desde antes de entrar para a política partidária, é uma das vozes mais importantes do feminismo na América Latina atualmente.
Se dentro da Frente houve resistência em apoiar a candidatura dela, entre os uruguaios longe dos assentos no Executivo e Legislativo, Constanza significa a próxima geração. O escritor Eduardo Galeano, que a considerava uma amiga, chegou a enviar uma uma carta à Frente Ampla, defendendo sua candidatura: “Nossa irreal realidade política me obriga a dizer e repetir, com alma e vida, que apoio o movimento que conta em suas filas com tanta gente capaz de seguir sendo jovem, para sempre jovem, mesmo que passem os anos. Por isso, quero deixar registrado o meu compromisso solidário com o movimento que encabeça Constanza Moreira, mensageiro de bons ventos que estão soprando para que nosso país não tenha medo de ser capaz de criação e audácia”.
A audácia de Constanza para a presidência acabou suspensa temporariamente, mas ela voltou à cadeira de senadora da FA como líder do sub-lema Casa Grande, com grupos que apoiaram sua candidatura ao Executivo. Na semana passada, Constanza esteve em Porto Alegre participando da edição de Grandes Debates da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, que debateu sobre Mulheres e Política. Ela falou com o Sul21 sobre representação feminina, como o Uruguai vive os direitos da mulher depois de leis progressistas aprovadas e o que vem pela frente para a América Latina:
Sul21: Durante o evento que discutiu “Mulheres no Poder – Os desafios nos espaços da política”, tu lembraste de como Brasil e Uruguai estão atrasados em alcançar a paridade na representação de gênero. O Uruguai sempre foi conhecido como um país progressista, foi o primeiro da América Latina a ter o divórcio por iniciativa da mulher, em 1913. Por que nesse quesito ainda parece difícil avançar?
Constanza Moreira: O Uruguai teve avanços muito importantes na participação das mulheres no mercado de trabalho, divórcio pela vontade da mulher, agora a descriminalização do aborto. Realmente, você vê tudo isso e diz “o que está acontecendo com a mulher na política?”. Mas há uma parte dessa agenda, dos direitos das mulheres, que tem a ver com o Uruguai ser o país mais laico da América Latina. É o país onde a Igreja pesa menos. Como o país foi dominado na primeira metade do século XX por uma fração do Partido Colorado, que era da maçonaria e anti-clerical, teve todos esses avanços progressistas do direito da mulher pela laicidade. Depois quem trouxe a questão da laicidade na política foi a Frente Ampla. O Partido Colorado, como tem a liderança do [senador Pedro] Bordaberry, virou muito católico. Isso é uma parte da explicação. O Uruguai tinha começado a fazer esse processo de participação política antes da ditadura. Quando saímos da ditadura, na primeira eleição, não houve nenhuma mulher eleita. Nos primeiros governos, pós-ditadura, não houve nenhuma mulher ministra. A ditadura significou um retrocesso na pauta do desenvolvimento do Uruguai, muito importante, mais do que a gente imagina. Quem trouxe a presença feminina para a política foi a Frente Ampla. Quando o governo de Tabaré Vázquez aparece – tínhamos tido já uma mulher ministra do Trabalho – mas ele colocou umas quatro. O Mujica, nesse sentido, foi um pouco mais machista, só tinha duas mulheres ministras. Agora, Tabaré tem cinco mulheres. No Senado, temos 8 em 30. E dessas 8, 6 são da Frente Ampla. Ou seja, de um total de 15 senadores [na bancada], 6 são mulheres. Então, você tem metade de um sistema político, que é a Frente Ampla, que faz um esforço, e a outra metade que não faz. A lei de cotas [que determinava que a cada 3 candidatos, deveria haver ao menos uma mulher] teve tanta resistência…
Sul21: Inclusive dentro da própria Frente Ampla, não?
