18M na Angola: O grito das novas vozes da resistência

Por Cecília Kitombe.

O dia 18 de Março de 2017 foi histórico para Angola. Cerca de 200 mulheres e homens saíram à rua em Luanda para chamar a atenção do público para a proposta do novo Código Penal, que iria a aprovação no dia 23 de Março de 2017, na Assembleia Nacional, e incluiria num dos seus artigos a criminalização do aborto sob qualquer condição.

As mulheres mobilizaram-se e organizaram uma marcha em defesa da liberdade de decisão sobre a sua intimidade, a sua função reprodutiva e, acima de tudo, exigir ao Estado o direito ao aborto livre e seguro para todas às mulheres angolanas, fundamentalmente por conta daquelas que morrem em decorrência de um aborto clandestino e inseguro, muitas vezes à porta dos hospitais públicos ou em clínicas clandestinas.

A marcha proporcionou-me momentos de reflexão, liberdade e de partilha de sentimentos, crenças, atitudes e solidariedade com outras mulheres. Conseguia-se perceber que cada pessoa presente estava a ser levada pela sede de justiça social e pela empatia pelos problemas de saúde pública que afectam milhares de mulheres em geral, mas muito mais as mulheres pobres.

Estiveram presentes as cidadãs e os cidadãos que reconhecem a importância de as mulheres poderem ser mensageiras dos seus próprios problemas e com as suas próprias vozes gritarem bem alto “não à criminalização do aborto”, “chega de mulheres mortas pelo aborto clandestino”, “aborto legal e seguro é um direito”, garantindo assim o exercício pleno da cidadania.

Assim, espantaram-me, no final do dia, ao acompanhar as redes sociais e outros meios informativos, algumas declarações que contestavam a marcha e sua finalidade. Houve pessoas que chegaram a ir mais longe atribuindo às cidadãs envolvidas na marcha vários nomes pejorativos.

Reflecti sobre as possíveis razões para essas reacções. A maior parte delas são provenientes de homens, os ditos “homens de bem”, que até agora aparentavam ter uma visão progressista sobre a sociedade angolana e sobre o mundo, e que supostamente conhecem bem as prioridades do país, que estão a favor da emancipação da mulher, que são os nossos maridos, irmãos, primos e dizem ser companheiros na luta pela liberdade e garantia dos direitos. Mas o que acontece quando as mulheres conquistam seus espaços? São os primeiros a atirar pedras e a revelarem todo seu espírito egocêntrico, o seu fundamentalismo e o seu estatuto de conservadores de uma “moral” que os serve perfeitamente e os torna intolerantes diante das mudanças sociais.

Até certo ponto, compreendo estas reacções, pois estamos numa sociedade onde facilmente as pessoas, sobretudo homens e o Estado, decidem sobre o que as mulheres devem fazer e como o devem fazer. Nesta sociedade, é simples um homem pegar no microfone e falar o que quiser, mas as mulheres são reserva moral e a elas cabe-lhes os afazeres da casa e o cuidado da família. Daí a dificuldade de alguns em perceber o porquê de algumas mulheres saírem às ruas para reivindicar os seus direitos – e logo os direitos sexuais e reprodutivos.

As mulheres sempre procuraram compreender as normas sociais, sempre existiram mulheres que não aceitaram uma condição de subalterna, que enfrentaram várias frentes e desafiaram as sociedades patriarcais. É salutar que diante de tantas transformações sociais as mulheres busquem ‘ressignificar’ a sua condição de mulher e, em consequência, comecem a expor as máscaras do sistema patriarcal.

A luta pela justiça social é um mundo a descobrir para a maioria das angolanas e dos angolanos, mas é uma luta onde cabem todas as experiências, sem necessidade de se definir qual é a mais importante. A transversalidade dos problemas sociais obriga-nos a lutar directamente por aquilo que ousamos questionar e ter a capacidade de correlacionar as várias lutas. Por exemplo, quando saímos à rua para reivindicar os direitos das mulheres, estamos a correlacionar várias dimensões sociais: educação de qualidade, saúde de qualidade, criação de condições básicas para as crianças puderem desenvolver plenamente, ou seja, estamos a exigir ao Estado uma melhor atenção às famílias angolanas e, fazendo isso, estamos a exigir políticas sociais inclusivas.

Por isso deve-se ressaltar que a Marcha foi uma acção política e um acto de exercício de cidadania, no sentindo em que ela demonstra claramente o posicionamento político de várias cidadãs e cidadãos no que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, e chama a atenção da sociedade e do Estado para a protecção dos mesmos, através da criação de condições para uma assistência médica e medicamentosa de qualidade às mulheres e meninas de Angola.

Penso que é difícil para algumas pessoas relacionarem a acção empreendida pelas mulheres no último sábado com outras questões sociais que afectam a sociedade. Só uma pessoa despida da realidade é que não conseguiria perceber que a marcha representa uma luz no fundo do túnel da tão sonhada materialização democrática em Angola.

Nos últimos anos, temos acompanhado o surgimento de novos movimentos sociais que não estão atrelados ao poder instituído e que são resultados da necessidade de um melhor ajustamento social das necessidades de determinados grupos da nossa sociedade. Entre eles, o movimento revolucionário de jovens que ficou bastante conhecido pelo caso dos 15+2, o Ondjango Feminista, e outros grupos que têm empreendido forças para a construção de uma Angola de todas e todos e para todas e todos. Deste modo, é bom que a sociedade angolana procure captar as mudanças sociais e saiba lidar com as novas vozes da resistência.

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Sobre a autora:

Cecília Kitombe é assistente social, mestre na área de Políticas e Movimentos Sociais, activista e feminista africana. É membra fundadora e parte do grupo de coordenação do Ondjango Feminista.

Fonte: Ondjango Feminista.

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