Por André Barreto.
O cinema enquanto “sétima arte” muitas vezes busca retratar realidades cotidianas na telona. Não foi diferente o filme “Eu, Daniel Blake”, ganhador da Palma de Ouro do Festival de Cannes do ano passado, dirigido pelo inglês Ken Loach – que arriscamos a dizer, nos últimos tempos, foi o que melhor colocou em imagens o deserto da realidade neoliberal. O filme, dentre outras histórias, conta a saga de Daniel Blake, trabalhador carpinteiro inglês, idoso, que após uma doença cardíaca, fica impossibilitado de trabalhar e busca acessar à Previdência Social britânica para receber um benefício previdenciário equivalente ao nosso “auxílio-doença”. Acontece que o trabalhador esbarra na máquina burocrática estatal, claramente montada para impedi-lo de acessar e gozar de direitos sociais.
Tendo que aguardar por prazos intermináveis, realizar entrevistas inúteis, preencher formulários sem sentido, fazer peregrinações sem fim pelos corredores de órgãos públicos, fica evidente o quanto “tudo aquilo” foi montado para cerceá-lo de ter aquele direito garantido, passando a sensação que o Estado está falido. Neste filme, fica clara também a natureza do projeto político presente no neoliberalismo: um Estado fraco para a classe trabalhadora e todos aqueles que lutam por direitos sociais e econômicos; entretanto, um Estado forte para o capital e sua corporificação, aqueles que vivem de renda da propriedade, seja produtiva, seja financeira. Este é o deserto do real proposto pelo neoliberalismo: onde para a massa de trabalhadores apenas se garante as areias quentes até o esgotamento derradeiro de sua máquina produtiva que se chama “corpo”; e para os “donos do dinheiro”, a água fresca e conforto dos oásis.
Enquanto um sistema de produção baseado na valoração de capital e produção de valor desde o sobre-trabalho, cujo metabolismo se materializa na mercadoria, o capitalismo precisa sempre produzir mais riqueza, crescer cada vez mais em mercados, para existir. Nos momentos de esgotamento desse crescimento econômico, emergem no sistema crises cíclicas, provocando reestruturações na forma de acumulação do capital.
Foi o que se tornou público em março de 2008 com a quebra de bancos de investimento estadunidenses, com o esgotar da circulação de ativos financeiros decorrentes de hipotecas do mercado imobiliário daquele país. O que se chamou de “crise financeira”, em verdade, configura-se como mais uma a crise estrutural do capitalismo – novo ciclo iniciado em 2008 e que se arrasta até os dias de hoje – ao se esgotar o padrão de acumulação baseado na circulação do capital financeiro.
A solução que se vem apontando nos fóruns econômicos compostos por grandes corporações para saída dessa crise e retomada dos padrões anteriores de acumulação de capital e taxa de lucros é o aprofundamento do modelo político do neoliberalismo. Em resumo: prega-se a apropriação privada e corporativa da “mais-valia social” presente no Estado – aquela parcela dos ganhos capitalistas que, através de tributos, são destinados aos cofres públicos para financiar políticas sociais de melhoria das condições de vida dos trabalhadores e trabalhadoras, ou seja, financiar os sistemas públicos de saúde, educação, transportes, seguridade social, dentre outros.
Em poucas palavras: privatização dos serviços antes públicos como forma de “abertura” de novos mercados para empresas, para entrada de novos ativos a serem negociados no mercado financeiro e, assim, elevação da taxa de acumulação de riquezas em padrões anteriores ao ano de 2008. Este é o sentido primeiro dos Golpes de Estado e desestabilizações institucionais instalados na América Latina nos últimos anos, não diferente do que aconteceu no Brasil no ano passado. Este é o sentido da Reforma Trabalhista e, principalmente, da Reforma Previdenciária, propostas pelo Governo usurpador Temer.
Sobre os aspectos centrais da Reforma da Previdência, analisemos abaixo.
Reforma Previdenciária: a PEC 287 como a nova trincheira na luta por direitos
A Previdência Social, enquanto parte do sistema público de Seguridade Social, previsto na Constituição de 1988 e orientado pelos princípios da solidariedade e universalidade, tem por papel amparar financeiramente os trabalhadores e trabalhadoras, bem como seus dependentes econômicos (familiares), substituindo sua remuneração, quando se encontram em situação de risco ou vulnerabilidade social, estando impedidos de trabalhar, por algum motivo. O Financiamento do sistema de Previdência Social vem tanto de contribuições do trabalhador, das empresas como dos cofres estatais.
