Por Leonardo Cecchin, para Desacato.info.
Hoje, com o desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, os meios que garantem a sobrevivência humana – como maquinários, tecnologia, ciência -, poderíamos erradicar as doenças, o analfabetismo, a miséria e a fome, garantir saúde, educação, moradia e cultura à todas as pessoas do mundo. Mas estudos recentes mostram que apesar de produzirmos alimento suficiente para 12 bilhões de pessoas (sendo que a terra tem 7 bilhões), cerca de 800 milhões em situação de pobreza extrema não têm o que comer [1]. Outro mais assustador ainda, sobre a concentração da riqueza, diz que 8 homens concentram a mesma quantidade de dinheiro e bens que 3,6 bilhões de pessoas, metade da população mundial [2], como mostra a lista a seguir:
Como o mundo é assim? Alguns diriam que é questão de merecimento, mas o documentário produzido pelo jornalista dinamarquês Miki Mistrati, O Lado Negro do Chocolate, mostra que empresas como Nestlé, Hershey, Mars, ADM Cocoa, Godiva, Fowler’s Chocolate e Kraft, utilizam mão de obra escrava infantil para extração de cacau [3]. São crianças entre 11 e 16 anos que trabalham cerca de 100 horas por semana. Segundo a lógica da meritocracia, elas deveriam estar mais ricas que os homens da lista, e duvido que eles trabalhem com o mesmo empenho.
Os dados sobre a desigualdade no mundo são intermináveis, e certamente cabem à outro artigo. Esses poucos foram apenas para responder a pergunta (Como o mundo é assim?), e acho que agora podemos condensar tudo numa palavra: capitalismo. Vivemos numa sociedade dividida em classes sociais, e nem preciso citar Marx para mostrar que uma minoria controla o mundo explorando a imensa maioria, os dados já dizem isso. E se hoje a situação está desse jeito, pense no início do século XX, no país mais atrasado da Europa. Vamos à Rússia Czarista:
Na década de 1900, os mercados se espalhavam pelo mundo. Os grandes empresários e banqueiros já haviam lotado os países centrais como EUA e Europa com seus negócios. América, África, Ásia, um mundo à frente para uma segunda colonização, dessa vez sob a égide do progresso. Mas isso eram os países centrais, com suas burguesias e regimes parlamentaristas (democracia) no controle. A Rússia não havia tido nenhuma revolução como a francesa, que aflorasse o capitalismo e trouxesse as inovações da Revolução Industrial para seu território. Pelo contrário, ela ainda era um vasto Império que oprimia diversas nacionalidades, governado por uma monarquia – o Czar (César em russo). E é aí que entra a particularidade desse país naquele período: Sua população era de 80% camponesa, mas em compensação, os grandes pólos industriais como Moscou e Petrogrado (atual São Petesburgo) tinham um operariado fabril comparado ao dos Estados Unidos, mas diferente deste carregava em si a brutalidade herdada do feudalismo do campo.
Os murmúrios de descontentamento começavam a se espalhar, e a monarquia achava que uma guerra vitoriosa retomaria a confiança da população em seu governo. Essa guerra no caso, era contra o Japão, e diferente do esperado, a Rússia se encaminhava para uma derrota vergonhosa. Foi assim que no dia 9 de janeiro [4] aconteceu uma marcha religiosa em Petrogrado liderada pelo padre Gregori Gapone, que contou com mais de 1,5 milhão de pessoas. Os manifestantes marcharam pacificamente até o Palácio de Inverno, onde residia a monarquia, para ler uma petição:
“Senhor – Nós, operários residentes da cidade de São Petesburgo, de várias classes e condições sociais, nossas esposas, nossos filhos e nossos desamparados velhos pais, viemos a Vós, Senhor, para buscar justiça e proteção. Nós nos tornamos indigentes; estamos oprimidos e sobrecarregados de trabalho, além de nossas forças; não somos reconhecidos como seres humanos, mas tratados como escravos que devem suportar em silêncio seu amargo destino. Nós o temos suportado e estamos sendo empurrados mais e mais para as profundezas da miséria, injustiça e ignorância. Estamos sendo tão sufocados pela justiça e lei arbitrária que não mais podemos respirar. Senhor, não temos mais forças! Nossas resistências estão no fim. Chegamos ao terrível momento em que é preferível a morte a prosseguir neste intolerável sofrimento.”
Em resposta, o Grão-Duque Serguei Alexandrovitch ordena que a polícia disperse a manifestação, e como bala de borracha é coisa dos nossos tempos, o resultado foram centenas de mortes e feridos por tiros de arma de fogo. O erro do Czar fez com que a classe trabalhadora se descobrisse como força determinante na sociedade. Uma greve geral arrasta centenas de milhares de operários às ruas, primeiro reivindicando melhores salários, depois avançando ao patamar político e exigindo liberdades democráticas e de organização política. Somente em Petrogrado, até o fim do mesmo mês de janeiro mais de 400 mil operários estavam de braços cruzados. Os ferroviários também param, e em outubro mais de 2 milhões de trabalhadores estão em greve, o país deixou de funcionar. Os marinheiros do encouraçado Potemkim jogam seus comandantes ao mar e se somam ao levante.
É nesse contexto que surgem os Sovietes, conselhos populares de democracia direta, onde todos os trabalhadores, em seus bairros e locais de trabalho, escolhiam representantes que não tinham privilégio algum. Se estabeleceu uma situação de duplo poder. Os sovietes controlavam as fábricas, os jornais, os transportes. Nas universidades, jovens, velhos, mulheres e homens discutiam livremente de política. Essa era uma ameaça que a monarquia não podia permitir se desenvolver: no início de novembro o Czar lança um manifesto que atende aos principais interesses da burguesia, que passa imediatamente para o seu lado. O exército avança sobre Moscou, mas apesar de os operários resistirem de 7 a 17 de dezembro em barricadas, as forças do governo melhores armadas e treinadas reprimem duramente a rebelião. Os líderes como Trotski são presos, outros fogem para o exterior, a imprensa é censurada e os sovietes extintos. O silêncio nas ruas trazia consigo um duro período de reação.
– Naquele momento, os revolucionários viram a necessidade de organizar os camponeses ao lado da classe operária, pois foram estes, que enganados pelo Czar, vestiram as fardas do exército para destruir a revolução –
Os operários voltaram ao trabalho, os partidos de esquerda tiveram de se esconder nas sombras para evitar a repressão. Mas apesar da suposta normalidade, os trabalhadores jamais esqueceriam deste ano. Ali descobriram que podem governar sua própria vida e ter o futuro em suas mãos.
Até os próximos.
NOTAS:
4- Na época o calendário vigente na Rússia era o juliano, esse dia na verdade é 22 de janeiro, mas utilizarei os originais ao longo do texto com nota de adaptação no final