A filha estava completando um mês no último sábado e depois de passar na casa do irmão, Mateus Lima Ferraz da Silva, de 18 anos, subiu em sua moto CG 125 para levar o dinheiro para as despesas da pequena Mariana que estava morando com a mãe e namorada, em Coroados, na cidade de Guaratuba, litoral do Paraná.
Mas, há menos de uma semana de seu aniversário, o garoto que morava com a mãe em outro extremo da cidade, no bairro Mirim, foi morto com dois tiros, um na nádega e outro no peito. As balas partiram da Polícia Militar do Paraná, pouco depois das 22h do sábado, dia 4 de fevereiro.
Na sexta (10), Mateus completaria 19 anos, e tudo o que o irmão, Luís Rafael da Silva, de 33, quer é justiça. “A revolta é muito grande. Eu praticamente criei ele com minha mãe, são 15 anos de diferença e eu ajudei a criar ele. Desde os 12 anos ele trabalhava comigo na oficina e estava indo levar dinheiro para a filha. É muito revoltante”, desabafa.
Uma testemunha que acompanhou a ação na rua – e não será identificada por segurança – contou à reportagem da Ponte Jornalismo que a versão apresentada pelos policias é bem distinta daquela a que assistiu naquela noite de sábado. Disposta a testemunhar à polícia, mas em sigilo, ela afirma que, diferente do que contam os dois agentes envolvidos no caso, Mateus não estava armado, não disparou contra a viatura e saiu do local com apenas um ferimento, um tiro que acertou a nádega do rapaz.
Contestada pela família e por amigos de Mateus, a versão apresentada pelos policiais envolvidos na ação, que passou por diversas vias até se desenrolar na rua Tenente Eduardo Neuman, está registrada no boletim de ocorrência do caso. Segundo a declaração da equipe de patrulhamento, formada pelo tenente Sérgio Antônio Merege de Mello Filho e pelo soldado Erickson Luís Veras, os policiais tentaram realizar a abordagem ao avistar dois motociclistas em “atitude suspeita”.
Sem que a moto de Mateus parasse, a perseguição foi iniciada. Ainda segundo o documento, os policiais afirmam que foram alvejados pelo menos duas vezes pelo jovem e só depois teriam “revidado para cessar a injusta agressão”. Baleado e já caído, Mateus teria ainda disparado mais uma vez contra os policiais, que revidaram novamente.
Os policiais afirmam ainda que isolaram o local, acionaram o Siate (Serviço Integrado de Atendimento ao Trauma em Emergência) para o socorro e que Mateus foi encaminhado com vida à Unidade de Pronto Atendimento de Guaratuba, onde morreu posteriormente. Segundo o boletim de ocorrência, os policiais apresentaram uma arma com numeração suprimida e drogas que supostamente estariam com o adolescente.
De acordo com a testemunha, que deve prestar depoimento nos próximos dias, Mateus passou pelo carro dela em alta velocidade seguido pelos policiais que dispararam, pelo menos, cinco vezes na direção da moto antes de virar a esquina que daria para a rua onde o adolescente caiu e foi baleado.
“Eu estava de carro e tinha acabado de entrar na Paraná e logo depois de uma curva vi a moto vindo e o carro da polícia atrás. Joguei o carro para o acostamento para o piá e a polícia passarem. Ele passou bem rápido, era uma moto bem barulhenta sabe? Deu pra perceber que ele estava apavorado, correndo. Até pensei que o piá só poderia estar com o documento da moto ou com a habilitação atrasada pra correr da polícia. Deveria estar com medo de perder a moto”, conta.
Assim que Mateus virou à esquerda, seguido pelos policiais, ela afirma que os agentes iniciaram os disparos, em princípio na direção dos pneus da motocicleta. “Eu vi ele passar por mim, do meu lado, ele não estava armado, estava com as duas mãos no guidão, não tinha mochila, não tinha nada”, ressalta.
Antes de chegar ao local onde Mateus já estava caído, a testemunha ouviu ainda cerca de outros quatro disparos. Moradora da região, ela conta que muitas pessoas se aglomeraram em torno do garoto, em uma via principal que dá acesso à praia. “Quando cheguei ao local, ele já estava caído, o carro da polícia estava com o porta-malas aberto e o piá estava bem, não parecia estar com dor. Estava falando e a moto estava no chão, ligada ainda. Ele falava: senhor, eu sou trabalhador, sou trabalhador, por favor”, explica.
Segundo ela, em seguida os dois policiais isolaram o local e impediram os moradores de chegarem perto de Mateus ou da moto. Ela conta que o adolescente estava caído a cerca de dois metros à frente da motocicleta. “Parece que ele parou porque quis, que se entregou, que não caiu junto com a moto. Do jeito que ele estava caído, parece que ele entregou a moto e caminhou um pouco pra frente porque ele estava caído a uns dois metros pra frente e mais pra direita”, completa. Além de afastar os moradores, a testemunha afirma que os policiais intimidaram as pessoas que estavam fotografando e filmando a ação.