Constanza: Ah, sim. Inclusive na Frente. Quando votaram nela em 2009, votaram para ser válida só em 2014 e por uma única vez. Foi a única forma que conseguimos [aprovar]. Agora que há uma maior compreensão sobre mulheres na política – o Partido Nacional (Blanco) também tem uma participação feminina muito forte, tivemos a Michele Bachelet (Chile), a Cristina Kirchner (Argentina) e a Dilma Rousseff – isso ajudou muito votarmos no Senado a [nova lei de] cotas, sem limite de tempo, dizendo que cada 3 lugares teriam que ter representação dos dois sexos, tanto para suplentes, quanto para titulares. Tem também uma questão da educação de gênero, que para nós é a prática de todos os dias, mas que nessa geração mais antiga é uma coisa que está entrando aos poucos. Essa coisa de que não pode ser tudo sobre a briga de classes, sobretudo para essa geração dos “velhos tupamaros”, não é fácil.
Sul21: O ex-ministro da Defesa, Eleuterio Fernández Huidobro, que faleceu no ano passado e que foi tupamaro, se manifestou algumas vezes dizendo que questões como a descriminalização do aborto e da maconha e o matrimônio igualitário seriam questões secundárias diante da divisão de classes. Mas tu já és de uma geração que tenta mostrar que são as mesmas coisas.
Constanza: Que são as mesmas coisas, que é uma agenda, que a gente tem tempo para se ocupar de tudo. Com os direitos humanos aconteceu uma discussão parecida. Quando a gente estava na luta pelos desaparecidos e contra a lei de anistia para os militares, também recebíamos essa crítica. “Não, primeiro é discussão de salário, política laboral”. Mas você pode fazer tudo junto! Imagina, temos 50 deputados e 16 senadores. Temos maioria em ambas as câmaras há 15 anos. Claro que pode fazer tudo junto. As agendas se reforçam quando vão juntas. O Huidobro talvez seja uma força mais visível. Não só por ser um machista incorruptível, mas sobretudo pelo apoio à instituição militar. Imagina, um tupamaro que morreu dentro do Ministério da Defesa e foi homenageado pelos militares. O [Eduardo] Galeano falava do Huidobro: “o homem que se converteu no outro”. Naquele que o oprimia. Mas enfim. Voltando à questão das cotas, conseguimos aprovar a cota para todo o legislativo, fixa e sem prazo de finalização. Também o que vimos é que a cota funciona muito bem no Senado, porque no Senado todas as listas vão juntas – por lemas e sublemas – não é permitida acumulação por lemas. Sublemas são como sublegendas, [dentro dos partidos]. Vocês não têm isso aqui?
Sul21: Não. (O sistema de lemas só existe em Honduras e parcialmente na Argentina e no Uruguai)
Constanza: Deveriam ter, porque é uma coisa muito importante. Dá aos partidos uma enorme flexibilidade. Ao invés de cada um fazer o seu “partidinho”, você faz o partido dentro do partido. Claro que gera um problema porque depois tem que manter tudo isso junto. Mas também enriquece a vida do partido. Imagina, na Frente Ampla, no Senado somos 6 sublemas, na Câmara dos Deputados 9. Mas depois temos uma estrutura da Frente que, além da representação parlamentar, tem muitos outros, pequenos. Só os trotskistas têm 3 grupos. Se tivesse uma “física da política”, partido grande costuma ter uma força centrípeta, que une. Partido pequeno não. Além do mais, o que também manteve a Frente Ampla unida é o fato de ser governo. Não é que você esteja fazendo resistência contra um governo conservador, mas você tem que administrar o Estado. Isso gera uma capacidade de conversão muito grande, porque seus adversários políticos estão todo o tempo te fazendo a guerra.
Sul21: Falando ainda sobre machismo, em 2014, muitas pessoas tinham esperança que tu serias a primeira candidata mulher à Presidência pela Frente Ampla. Porque o Uruguai vivia um momento de escalada de pautas progressistas, parecia o próximo passo, não?
