Depois de encaminhar as reformas trabalhista e da Previdência, a Câmara dos Deputados também pretende aprovar mudanças profundas nas leis que regem o esporte nacional. O pacote prevê, além da criação de novas normas, a reformulação do Estatuto do Torcedor e da Lei Pelé, aprovada em 1998. Mas o ponto mais controverso da reforma diz respeito à formação de atletas, mais especificamente no futebol. O relatório do projeto apresentado em março, assinado pelos deputados Andrés Sanchez (PT) e Rogério Marinho (PSDB), mesmo relator da reforma trabalhista, propõe a redução da idade mínima para clubes contratarem jogadores de 14 para 12 anos.
Entidades nacionais, como o Ministério Público do Trabalho(MPT) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e internacionais, a exemplo de UNICEF e Organização Internacional do Trabalho (OIT), avaliam que a proposta é inconstitucional por ferir direitos da criança e do adolescente. A legislação brasileira só admite relações formais de trabalho a partir de 14 anos, em caráter de aprendizagem até o jovem completar 16 anos. Em fevereiro, a Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância) do MPT enviou um ofício ao relator do projeto, Rogério Marinho, alertando sobre a ameaça que a medida representa às garantias infantojuvenis previstas na Constituição. O órgão entende que, ao estabelecerem vínculo com atletas com menos de 14 anos, os clubes configurariam uma relação de trabalho vedada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o que pode levar o Brasil a ser denunciado ao Comitê para os Direitos da Criança da ONU e à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O projeto aguarda aprovação na comissão especial de reforma da legislação esportiva e, de acordo com membros do grupo, deve ser levado a votação no plenário da Câmara ainda neste semestre. A mudança na idade mínima atende a um antigo desejo da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Desde o fim da Copa do Mundo, em 2014, a entidade se esforça para derrubar o veto a menores de 14 anos em categorias de base, como uma resposta ao fracasso da seleção que levou 7 x 1 da Alemanha. Primeiro, a CBF tentou empurrar a proposta dentro da Medida Provisória 671, que refinanciou as dívidas dos clubes com a União, mas o artigo foi vetado pela ex-presidente Dilma Rousseff. Agora, a confederação aposta no lobby da “bancada da bola”, composta por parlamentares alinhados a seus interesses no Congresso Nacional, para aprovar o projeto liderado por dois ex-cartolas. O presidente da comissão especial, Andrés Sanchez, foi o mandachuva do Corinthians por quatro anos, enquanto o relator Rogério Marinho comandou o departamento de futebol do ABC, de Natal, até 2015.
O modelo de formação de jogadores dos algozes brasileiros na Copa é usado como argumento para sustentar a proposta. Então coordenador das categorias de base da seleção brasileira, Alexandre Gallo defendeu que era necessário iniciar mais cedo o trabalho com jovens atletas, tal qual a metodologia alemã. Em 2000, a Federação Alemã de Futebol (DFB) lançou um amplo processo de estruturação das categorias de base. Foram investidos mais de 1 bilhão de dólares na construção e modernização de centros de treinamentos, que recebem crianças a partir dos 9 anos, porém em condições especiais. Até os 15 anos, os garotos não podem treinar mais que oito horas por semana e passam por um rígido acompanhamento escolar. A maioria dos clubes só assina contrato com atletas com mais de 14 anos. A proposta de reforma da legislação brasileira divide a formação de jogadores em três etapas: fundamentos (12 a 14 anos), desenvolvimento (14 a 16 anos) e aperfeiçoamento (16 a 19 anos). Na primeira delas, a carga de jogos e treinamentos poderia chegar a 21 horas semanais, o que, para o MPT, configuraria a relação de trabalho.
Já para Rogério Marinho, a proposta não viola a Constituição. “Sabemos que é proibida a contratação antes dos 14 anos, mas a proposta não estabelece vínculo empregatício entre clube e atleta. Queremos apenas regular as condições para a prática do futebol nos clubes antes dessa idade”, afirma. A procuradora do Ministério Público do Trabalho, Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes, que assina o ofício enviado ao relator, discorda dessa interpretação. “O futebol é lúdico apenas para o torcedor. No contexto de alto rendimento dos clubes, os jovens estão inseridos em um negócio. Ao mesmo tempo em que pretendem desnaturalizar as relações trabalhistas antes dos 14 anos, os clubes não abrem mão dos direitos econômicos do atleta, visam lucro com um vínculo que, mesmo não sendo empregatício, é de trabalho. Que lição é essa que o Brasil aprendeu depois da Copa? A incompetência da CBF e dos clubes na formação de atletas não pode ser pretexto para atentar contra direitos de crianças e adolescentes.”
Alexandre Gallo, mentor da proposta de redução da idade, foi demitido em maio de 2015 após dois anos no cargo. A comissão que sucedeu sua gestão na base da CBF, encabeçada por Erasmo Damiani e Rogério Micale, durou menos tempo ainda e acabou dissolvida em fevereiro deste ano. A falta de continuidade em planos de formação de talentos na seleção se reflete nos clubes, que mudam constantemente a política de investimento na revelação de jogadores. Um gargalo reconhecido até mesmo por parlamentares que apoiam a reforma da legislação esportiva. “Temos de ser realistas. Se o problema da base fosse a iniciação aos 14 anos, seria fácil resolver, mas tem muita coisa além disso”, diz Andrés Sanchez. “Os departamentos de formação ainda dão prejuízo aos clubes e a maioria ainda não oferece estrutura para revelar atletas.”
