Sambas Que Não Passariam: Já Foi Uma Família – Fundo de Quintal

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Esta seção vai ser tipo ‘EsmiuSaga’, mas em vez de escolher alguma canção que traga muita informação sem detalhamento (como Rio Antigo, que eu já esmiucei em post passado), vou discorrer sobre o conteúdo de músicas que em seu tempo foram gravadas como ‘normais’, mas que hoje, com a evolução dos meios de comunicação e a conscientização de parte da população mundial (geralmente, a parte oprimida por preconceitos e injustiças), hoje, não passariam nem pela seleção pra um CD. Na verdade, se algum autor tivesse cara de pau de publicar uma obra dessas, certamente ia arrumar problemas em qualquer roda de samba ou seleção de repertório da vida. Em suma, estou falando aqui de letras de teor preconceituoso, conservador e até diretamente ofensivo mesmo. Tipo piadas d’Os Trapalhões sobre homossexualidade, racismo, machismo e outras, que na época até arrancavam risadas, mas hoje tem resposta direta dos grupos atingidos. Sem delongas, só mostrando mesmo.

Bem, pra começar, a música – de Arlindo Cruz, Franco e Marquinhos PQD – já sugere o que está por vir no título. Quando se fala ‘já foi uma família’, mesmo sem saber o que a letra tem a dizer, já parece que é algo que era pra ser bonito e tradicional e não é mais. Algo menos trágico que ‘Éramos Seis’, mas na mesma linha nostálgica. E a parada já começa nessa linha mesmo, quando dizem que as coisas estão diferentes de quando o tradicional era a família se reunir numa mesa, domingão, o mais velho contando história e passando adiante os costumes de seu tempo. Ainda na ‘primeira’ da música, já se ‘denuncia’ que estão acabando com essa ‘instituição’, claramente, se referindo à família como algo em perigo diante do presente (vamos considerar 1987, ano de lançamento do disco Do Nosso Fundo de Quintal, que contém a gravação original).

E a letra vai explicando com exemplos o que está acontecendo com essa família pra que os autores alertem ao mundo que esse patrimônio da humanidade está caindo em desgraça. Ele começa avisando que o vovô, aquele que sentava à cabeceira da mesa pra ensinar as tradições, agora só quer dar role por aí, na gandaia e tals. Já aí, temos a noção da pegada da música, quando o coro vem meio que constatando, meio que se lamentando que o que se chamava de família, mudou muito, ou seja, se mudou daquele modelo outrora conhjecido, hoje, não é mais. “Mudou bastante, mas já foi uma família”, ou seja, nada de pensar que se mudou, é uma família diferente, não, pro narrador, se mudou, já era, não é mais o que costumava, acabou.

Não contente em entregar os novos hábitos de vovô, já vem logo a caguetação sobre vovó, que estaria se relacionando com um rapaz bem mais novo. Novamente, o coro reforça que isso não é mais uma família. A mãe, por ter se dado conta de que não é só uma secretária doméstica do marido, necessariamente, segundo o narrador, se tornou uma radical da causa feminista. E a visão do feminismo é tão estereotipada aqui pelo olhar machista que até misturam o feminismo com guerrilha e anarquia, ou seja, a mãe não só quer igualdade e respeito, como quer acabar com o mundo sócio-político conhecido na bala, ou sei lá com que arma. Mudou bastante… E ainda tem o pai, que sai para casos extra-conjugais e nem se preocupa em esconder as evidências da luxúria externa.

Depois de uma relembrada na primeira, ou seja, na estrofe que determina o tema do partido alto que segue, é avisado que o irmão ‘solta a franga’ e ainda usa um nome feminino na ‘praça’, ou seja, se tornou travesti, ou uma mulher trans que não mudou oficialmente seu nome. Na verdade, pelo modo como é descrito, o irmão, é visto pelo narrador como uma caricatura, desserviço prestado pela mídia e senso comum que desumaniza e evita que a população trans seja vista como cidadã e não mero mote pra piada. Mas, prossigamos, pois a ‘irmã’ joga futebol, numa posição que exige uma postura mais ‘durona’ em campo, mas, ao contrário do irmão, não quer ser lembrada de que é uma mulher. Não é mais uma família, afinal, uma moça jogando bola era se meter nas coisas ‘de menino’. Pô, mana, vai brincar de Barbie e fazer biscoitos pros meninos.

Depois de falar que o tio e a tia estão envolvidos com drogas, vem a prima que era bela, recatada e do lar, e agora demonstra gostar de sexo sem fingir ser a santa que a sociedade quer. Julgamento tão cruel quanto o do primo que dança balé. Chega a ser dito que ele ‘ERA’ de fé, ou seja, se vai usar um colant e sapatilha, perdeu a moral com a galera. Depois, é um aviso que vai dar problema com a desunião da turma se pintar motivo de repartir os bens, mas até aí, o patrimônio imaterial já desmoronou moral e bons costumes a baixo, né?

Conclusão

A canção é muito envolvente na musicalidade, na estrutura de partido alto com refrão em coro reforçando a ideia geral do que é detalhado em cada verso. Particularmente, eu gosto muito dessa estrutura, dessa métrica típica de letras em que o Arlindo participa, meio Nei Lopes, de causar duas rimas seguidas antes da rima que combina com o refrão, enfim, se não fosse a letra, a música seria perfeita.

Não, não sou moralista, nota-se, mas também não é que eu ache a letra necessariamente ruim, ela seguiu um costume da época, de tratar tudo com uma pseudo-irreverência, mas que ofende dolorosamente pela falta de tato, pela visão egocêntrica, baseada em um padrão falso moralista. Porque falso moralista? Porque nossa sociedade foi estruturada, como conhecemos, pela Europa, em especial, pelo português.

Caras… alguém aqui já estudou um pouquinho só sobre a família real/imperial portuguesa? Já notaram que muito antes dos autores nascerem, aliás, muito antes até que o Brasil pensasse em se tornar uma república, já tinha um irmão tarado, uma mãe ninfomaníaca, um pai guloso, uma avó louca e por aí vai? Isso só pra citar o que é de amplo conhecimento, imagina o que não rolou pelos baixos de panos e atrás das colunas dos bailes da corte real? Sim, danadinhos.

Enfim, a letra soa moralista, preconceituosa e não passaria pra um CD em tempos que Marina Íris e Nina Rosa, por exemplo, gravam ‘pra matar preconceito, eu renasci’. Não é que eu seja contra a família tradicional brasileira, mas a noção de família não pode ser medida como um padrão sitcom estadunidense. O tal American Way of Life não atende nem a eles, que dirá de nós. Eu, por exemplo, no ano em que a canção saiu em LPs e K7s nas lojas, já tinha meus pais divorciados e não me sinto criado num lar desestruturado.

Não podemos viver com esse complexo de culpa inventado pelas camadas ricas e religiosas da Europa medieval. Isso impede – e muito – o nosso subconsciente de entender a felicidade como algo que simplesmente satisfaz a nós e não ao modo como seremos julgados pelos outros.

Não rotulemos e nem excluamos só porque a novela mostrou outra estrutura. Novelas são só ficção baseadas no que os autores ricos viveram ou observaram. Quem sabe nós somos nós. Família é família até com duas pessoas só e nem precisam ser do mesmo sangue ou com as mesmas opiniões. E fique com a música em si… A letra, você vê aqui.

Fonte: Raiz do Samba em Foco.

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