Este é o primeiro testemunho de uma série de mais de 20 a ser publicada durante os meses de abril e maio pelo Esquerda.net. São relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura.
À medida que os testemunhos forem publicados, poderá consultar toda a série em: Mulheres de Abril. O próximo testemunho, da médica Isabel do Carmo, será publicado na terça feira, dia 4 de abril. Coordenação de Mariana Carneiro.
Histórias de Abril
Nascida numa família democrata, desde muito cedo, abracei o ideário da transformação da sociedade. Entrei para a faculdade de Direito em 1968 e participei, de forma empenhada, no movimento estudantil, nomeadamente durante a chamada crise de 1969, em que os estudantes reivindicavam uma educação democrática e os direitos de reunião, associação e manifestação reprimidos pelo regime fascista. As Associações de Estudantes defrontavam um verdadeiro colete de forças urdido por uma legislação que cerceava o direito de associação: a todo o momento tinha lugar a intervenção das forças policiais e, posteriormente, também, a dos chamados “gorilas”, pretensos funcionários que eram introduzidos nas faculdades (caso de Direito) com a função de reprimir qualquer contestação ao status quo e de proceder à pronta chamada da polícia de choque.
Crescia, então, o movimento contra a guerra colonial e a do Vietname, bem como a solidariedade com as lutas dos trabalhadores, tendo aderido, também, a essas frentes de luta. A primeira manifestação em que participei foi contra a guerra no Vietname e de solidariedade com o povo vietnamita. Antes da manifestação, fizemos uma reunião em que se decidiu não arredar pé. Levava um casaco pesado e grossíssimo para “amenizar” eventuais cacetadas e um rolo de jornal embebido em cola, que, depois de seco, funcionaria como “arma” de autodefesa. Estava na linha da frente com uma vizinha e amiga estudante de Direito, a Rita, e empunhávamos, com orgulho, um cartaz. A ideia era não fugir, quando a polícia de choque investisse, mas, de facto, não houve outra solução senão a fuga e o peso do dito casaco funcionou como um empecilho. Foi a minha iniciação nessas lides de “zarpar” quando era preciso, depois de “desafiar” o poder e dar visibilidade às lutas.
Em Maio de 1969, fui detida, pela primeira vez, sob a acusação de ter distribuído folhetos que apelavam a uma manifestação popular para reivindicar o feriado do primeiro de Maio, Dia Internacional dos Trabalhadores. Foi uma curta passagem pelas masmorras da PIDE. No dia seguinte fui solta com o aviso de que na próxima vez a estadia seria mais prolongada!
No seguimento desta detenção, fui julgada a 23 de Julho de 1970, acusada de actividades contra a Segurança do Estado, tendo sido condenada a dois meses de prisão e suspensão dos direitos políticos por três anos, com a pena de prisão suspensa por três anos.
Fui presa, novamente, pela DGS, designação que a polícia política (PIDE) adoptou nos últimos anos do regime, em Março de 1971, altura em que houve uma grande vaga de prisões de antifascistas.
Estive isolada numa cela em Caxias, prisão na época destinada aos presos políticos, durante um mês. Recordo-me que, para não me deixar vencer pela solidão, entretinha-me a observar da janela da cela os movimentos dos habitantes de um bairro miserável, situado perto do forte.
Os interrogatórios eram frequentes e duravam dias e noites a fio, debaixo de ameaças permanentes, tortura psicológica e física, privação do sono, agressões e injúrias.
Queriam obter informações sobre colegas da faculdade, objectivo que não alcançaram. Entretanto, a minha saúde foi-se degradando e, ao fim de um mês de interrogatórios, depois de os meus pais, advogado e colegas terem suscitado um movimento de solidariedade, fui internada de urgência no Hospital da Ordem Terceira, para onde eram encaminhadas as presas políticas, num regime de total isolamento e sob vigilância de agentes da DGS/PIDE. O internamento durou algumas semanas.
Posteriormente, regressei ao forte de Caxias, onde partilhei uma cela com uma colega de faculdade, a Maria João Lobo. No sector feminino éramos, apenas, sete mulheres, mas o masculino estava a abarrotar de presos! Fui julgada pelo tribunal plenário, um tribunal especial que só julgava pessoas acusadas de “delitos” políticos e era constituído por juízes escolhidos a dedo pelo poder. Ainda assim, não conseguiram provar os factos que me imputaram – ligação à organização estudantil do PCP – e fui absolvida, sendo libertada nas vésperas de Natal, depois de 9 meses de prisão. Saí dessa experiência ainda mais consciente da necessidade de pôr fim à ditadura e disposta a lutar pela paz e pelo socialismo.
Em Janeiro de 1972 voltei à Faculdade de Direito. A minha actividade política continuou, embora com redobrados cuidados “conspirativos”, decorrentes do facto de estar referenciada e de poder pôr em causa o trabalho político e a liberdade de outr@s camaradas.
Em Fevereiro de 1973 passei à clandestinidade, para dar apoio ao órgão clandestino de Direcção da UEC, organização estudantil criada pelo PC .
A minha filha mais velha, a Rita, nasceu na clandestinidade com a ajuda de uma corajosa mulher e excelente obstetra, a Dra. Cesina Bermudes, que, correndo grandes riscos, apoiou muitas mulheres que tiveram filhos na clandestinidade! As circunstâncias eram difíceis, sendo que o facto de ter dado entrada na maternidade na madrugada do dia 25 de Dezembro sozinha e com um nome e morada falsos constituía um risco acrescido. A dilatação foi demorada, mas a Dra. Cesina Bermudes esteve junto de mim até ao parto!
Quando se deu o 25 de Abril, vivia na zona de Lisboa. Nunca esquecerei a emoção sentida ao tomar conhecimento do derrube da ditadura! Estava numa reunião com a Direcção clandestina da UEC e chorei de alegria quando tive conhecimento da libertação dos presos políticos. O país tinha despertado vestido de Primavera!
* Maria da Graça Marques Pinto (Magaça) – Professora.
Fonte: Esquerda.net.