Por Eduardo Nunomura.
Nos últimos 15 anos, a metrópole paulistana foi governada por quatro prefeitos que, juntos, injetaram 165 milhões de reais só no teatro. Foram contemplados 432 projetos de pesquisa e produção teatral pelo programa municipal de fomento. Marta Suplicy, então no PT, promulgou a lei de 2002, que foi rigorosamente respeitada pelos sucessores José Serra (PSDB), Gilberto Kassab (DEM) e Fernando Haddad (PT).
A alternância de poder, mesmo em uma capital polarizada como São Paulo, parecia obedecer à ordem democrática e ao bom senso. Então veio João Doria Jr. (PSDB), o político “novo” cujo modo de governar transita entre os personagens Brighella, Pantalone e Scaramuccia da Commedia dell’Arte.
Ao assumir, o tucano impôs um congelamento de 43,7% da verba da Secretaria Municipal de Cultura (SMC), o equivalente a 197,4 milhões de reais. Projetos de todas as expressões culturais estão sob ameaça em meio a uma velada caça às bruxas na classe artística.
Em 11 de março, o edital de fomento à dança foi revogado pelo secretário municipal André Sturm e “substituído por um outro que desconsidera a própria lei, indo contra as conquistas de classe das últimas 21 edições”, conforme denuncia a Frente Única da Cultura.
Na dança, foram contemplados 213 projetos num total de 63 milhões de reais até o ano passado. No dia 27, trabalhadores da cultura protestaram contra o congelamento, mas foram impedidos de se manifestar livremente.
“O autoritarismo já está impregnado nessa gestão. Ao cercarem o Theatro Municipal para que os artistas não pudessem protestar nas suas escadarias, separaram o artista de seu palco. É um símbolo muito forte”, declarou o ator Celso Frateschi, ex-secretário de Cultura na gestão Marta Suplicy.
Em nota, a SMC atribuiu o congelamento de 82 milhões de reais a um “equívoco” cometido pela equipe do ex-prefeito Haddad por ter enviado os programas em andamento com a rubrica de “projetos”. E, por se tratar de um novo gestor, recursos denominados de projetos foram congelados à espera de uma avaliação do time de Doria.
A nota informa que 30 milhões de reais já foram descontingenciados e programas serão retomados a partir deste mês, incluindo o lançamento dos editais de fomento ao teatro, ao circo e à música.
O drama está só começando. A realidade que acontece no campo cultural em São Paulo retrata uma farsa em nível nacional. As trocas de poder, democráticas ou não, estão servindo para desconstruir um processo de fortalecimento da produção artística duramente conquistado nos últimos anos. A ordem é eliminar a crítica. “Há um desmonte ideológico de apagamento da memória e da resistência”, resume a diretora da Cia. Sansacroma, Gal Martins.
A companhia completa 15 anos em julho, marco que deveria ser voltado para a alegria, mas desta vez será de apreensão. Daqui a três meses acaba o projeto de incentivo que possibilitou que o grupo de dança composto por integrantes negros do Capão Redondo, periferia da zona sul, pudesse circular pela capital com o espetáculo Sociedade dos Improdutivos (a performance mostra como a população negra é tratada nos manicômios), preparar um livro e promover ações artísticas com a comunidade.
A companhia desenvolveu a dança da indignação, uma metodologia em que cada dançarino usa o corpo contra símbolos sociais de opressão. “As periferias vão ser as mais atingidas, porque o desmonte engloba programas que envolvem a formação dos artistas”, afirma Gal.
Mais de 300 educadores e artistas foram dispensados do Programa de Iniciação Artística (PIÁ) e do Vocacional por Sturm. O primeiro permite que crianças de 5 a 14 anos tenham um contato inicial pela arte e funciona no contraturno escolar. Já o segundo trabalha com público desde os adolescentes até os idosos.
A gestão Doria retirou ainda esses programas dos Centros Educacionais Unificados, os CEUs, deixando pelo menos 4 mil alunos das periferias sem aulas. A SMC afirma que os antigos artistas educadores não teriam seus contratos renovados e já recrutou outros 130 profissionais.