No início do mês de dezembro de 2016, o Governo usurpador Temer enviou ao Congresso Nacional uma proposta de Reforma da Previdência – Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 287/2016. Em resumo, pode-se dizer que a proposta de Reforma presente nesta PEC irá mudar as regras em temas centrais como regime de previdência de servidores públicos, aposentadoria rural, tempo de contribuição e idade para aposentadoria, pensões, dentre outros, sob o argumento de que nos últimos anos houve o aumento da expectativa de vida dos brasileiros e que o atual sistema de previdência social não caberia no orçamento público.
Como veremos abaixo, o principal ponto danoso ao conjunto da classe trabalhadora na Reforma será a definição de uma idade mínima de 65 anos para aposentar-se, o que acarretará, na realidade, o achatamento dos benefícios e o cerceamento de aposentadorias, já que menos pessoas poderão na prática acessar esse benefício social ou goza-lo por bem menos tempo do que hoje. Ou seja, se não houver resistência em luta nas ruas, a síntese da vida dos trabalhadores brasileiros será “trabalhar até morrer, morrer de trabalhar”. Apenas para ilustrar como tal Reforma caracteriza-se, em verdade, como uma proposta de retirada de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, bem como a privatização de uma política social, basta atentar que, logo no início do governo golpista, ainda no período “transitório” a Previdência deixou de ser um Ministério autônomo para ser uma secretaria dentro do Ministério da Fazenda.
Símbolo da prioridade e enfoque do tema no governo: de política pública para questão fiscal e à serviço do capital rentista. Basta ver o discurso oficial de justificação da reforma: “o governo federal estima que deixará de gastar cerca de R$ 740 bilhões em 10 anos, entre 2018 e 2027, com as mudanças propostas por meio da reforma da Previdência Social”.
Idade mínima única para aposentadoria: aprofundando as desigualdades no Brasil
Tido como o principal benefício do sistema previdenciário, a aposentadoria tem por função substituir a remuneração do trabalhador quando ele é acometido por algum fato que o impeça, em definitivo, de trabalhar – seja alguma doença grave ou acidente de trabalho, seja a idade. Sendo o fato de ter acesso às condições mínimas e dignas de sobrevivência humana provindas apenas da renda decorrente da remuneração percebida pela venda da sua força de trabalho uma característica própria e essencial da classe trabalhadora, enquanto a “classe-que-vive-do-trabalho”, a velhice justamente representa a chegada da idade em que o trabalhador tem sua capacidade de trabalhar reduzida ou já em “nível não-produtivo” para o padrão capitalista. Conferir amparo social ao trabalhador nessa condição de “ser-improdutivo” decorrente da idade é o papel principal do benefício da aposentadoria, de modo a evitar problemas sociais, como mendicância, aumento da violência, aprofundamento da miséria, etc, que desestabilizam o status quo do sistema capitalista.
É por isso que se encara o aumento da idade mínima para se aposentar como o principal ponto danoso da Reforma Previdenciária do governo golpista. Como é hoje? Para se aposentar, pode-se optar pela aposentadoria por idade ou pela aposentadoria por tempo de contribuição (na qual se aplica a regra 85/95 – a soma da idade mais o tempo de contribuição deve ser de 85 anos para mulheres e 95 anos para homens).
Além dessas, também há a aposentadoria por invalidez, para aqueles acometidos de situação de doença ou acidente laboral que os impeça em definitivo de trabalhar, e a aposentadoria especial. O que vem com a Reforma da Previdência do governo Temer? A previsão de uma idade mínima única de 65 anos para todas as modalidades de aposentadoria, aplicada também tanto para homens como mulheres. Ou seja, além de se aumentar a idade mínima para aposentadoria, ela passa a ser válida para todos trabalhadores de ambos os sexos do campo e da cidade. Ou seja, acaba-se com as várias modalidades de aposentadoria, para se ter um regime único de idade única e elevado período de contribuição (passa-se dos atuais 15 anos, para 25 anos).