Constanza: Claro, a legalização da maconha, matrimônio igualitário, questão do aborto. Que são todas creditadas ao Mujica, mas muito erroneamente. A única coisa que Mujica fez, que Tabaré não fez (no seu primeiro governo, que foi de 2005 a 2010), foi deixar fazer. O que é próprio dele, que é uma pessoa muito aberta, enquanto Tabaré é muito mais conservador e controla a agenda do Parlamento. O Mujica tinha mais iniciativas de coisas loucas, aquela coisa da maconha nem estava na pauta da Frente Ampla. As pesquisas de opinião eram horríveis: 70% da população não queria. O Mujica disse então que abriria a pauta no Congresso e nós teríamos que convencer as pessoas. E compramos briga nas convenções internacionais. O [Luis] Almagro, que agora é presidente da OEA (Organização dos Estados Americanos), cumpriu um bom papel nesse sentido, de evitar sanções internacionais por causa da maconha. O matrimônio igualitário foi votado por todos os partidos, porque todos os partidos têm bancada gay. A lei mais dura [de aprovar] do período anterior foi a do aborto. Essa sim, foi uma luta. O Mujica a gente convenceu, mas ele nunca deu força para isso. Parte da bancada do MPP (Movimento de Participação Popular, grupo ligado aos tupamaros dentro da FA) foi muito resistente.
Sul21: Essa é uma questão interessante. Enfrentar pautas, mesmo que a opinião pública não as aprove num primeiro momento. No Brasil, muitas pautas não são tocadas por esse medo.
Constanza: Mas se você é de esquerda, opinião pública é uma coisa que você cria. Qualquer pessoa de esquerda sabe que a opinião pública é como recitar a ideologia alemã: em toda época, a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. Você tem que desconstruir a opinião pública, ir contra a opinião pública, desafiar o senso comum. O feminismo faz isso na vida cotidiana. Entra na vida cotidiana da gente para discutir as relações pessoais. A esquerda fazia isso na sua origem. A medida que entrou no governo e foi sendo parte do establishment foi perdendo esse poder. Por isso, a gente ganha um governo, mas não a disputa ideológica. A questão da segurança pública, por exemplo, está nas mãos da direita. E a esquerda não tem um pensamento alternativo que não seja: aumentar pena, por mais polícia na rua, câmeras em todas as partes. Essa discussão a gente perdeu.
Sul21: Voltando um pouco para 2014. Galeano era um dos nomes que te apoiava, representando a candidatura mais progressista. Por que tu achas que dentro do partido não te deram mais tempo para construir uma campanha?
Constanza: Eu acho que a Frente escolheu o candidato muito antes. “Não vamos complicar a vida com a questão da Presidência, vamos escolher o Tabaré que já foi bem no primeiro governo, vai fazer bem o segundo”. Erro. O que funciona bem uma vez, não vai funcionar bem sempre. Muito menos um presidente que chegava ao segundo governo com 75 anos. Eu acho que a maioria dos partidos da FA pensaram que não inovar em matéria de candidatura para Presidente, poupava a Frente de um problema. Mas depois do Mujica, voltar a Tabaré era uma coisa muito dura. Porque o Mujica com toda sua loucura – e seu conservadorismo em várias áreas políticas – foi revolucionário para o Uruguai. Depois que conseguimos que os uruguaios aceitassem que Mujica, aquele cara que vendia flores na feira, fosse o candidato – lembre-se que o Uruguai é uma sociedade de classe média, doutoral e hoje ele é mais aceito fora do país do que dentro – depois que você fez essa revolução cultural, voltar para Tabaré é como jogar cinco anos de acumulação de uma cultura política diferente no lixo. Voltar para trás em vários sentidos.
Sul21: No Parlamento uruguaio, questões mais ligadas às mulheres costumam unir as parlamentares de esquerda e direita, não? Por exemplo, a lei que regulamentou o trabalho doméstico, para combater a exploração das trabalhadoras, que eram em sua maioria mulheres, foi aprovada unindo os dois lados.
