Por Erika Yamada.
Depois de convocar as Forças Armadas para conter os protestos contra o governo de baixíssima aprovação social, cuja legitimidade é bastante questionada, Michel Temer concluiu alguns despachos de seu gabinete e, em clima de falsa normalidade, sancionou na quarta-feira 24 a nova Lei de Migração (PLS288/2013).
A lei substitui o Estatuto do Estrangeiro e é fruto do trabalho acumulado de pessoas e organizações que vem denunciando graves violações de direitos humanos perpetradas contra imigrantes, num país marcadamente formado por imigrantes.
Ao abandonar a visão de que os imigrantes seriam a priori uma ameaça à segurança nacional, a nova lei promete garantir aos imigrantes os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, e ao acesso aos serviços públicos, direitos trabalhistas à previdência social, em igualdade com os cidadãos brasileiros.
A lei avança abordando a situação de especial vulnerabilidade enfrentada por migrantes e refugiados – uma realidade cada vez mais presente e que deve ser encarada pela lente dos direitos humanos –, a exemplo da situação dos venezuelanos, inclusive indígenas, que chegam ao norte do Brasil e não podem ser ignorados nem deportados em massa como se tentou fazer em Roraima.
A sanção presidencial da última quarta-feira impôs, porém, 30 vetos que tentam descaracterizar a lei reduzindo o reconhecimento de direitos previsto na versão aprovada pelo Congresso Nacional. No dia 15, o jornal a Folha de S.Paulo já havia noticiado que a Casa Civil, o Ministério da Defesa, o Gabinete de Segurança Institucional e a Polícia Federal (no caso Ministério da Justiça), com apoio da “bancada da bala”, estariam pressionando Michel Temer para que a nova lei de imigração não fosse sancionada integralmente. Esses setores retomaram argumentos xenófobos de alegada preocupação com a segurança nacional para, na verdade, continuar a atender interesses próprios.
Em meio aos escândalos de corrupção envolvendo o próprio Michel Temer que se sucederam na semana passada, não houve tempo para uma reação da sociedade com relação aos vetos. Um dos vetos aceitos do pseudo governo de transição retirou da lei o reconhecimento do direito à livre circulação dos povos indígenas em terras de ocupação originária.
Trata-se de uma tentativa de ampliar a criminalização de pessoas indígenas criando situações de ilegalidades artificiais para povos indígenas transfronteiriços. O veto visa prejudicar aqueles que indubitavelmente não são estrangeiros no país, os povos indígenas.
Afinal, é exatamente a presença de povos indígenas na zona de fronteira a razão histórica, e atual, da garantia da paz e da soberania nacional em muitos rincões do Brasil. Nessas áreas, o poder público deveria atuar para proteger as terras indígenas de invasões e grilagens, de extração ilegal de madeira e de minério bem como e das pressões provocadas por ilícitos nada indígenas como é a atuação de quadrilhas ligadas ao tráfico de drogas, de armas e de pessoas. Em flagrante contradição à preocupação com a soberania nacional, esse mesmo governo está disposto a liberar a venda irrestrita de terras brasileiras a empresas estrangeiras.
Ao ceder a mais essa pressão para vetar o reconhecimento de direitos indígenas já estabelecidos em tratados internacionais como a Convenção 169 da OIT, o governo contribui para a prevalência de invasões criminosas às terras indígenas e consequente extinção de povos e culturas no País.
De acordo com a Funai, são pelo menos 178 terras indígenas localizadas em faixa de fronteira de norte a sul do País onde vários povos mantêm relações familiares com seus parentes em outros países sem nunca terem atentado contra as soberanias nacionais dos mesmos. O direito de circulação de povos indígenas transfronteiriços é também reconhecido pela jurisprudência internacional por instrumentos de direitos humanos assinados pelo Brasil como a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos indígenas e portanto deve ser respeitado.
Para os povos indígenas do Brasil, em 2017 o assalto a seus direitos tem sido diário. Mudança nos procedimentos de demarcações de terras, nomeações esdrúxulas e aparelhamento da Funai para atender a interesses partidários e anti-indígenas, (má) interpretação da Constituição Federal para diminuir o direito à terra dos povos indígenas, bloqueio de recursos para a execução de políticas públicas constituídas, ataques racistas e violências impunes, dentre tantos outros.
Como agravante, esses assaltos a direitos vêm invariavelmente acompanhados de manifestações públicas discriminatórias. Para o atual governo – como no tempo da ditadura –, os povos indígenas são um empecilho para o País. Por isso, tentam de todas as maneiras exterminar povos e culturas atacando essencialmente tudo aquilo que tem a ver com seus modos de vida próprios e depois, ainda vão chamá-los de “paraguaios”.
Apesar disso, também na quarta-feira 24, em audiência solicitada para abordar a situação dos direitos de povos indígenas e quilombolas no Brasil, o representante do Estado afirmou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que, aqui, a Constituição tem sido cumprida e as instituições operam normalmente.
É nesse clima de falsa normalidade que o atual governo e sua base no Congresso Nacional avançam em alta velocidade. Pseudo-reformam direitos constitucionais, reduzem proteções ambientais e facilitam a concentração de terras, por encomenda de empresas, políticos e partidos notadamente envolvidos nos esquemas de corrupção sob investigação no País.
Na calada da noite aniquilam direitos humanos para enganosamente salvarem a si próprios. Há muito tempo faz falta um governo que seja capaz de ouvir a sociedade e defender os direitos dos povos indígenas, do meio ambiente e do Brasil.
—
Erika Yamada é relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma Dhesca e perita no Mecanismo de Peritos da ONU sobre os direitos dos povos indígenas. A opinião deste artigo é pessoal e não reflete um posicionamento institucional do mecanismo.
Fonte: Carta Capital.