No celular da testemunha, o primeiro áudio enviado para um amigo, contando sobre a perseguição quando ela ainda estava acontecendo marca o horário de 22h08. Já no local, imagens feitas com o celular que mostram a viatura com o porta-malas já aberto, Mateus caído e pessoas ao redor foram feitas às 22h10.
Sem conhecer o garoto e tendo acompanhado a ação, a testemunha afirma que, além de ver Mateus com as duas mãos no guidão, sem qualquer arma, seria impossível que o adolescente conseguisse atirar contra a viatura e ainda ser baleado no peito – o atestado de óbito entregue à família aponta como causa da morte os dois tiros que atingiram o corpo dele, um na nádega e um no peito.
Além disso, as condições da via onde a perseguição ocorreu dificultariam ainda mais a ação descrita pelos policiais. “Ele não tinha como atirar pra trás naquela rua. Ela é toda esburacada, só depois, lá perto de onde ele caiu é asfalto”, afirma.
A impossibilidade de que Mateus pilotasse a moto em uma rua esburacada, com luminosidade baixa e ainda disparasse contra a viatura que estava atrás dele é reforçada quando o irmão dele, Rafael, questiona: “como meu irmão iria acelerar a moto do jeito que acelerou, em uma rua cheia de buracos e ainda atirar? Ele era destro. Fazia tudo com a mão direita, só se ele fosse herói pra conseguir fazer isso”, ressalta. O acelerador das motocicletas é acionado no guidão, do lado direito.
A versão da polícia de que Mateus foi baleado na nádega e no peito, socorrido pelo Siate e encaminhado com vida ao Pronto Atendimento, onde teria morrido, também é contestada pelos familiares, amigos e testemunhas. De acordo com outra testemunha que falou à reportagem da Ponte, o adolescente estava consciente, falando e apenas com o tiro na nádega quando foi socorrido e colocado dentro da ambulância. “Ele estava consciente, não reclamava de dor, só passava a mão no sangue da nádega, não dava pra ver tiro no peito nenhum. Até porque, se ele tivesse levado um tiro no peito não estaria falando tão bem e não teria conseguido tirar o celular e deixar do lado”, conta.
Além disso, a testemunha afirma ter visto os socorristas dirigindo a ambulância e banco do carona e na parte de trás, acompanhando Mateus, estariam policiais militares. “A ambulância foi até o final da rua, parou um pouco e ao invés de seguir, que é o caminho mais rápido pro PS, deram a volta e passaram por aqui de novo antes de ir. Com ele estavam policiais e não os socorristas”, completa.
O IML (Instituto Médico Legal) de Paranaguá, que atende a região, confirma que o corpo de Mateus chegou às 2h35 de domingo (5). Entre o momento em que a testemunha viu a perseguição e a entrada do corpo do adolescente no IML da cidade vizinha, se passaram cerca de quatro horas e vinte e cinco minutos.
Ainda sem entender por quê seu irmão foi morto, Rafael divide o tempo entre o trabalho na oficina náutica, buscar testemunhas que possam esclarecer como seu irmão foi morto e dar atenção à mãe, que além de perder o filho mais novo, perdeu também o garoto que era ao mesmo tempo “quietão, tirador de sarro e brincalhão com todos os amigos e familiares”, lembra.
“Não tem o que falar dele, era um piá bom, tinha terminado o ensino médio, acabou de ser pai e a gente estava correndo atrás para conseguir um terreno pra ele construir uma casa. Pra mãe está ainda mais difícil, ela está lá na casa, sozinha. Volta e meia ela chora do nada. Se pra mim, que criei ele já está sendo muito complicado, imagine para ela”, lamenta.
Rafael explica que a moto pilotada por Mateus na noite em que foi morto está com a documentação regularizada, a habilitação do adolescente também. “A moto é modificada sim, faz bastante barulho. Com certeza foi por isso que ele não parou, por medo de perder a moto”, diz. A motocicleta do adolescente foi retirada pelo irmão do pátio da Polícia Militar. “Perderam até a chave da moto do meu irmão”.
A Polícia Civil está investigando o caso e deve ouvir testemunhas ainda hoje. Já a Polícia Militar não quis se manifestar a respeito e reitera a versão apresentada pelos policiais, que estão afastados enquanto a Corregedoria Geral da Polícia Militar do Paraná investiga o caso. O órgão confirmou que foi instaurado um inquérito policial militar para apurar as circunstâncias da morte de Mateus.
No sábado (11), uma semana após a morte do adolescente, um protesto foi organizado e percorreu algumas ruas da cidade. O pedido de amigos e familiares é um só, o de justiça.
Fonte: Ponte Jornalismo.