Constanza: Sim, nós temos a questão da bancada feminina e trabalhamos esses temas juntas. Com [a lei do] aborto, não, porque as mulheres dos partidos tradicionais não estavam de acordo. Mas violência de gênero, trabalho doméstico, licença maternidade, tudo isso trabalhamos todas juntas. Em outra coisa que trabalhamos juntas é para impedir que nas próximas eleições não tenha mulheres nas chapas. Seja como presidenta ou vice-presidenta. Essa é uma coisa boa, que as mulheres dos partidos estão fazendo juntas. Outra coisa que estamos encorajando é que as mulheres sejam as líderes dos sublemas. Estamos estudando dar um estímulo econômico para aqueles que tenham mulheres como cabeça. Por enquanto, estão todos aceitando isso. Porque as mulheres têm mais problema para financiamento de campanha do que os homens. Eu, que fui candidata [nas primárias] e sem apoio de nenhum movimento dentro da Frente Ampla, estava sozinha e nunca consegui. Não há nenhum sistema de financiamento para mulheres no mundo. Eu tive a vantagem de ter uma mulher que era presidente do partido, a Mónica Xavier. Ela apoiava o Tabaré, mas como era mulher e tinha sofrido muito e era feminista, disponibilizou dinheiro do partido para me ajudar na campanha, que eu paguei depois. Não foi doação, foi como crédito, porque eu não tinha dinheiro pessoal. Essa é uma diferença entre homens e mulheres na política.
Sul21: Sobre a lei de interrupção voluntária da gravidez. O Uruguai teve um caso bastante emblemático este ano. Apesar de ter a lei, de ter resultados concretos de redução da mortalidade de mulheres que tiveram acesso ao aborto seguro, uma juíza proibiu uma mulher de fazer aborto, porque o “pai” pedia para ter sua voz ouvida no processo. O que significa essa decisão, que passa por cima de um direito garantido por lei?
Constanza: A mulher acabou tendo um aborto espontâneo, mas a juíza Pura Concepción Book também perdeu na Suprema Corte. O “pai” entrou pelo direito do “filho” e pelo direito de ele ser ouvido na decisão da mulher. A lei expressamente diz que a vontade da mulher é o que importa. A vontade dela, não fala nas causas. Ela não tem que dizer porque não quer ter o filho.
Sul21: Isso pegou vocês de surpresa?
Constanza: Sim, mas antes aconteceu algo pior. A questão da objeção de consciência começou a ser usada de forma coletiva no departamento de Salto. Todos os médicos deste estado fizeram objeção de consciência (quando se nega a realizar algum procedimento por questões pessoais). A gente tinha que transladar a mulher para fora ou levar para Montevidéu, porque não conseguia profissionais que não fizessem objeção de consciência. Então, o Ministério Público fez uma intervenção para impedir isso. O Tribunal dos Processos Administrativos, que julga a coisa pública, declarou que [a ação] do MP era ilegal e barrou. Então, temos um problema grande. Nós não temos objeção de consciência como um direito, nem na Constituição, nem na lei. Mas colocamos na lei de descriminalização do aborto porque quando fomos aprová-la, um dos deputados da FA, (Andrés Lima) que agora é intendente de Salto e era diácono da Igreja Católica, não quis votar. A gente teve que mudar a lei toda para conseguir um voto que estava faltando, com o Partido Independente. A gente colocou então a objeção de consciência, a objeção de ideologia nas assistências médicas coletivas, coisas que depois foram usadas. Mas o da juíza Book é outra coisa. É uma interpretação da lei feita por uma juíza contra a legislação! Todos ficamos de olhos abertos, porque então, não só temos que lutar contra a corporação médica, mas temos que lutar contra os juízes.
Sul21: Isso tudo em um país onde o aborto descriminalizado teve resultados positivos até o momento, não? Pode falar sobre eles?