O ator Bruno César Lopes, de 29 anos, é um dos dispensados do PIÁ. Sua colega Tatiana Monte, de 29, entrou na lista de corte do Vocacional. Os dois estão à frente da Cia. Humbalada, mais uma iniciativa que brotou na periferia. Com 20 integrantes, a companhia tem um galpão que é um ponto de cultura desde 2015.
Sediada no Grajaú, a Humbalada faz questão de dar visibilidade a uma linguagem e a uma estética periféricas, como na peça Grajaú Conta Dandaras, Grajaú Conta Zumbis. Contemplado com o edital de fomento, o espetáculo conta com artistas convidados para que, em cena, recontem quem são as Dandaras e os Zumbis das periferias atuais.
Numa reverência ao Teatro de Arena, dos anos 1960, e ao musical Arena Conta Zumbi, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, a peça do Grajaú apresenta histórias brutais sobre machismo, homofobia, racismo, violência. Já são 13 espetáculos na trajetória, mas a Humbalada está ameaçada. Os recursos do fomento acabaram e os do ponto de cultura terminam em julho.
“Quando se olha na perspectiva da periferia, é muito difícil imaginar uma empresa aportando recursos. As pessoas daqui não têm dinheiro de sobra para promover um financiamento coletivo, nem para bancar a bilheteria. E não sobrevivemos só criando e vendendo coisas nossas”, afirma Lopes.
Marcelo Palmares, que dirige o Núcleo Teatral Filhos da Dita desde 2007, é um dos fundadores do Grupo Pombas Urbanas, uma das mais antigas experiências artísticas nascidas nas periferias e sediada em Cidade Tiradentes, zona leste. Surgiu em 1989 dentro do projeto Semear Asas, do dramaturgo peruano Lino Rojas, quando se apresentava em São Miguel Paulista.
Em 2005, o Pombas Urbanas fez parte da primeira geração de pontos de cultura federais, durante a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura. Cerca de 25 mil pessoas hoje circulam por ano nos espetáculos, oficinas, cursos e eventos do instituto criado com a expansão do projeto.
Mas, desde o fim de 2016, todos as fontes de recursos secaram. “Quando se limitam as possibilidades de se fazer cultura por toda parte, as vozes e as novas ressonâncias são eliminadas. E o espaço do não encontro é onde aumenta a violência”, alerta Palmares.
A circulação entre o centro e as periferias é o que tem experimentado o Teatro Commune, localizado próximo do Centro de São Paulo desde 2007 em um antigo prédio abandonado que hoje é um espaço com 99 lugares e um café.
O Commune Coletivo Teatral surgiu quatro anos antes com o objetivo de desenvolver pesquisas sobre a Commedia dell’Arte e formar jovens. Tornou-se ponto de cultura estadual entre 2009 e 2014. A cada semestre, 30 aprendizes de 15 a 24 anos vindos de Heliópolis participam de um ciclo completo na produção teatral.
Cerca de 500 jovens já passaram por esse processo no coletivo Commune, liderado por Augusto Marin e Michelle Gabriel, que usam seus conhecimentos acadêmicos (ambos são doutores em Teatro pela Universidade de São Paulo) para apresentar obras clássicas e criar, juntamente com os alunos, textos em processo de produção colaborativa.
Alguns dos jovens já se tornaram arte-educadores. “Trazê-los para o Centro é uma forma que encontramos para romper com as barreiras da própria cidade”, diz Marin. O atual projeto envolve a concepção de quatro peças e foi viabilizado por um edital da Petrobras para a área socioambiental, mas esses recursos se encerram em julho e não serão renovados.
A única parceria que o Commune manterá é com o Sindipd, o Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados, além da locação do espaço para terceiros. A arte da sobrevivência é parte da história da cultura brasileira. O conflito agrava-se quando os poderes constituídos trabalham para apagar a cultura brasileira da história.
Fonte: Carta Capital