Driblando a lei
Desde 2007, o Ministério Público do Trabalho conta com uma comissão do atleta, responsável por apurar irregularidades trabalhistas no esporte e prevenir o trabalho infantil em categorias de base. Dezenas de clubes, incluindo grandes como Atlético-MG, Cruzeiro, Grêmio, Internacional, Santos e Vasco, já foram notificados por alojar atletas de outros Estados com menos de 14 anos, afastando-os do convívio familiar, ou por não apresentar condições adequadas para acolher crianças e adolescentes. Eles tiveram de assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e readequar suas categorias de base às determinações da Lei Pelé e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Ainda assim, muitas equipes seguem desrespeitando a lei ao recrutar novos talentos. A situação é ainda mais delicada em clubes pequenos, que, diante da falta de recursos, acabam cedendo a administração das categorias de base a agentes e investidores. Em 2014, por exemplo, o MPT proibiu o Sertãozinho F. C., do interior paulista, de terceirizar a formação de atletas, já que jogadores com menos de 17 anos treinavam fora do clube sob a tutela de um empresário e não tinham contrato assinado com o clube. Caso a reforma da legislação esportiva avance no Congresso Nacional, o MPT teme a abertura de um precedente para outras flexibilizações que coloquem em risco crianças e adolescentes, como a terceirização de categorias de base, o aumento da carga de treinos e a redução ainda maior do limite de idade. “Há uma lógica de desregulamentação do trabalho em curso no Congresso que testa os limites da sociedade. A proposta da reforma esportiva suaviza mecanismos de proteção a crianças e adolescentes garantidos pela Constituição e tratados internacionais. Temos o receio de que os clubes passem a cooptar atletas cada vez mais jovens e a assimilar o trabalho infantil como algo normal”, afirma Sbalqueiro Lopes.
A profissionalização precoce não representa a única objeção à proposta. Especialistas em direitos infantojuvenis avaliam que crianças e adolescentes com menos de 16 anos não deveriam ser submetidas ao constrangimento da seletividade, à hipercompetitividade e aos esforços físicos exigidos em categorias de base. “No futebol profissional impera a cultura da busca incessante por vitórias”, diz Ana Christina Brito Lopes, doutora em sociologia e especialista em direitos da infância no esporte. “Quem não consegue resultado é descartado. Precisamos entender que crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento e não devem ficar expostos precocemente aos riscos, sobretudo à saúde, que esse ambiente oferece.” Heraldo Panhoca, advogado especializado em direito esportivo e do trabalho que ajudou na elaboração da Lei Pelé e do Estatuto do Torcedor, é ainda mais enfático. “Concordar com a iniciação em esporte de alto rendimento antes dos 14 anos, sem nenhuma base científica para isso, significa promover a mutilação de pessoas. Quanto mais cedo um atleta começa em uma modalidade, mais as chances de se tornar um adulto com sequelas físicas e psicológicas.”
Fuga de talentos
Outro argumento dos clubes para defender a redução do limite de idade é o assédio de clubes estrangeiros às promessas que despontam nos gramados brasileiros. “A exportação prematura dos nossos talentos é um grave problema. E, como antes de 14 anos eles não podem ter vínculo com os clubes, não conseguimos mantê-los no Brasil”, afirma Walter Feldman, secretário-geral da CBF. Desde 2012, a confederação adota o Certificado de Clube Formador, um selo concedido a equipes que preenchem requisitos mínimos para a manutenção de categorias de base, como atendimento médico e odontológico. O certificado confere amparo jurídico aos clubes para fechar contrato com atletas a partir de 14 anos e garantir um percentual de seus direitos econômicos em futuras negociações. Dirigentes alegam que, por não poderem estabelecer esse tipo de vínculo com atletas mais novos, perdem suas revelações para times de fora ou até mesmo concorrentes nacionais. “Os clubes investem alto na base, mas estão desprotegidos pela legislação”, diz João Paulo Sampaio, que coordena os trabalhos de formação no Palmeiras.
Um dos casos recentes é o de Manu, garoto de 10 anos que treinava na escolinha do Grêmio, mas mudou-se para a Espanha após um período de testes no Barcelona, sem nenhuma compensação financeira ao time gaúcho. Como forma de coibir o tráfico de crianças, o regulamento da Fifaproíbe transferências internacionais de jogadores com menos de 18 anos. No entanto, clubes buscam brechas para driblar o veto, como oferecer emprego aos pais do atleta e promover a mudança da família para outro país. Essa é a suspeita do Grêmio em relação à saída de Manu. O clube deve denunciar o Barcelona à Fifa por aliciamento.
Para opositores à redução do limite de idade, o problema não está na legislação esportiva brasileira, mas sim no regulamento da Fifa, que só permite aos clubes assinar contrato de no máximo três anos com menores de 18. A Lei Pelé admite acordos de até cinco anos com maiores de 16 para resguardar os clubes diante das investidas internacionais. “As normas da Fifa precisam estar em consonância com as leis do nosso país, não o contrário”, afirma Heraldo Panhoca. “Baixar a idade de iniciação em categorias de base seria um grande retrocesso. Em vez de obrigar o sistema esportivo a se organizar melhor, preferem agir de modo simplista e tirar direitos de crianças e adolescentes.”
Até o momento, a comissão especial da Câmara dos Deputados ainda não deu retorno ao ofício do Ministério Público do Trabalho. A reforma apresentada para votação vai de encontro às propostas da Lei Geral do Esporte, que visa unificar a Lei Pelé e o Estatuto do Torcedor e tramita desde março como projeto de lei no Senado. O relatório final, elaborado por um grupo de 13 juristas especializados em direito esportivo e aprovado no fim do ano passado, prevê que “a organização esportiva formadora do atleta terá o direito de assinar com ele, a partir de 16 anos de idade, o primeiro contrato especial de trabalho esportivo, cujo prazo não poderá ser superior a três anos para a prática do futebol e a cinco anos para outros esportes”.
Por: Breiller Pires
Fonte: El País