Constanza: Claro, tentaram até fazer um referendo contra o aborto, mas nunca conseguiram juntar as assinaturas. A primeira é que a mortalidade materna por aborto inseguro caiu. Temos um número de abortos que é bem menor do que se supunha – nós temos 45 mil nascimentos por ano, o aborto está em 6 mil por ano. Eu acho que o aborto está sendo garantido também pelas organizações da sociedade civil, que são quem faz campanhas e distribui informações sobre acesso e etc. O Ministério da Saúde garante, mas não conseguimos fazer campanhas sobre a saúde da mulher. Não conseguimos dizer “olha, você tem o direito de interromper a gravidez” na televisão, nem com ninguém que se engajasse na campanha pública para se fazer conhecer esses direitos, porque há resistência. É da Igreja, né? É a Igreja Católica que está lá.
Sul21: Na tua fala, durante o evento da Assembleia, comentaste que ficaste chocada quando viu a discussão sobre um Estatuto para o Nascituro no Parlamento brasileiro.
Constanza: De que maneira se pode tratar pior as mulheres do que dar-lhes um estatuto de direito inferior aos direitos de alguém que não nasceu? É o cúmulo da aberração jurídica. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que depois teve uma posição horrível em relação ao impeachment da Dilma, naquele momento que se discutia o aborto por anencefalia tinha uma posição boa. Dizendo que não se podia sobrepor os direitos do nascituro sobre os da mulher. Na Europa, em quase todas as partes o aborto é legalizado. O aborto é descriminalizado na Inglaterra desde os anos 1940. Acho que vai ficando a América Latina, por causa da influência católica, e os países árabes também.
Sul21: No dia 20 de maio, o Uruguai teve mais uma edição da Marcha do Silêncio, pedindo justiça e lembrando as vítimas da ditadura militar no país. Na Argentina, ainda em maio, uma multidão foi às ruas pressionar o Congresso para que impedisse que um voto da Suprema Corte dando privilégios para um torturador condenado, pudesse ser aplicada em outros casos. Neste momento, o Congresso uruguaio tem em discussão uma nova lei sobre punições a crimes de lesa humanidade.
Constanza: A gente fez duas leis, no período passado, mas a Suprema Corte declarou as duas inconstitucionais. Esse é outro problema. Nós aprovamos uma Lei dos Meios para limitar a propriedade dos meios de comunicação, para criar um conselho, para regulamentar conteúdos – os programas policiais, por exemplo, que não exibissem violência explícita. Agora, a Suprema Corte começou a dizer que esse artigo e aquele eram inconstitucionais. Nós estamos nas mãos da Justiça para conseguir implementar. O que aconteceu na Argentina? A Cristina [Kirchner] lutou por essa Lei de Meios, brigou com o grupo Clarín, entrou [Mauricio] Macri e barrou. Se você não tem poder político atrás das coisas, elas não funcionam.
Sul21: Na votação do impeachment de Dilma na Câmara, um voto fez homenagem explícita a um torturador e a reação da sociedade não foi o choque que se poderia imaginar. Existe uma releitura, que naturaliza certas coisas do passado recente, que há alguns anos não acontecia. Como está isso no Uruguai?
Constanza: Eu acho que no Uruguai a questão da ditadura foi muito grave, por muito tempo e muito direta. Não teve pretensão totalitária, no sentido de que não tinha um discurso para entusiasmar alguém, mas foi um controle de pessoa por pessoa. Meu pai foi demitido do trabalho na universidade porque ele era militante político, a minha irmã porque era do movimento dos estudantes de Agronomia. Foi tão avassaladora de todos os direitos, que pra gente ditadura é algo… Além do mais, eles quebraram o país. No Brasil, é muita gente, acho que a pressão da ditadura nem todo brasileiro sentiu e teve uma grande mudança demográfica de lá para cá. Que lembrança pode ter da ditadura alguém que tenha 30 anos? Quase não tem, porque também acho que não houve um trabalho para falar. Essa operação de silêncio quem combateu de forma mais eficaz foram os argentinos. E com quem? Mulheres. As mães e avós da Plaza de Mayo. No Uruguai, também são mulheres que levam essa luta pela memória. Primeiro você tem que conquistar a memória, tem que relatar o que aconteceu.