Pode-se dizer que pelo modelo proposto de aposentadoria, uniformiza-se para excluir-se. Desconsidera-se e aprofundam-se as desigualdades econômicas e sociais do nosso país. Como dito acima, busca-se com essa mudança o cerceamento de aposentadorias, pois se desconsidera, por exemplo, a divisão sexual do trabalho e as triplas jornadas de trabalho das mulheres, a tendência a maior precarização do trabalho feminino, as condições de trabalho mais penosas dos trabalhadores do campo e da indústria em relação ao setor de serviços, diferenças na expectativa de vida entre regiões geográficas e classes sociais no Brasil, dentre outros – elementos que justificam uma idade menor para se aposentar a esses grupos.
Além disso, com os critérios estabelecidos para se aposentar – idade mínima de 65 anos e fazer contribuições mensais por, no mínimo, 25 anos consecutivos – cria-se na verdade uma gigante barreira para que os trabalhadores brasileiros acessem tal benefício, tornando-o quase impossível. Assim, para aqueles poucos que tem condições financeiras, a alternativa é recorrer a uma previdência privada ou, para a massa de trabalhadores, trabalhar até perto das portas da morte, até o esgotar de sua máquina orgânica de produção de mais-valia.
É preciso, ademais, se desmistificar que não existe hoje uma idade mínima para se aposentar no Brasil. Como visto acima, na aposentadoria por idade é estabelecida uma idade mínima (trabalhadores urbanos – 65 anos, homens; 60 anos mulheres, com redução de 5 anos no caso de trabalhadores rurais, pescadores e indígenas). Há também uma idade mínima prevista no sistema de aposentadoria por tempo de contribuição, uma vez que na regra 85/95 é exigido o tempo mínimo de contribuição de 30 anos para mulher e 35 anos homem, ou seja, se estabelece também como uma idade mínima 55 anos (mulheres) e 60 anos (homens).
Ou seja, já há na Previdência Social brasileira uma idade mínima para se aposentar, não procedendo o discurso oficial de o sistema de aposentadorias no Brasil estar “defasado” ou “desatualizado” em relação aos países centrais do capitalismo; em vistas de nestes haver tal idade mínima e no nosso país, não. Além de que tais países (como Alemanha, Estados Unidos, Japão) que adotaram o patamar proposto por idade mínima, tem uma taxa de longevidade das pessoas muito superior à do Brasil. Segundo o IBGE, a expectativa de vida no Brasil é de, em média, 75 anos, enquanto que, por exemplo, é de 78 anos nos EUA, 80 anos na Alemanha, 83 anos no Japão. – de se considerar que, nesses países, a faixa da população envelhecida também é muito maior do que no Brasil.
Só fica claro que essa reforma está a serviço de um ajuste fiscal estrutural do Estado, a fim de se aprofundar o projeto político neoliberal, e da criação de novos mercados para que as corporações financeiras retomem suas taxas de lucro a patamares anteriores à crise de 2008. É por isso que as mobilizações convocadas para o mês de março pela Frente Brasil Popular, focada na luta contra a PEC 287 (Reforma Previdenciária) – junto às manifestações das mulheres no 8 de março e à greve nacional dos professores – são indispensáveis para a manutenção dos direitos conquistados pela classe trabalhadora brasileira nas ultimas décadas.
Para terminar este artigo onde começamos, ao se assistir ao filme lá em cima citado, nota-se também que Daniel Blake, mesmo sendo idoso, na faixa dos seus quase 70 anos, não gozava de aposentadoria (ou pelo menos em um valor minimamente digno), ainda tinha que trabalhar para sobreviver, para pagar suas contas, para ter o que comer – de modo que, diante do seu corpo “dizer” que não aguentava mais trabalhar nos níveis de esforço físico de antes, sob risco de morte, ele apenas teve duas alternativas: tentar acessar o auxílio-doença, para que tivesse uma renda até recuperar o corpo às condições mínimas produtivas e voltar a trabalhar ou buscar um novo emprego. Afinal, para Daniel Blake a aposentadoria não se afigurava como um direito social acessível para assegurar sua dignidade enquanto trabalhador e ser humano.
Este é o deserto contra o qual a classe trabalhadora terá que lutar nas próximas semanas.
Fonte: Brasil de Fato.