Sul21: Quem defende a justiça de restauração, defende que ela precisa da punição para estar completa. No Brasil, essa foi uma crítica feita à Dilma que, mesmo sendo ex-guerrilheira, também avançou pouco nesse ponto. Como tu vês isso hoje?
Constanza: Não há nada pior do que colocar essa decisão nas mãos de um ex-guerrilheiro. Já vi como os guerrilheiros reagem a isso. Eu não colocaria nas mãos deles porque são parte da coisa. Tem que ser colocado nas mãos de juízes, de alguém do lado de fora. O primeiro problema da justiça de transição é a verdade. Nós, no Uruguai, não temos nem justiça, nem verdade. Porque é uma questão de tempo. A medida em que as testemunhas vão morrendo, que justiça você vai ter? Eles sabem que é uma questão de tempo e por isso vão adiando, adiando, as coisas e os prazos. Depois acaba como na Espanha, onde se julga agora os crimes de 1936. Daqui a pouco passam 100 anos, você vai julgar pelos crimes ocorridos 100 anos antes?
Sul21: Tu usas o termo “década longa do progressismo” na América Latina para definir essa fase, que começa no início dos anos 2000 e que terminou há pouco. Como todas as pautas de esquerda e progressista se ajustam ao momento atual, em que vemos a volta de um movimento conservador?
Constanza: Durante esse último período da Dilma, o que mais me fez vir ao Brasil [para conferências] foi o feminismo. O tempo todo estamos falando sobre estratégias para resistir a tempos difíceis. Eu acho que as feministas já sabiam como a coisa ia ficar. Sempre trabalhamos muito nos nossos programas [de esquerda] e etc, pensando que seríamos governo, mas agora temos que trabalhar com uma estratégia para resistência. E tem que ser uma resistência não só política, tem que ser no Judiciário, na base local, no movimento sindical, tem que conquistar peso entre advogados, tem que ter espaço nos meios de comunicação. Neste momento, estamos sendo a resistência. A resistência tem que ser global, tem que ser latino-americana. Temos que ter muita lucidez quanto ao que está passando com a Venezuela, porque a Venezuela está nos dividindo todos os dias. E acho que a resistência tem que ser de muitas pessoas, de muitos campos políticos ao mesmo tempo. As universidades, a luta sindical, os movimentos de mulheres, de direitos humanos e política. Temos que criar partidos políticos, mas temos que unir os partidos políticos, porque se tem cinco partidos políticos de esquerda, que estão todos brigando entre si… É o que acontece com o feminismo também, não? As diferenças entre nós podem ser importantes, mas para uma articulação política você para, faz a agenda e depois continua discutindo. Uma coisa que os movimentos sociais têm é que, geralmente, são compostos por pessoas parecidas. Na política, não. Na política, você tem que trabalhar com gente com quem você nunca tomaria nem um café. O problema dos movimentos sociais e também da esquerda é que passam a vida toda brigando e quando acordam estão brigando com os próprios companheiros, como se aquilo fosse a coisa mais importante do mundo. E lá fora estão disputando coisas bem primitivas da nossa agenda. Tem que unir tudo, como falava Lênin nos anos da Revolução [Russa]. Isso requer uma virtude especial, esse unir as coisas.
Sul21: Para isso, o feminismo é então o começo?
Constanza: Para mim, o feminismo é onde está a resistência na América Latina. Olha o 8 de março, teve uma paralisação geral. Com o feminismo eu tenho grande esperança, porque é uma luta que entra na vida cotidiana, que te questiona. As outras ideias até podem ser abstratas. Você pode ser de esquerda e empresário, pode ser de esquerda e trabalhador, mas feminismo é algo que você percebe mais consequência na vida cotidiana.
Fonte: Sul 21.