Por Júlia Dolce e Victor Labaki.
Revista Fórum e Brasil de Fato.
No Ocidente, o estereótipo de mulheres árabes, principalmente as muçulmanas, quase sempre está atrelado a submissão e passividade. A noção de superioridade das nações ocidentais se fundamenta muitas vezes em uma suposta ideia de que vivemos em uma sociedade mais avançada em relação aos direitos e à igualdade social.
Baseado nesse estigma, até mesmo intervenções militares em países do Oriente Médio já foram justificadas. Na Palestina ocupada não é diferente: Israel se privilegia constantemente de uma máscara ‘democrática’ em relação às questões de gênero para desumanizar e oprimir a população palestina.
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No entanto, de guerrilheiras como Leila Khaled, à poetisas como Rafeef Ziadah, as mulheres palestinas vêm destruindo esse estereótipo há décadas. Recentemente, o discurso poderoso da ativista palestina-estadunidense Linda Sarsour na Marcha das Mulheres, em Washington, no dia seguinte à posse de Trump, viralizou na internet. “Eu me coloco aqui em frente a vocês, sem remorsos por ser muçulmana-americana, sem remorsos por ser palestina-americana”.
Nessa reportagem, conversamos com três mulheres palestinas, que através da liderança de projetos sociais e culturais exemplificam seu empoderamento e força. Uma atriz, uma escritora, uma professora de culinária. Duas muçulmanas, uma agnóstica. Ativistas. Uma já foi presa e torturada em dois momentos da sua vida. A segunda é refugiada e desenvolve um projeto para mães de crianças com deficiência no Campo de Aida (Belém). A terceira já realizou performances em diversos países, mas quase perdeu seu show em Jerusalém por conta da restrição de locomoção imposta por Israel. Todas elas não hesitam em negar: “As mulheres palestinas têm muito poder”.
Sireen Khudairi
“Eu nasci no norte do Vale do Jordão (Cisjordânia, mas classificado, na sua maior parte, como “Área C”, o que significa que está sob o comando militar de Israel). Hoje eu moro no campo de refugiados de Dheisheh, em Belém, com meu marido. Eu era uma voluntária na Campanha de Solidariedade ao Vale do Jordão e fazia tours com turistas estrangeiros para eles saberem da nossa situação. Mas depois de um tempo, especialmente depois de ter sido presa duas vezes, foi difícil para mim voltar a fazer as mesmas coisas.
Eu comecei a pensar em como mudar isso e conquistar meu poder novamente. Então comecei a estudar teatro. Eu estudei o Teatro do Oprimido na companhia Ashtar Theatre, em Ramallah. Quando você repete a sua história, começa a olhar para ela, percebe que é só uma história. Eu lembrei de algo que meu irmão me contou depois da minha prisão. Ele disse: “A Ocupação pode destruir sua casa e tudo a sua volta, roubar sua água, sua eletricidade, seus direitos, te colocar na prisão. Mas eles não podem ocupar sua esperança”. A partir do momento em que ocupam sua esperança você realmente vive sob ocupação.
Então eu tive a ideia de um projeto para coletar histórias de diferentes pessoas, e contar os relatos para crianças e idosos. Eu comecei a coletar os relatos de pessoas do Vale do Jordão. Cada detalhe aqui na Palestina é uma história. Assim eu comecei a trabalhar como contadora de histórias. As pessoas gostam e precisam ser ouvidas, especialmente as mulheres. Elas têm histórias com detalhes mais profundos, porque são tudo na comunidade. Se você for para o Vale do Jordão vai ver que na prática as coisas são feitas pelas mulheres, mesmo nos lugares mais simples. Elas tomam conta dos animais, vendem os produtos, quando tem demolições pelo exército israelense são elas que começam a construção das casas. Elas têm muito poder.
Há muitos projetos feitos por mulheres na Palestina. Mas acho que nós temos que trabalhar mais com cultura, desenvolver projetos com significados de luta para nós, porque nós lutamos todos os dias, mas não sabemos disso. Às vezes eu perguntava para uma mulher o que ela fazia da vida e ela respondia ‘nada’, mesmo que fizesse muitas coisas. Agora eu estou começando a escrever um livro, juntando os relatos com a minha própria história.
A primeira vez que eu fui presa foi em 2013, no caminho de volta da universidade. Dois soldados me levaram para a solitária na prisão militar. Lá é o inferno… Não tem vida nenhuma, você tem que criar vida em um ambiente de um metro por dois metros, com uma latrina dentro. Fiquei lá por um mês e meio. Me lembro que a primeira vez que saí não conseguia abrir os olhos porque a luz era muito forte. Tem pequenos detalhes sobre a prisão que ninguém comenta, mas significam muito. Por exemplo, eu pedia coisas engraçadas para os soldados, tipo um espelho. Depois de um mês eu queria ver o meu rosto…
Dentro da solitária tinha um cano de água que ficava pingando a noite toda, era impossível dormir. Eu era interrogada o tempo todo, não me deixavam descansar. Eu ficava sentada na cadeira do detector de mentiras por 12 horas sem mexer um músculo, apenas respondendo ‘sim’ ou ‘não’. Perguntavam se eu amava os meus pais, se já havia mentido para a minha mãe. Claro que já menti. Eu fazia yoga durante os testes para aguentar… Eles falavam ‘você foi treinada para usar armas’. Falavam que eu estava em contato com inimigos de Israel em Gaza. Eu dizia que conhecia muitas pessoas lá, tenho familiares em Gaza e eles provavelmente já sabiam disso. Encontrei ativistas palestinas incríveis na prisão, como a Lena Jarboni, que está presa há mais de dez anos. Você não pode imaginar quanto poder ela tem…
Mas a minha segunda prisão foi a pior… O exército atacou a casa dos meus pais, a minha procura. Meu irmão me ligou e me disse para eu não voltar. Joguei meu telefone fora, fiquei foragida por três meses. Fui para uma casa pequena e fiquei pensando no que fazer com meu tempo. Tive a ideia de escrever um livro sobre o Vale do Jordão, mas acabei ele em uma semana. Então pensei que eu deveria visitar lugares que não conhecia na Cisjordânia. Tirei meu hijab, troquei a cor do meu cabelo, mudei de nome. Dizia nos checkpoints que meu nome era Maya.
Me prenderam na cidade de Nablus, em uma noite em que fazia -4 graus e nevava. Estavam tão irritados que pareciam que iriam me matar com o olhar. Me levaram para a prisão e foi o momento mais horrível da minha vida. Me colocaram em um lugar aberto, amarraram meus pés e me vendaram. Tiraram meus sapatos e meu casaco. Eu sentia pedras e agulhas no chão. Então pediram para eu correr. Soltaram cachorros atrás de mim. Eu corri e senti que tinha perdido toda a minha resistência. Até hoje, não consigo ouvir os latidos de cachorros.
Mas o teatro me devolveu meu poder. Quando eu estou no palco, sinto que tenho o poder de todas as pessoas do mundo, especialmente se tenho um público. Toda vez que termino uma performance sinto que nasci de novo. É um sentimento estranho. Quando o diretor pede para nos lembrarmos da voz dos opressores para o treinamento, é como uma revolução. Você tem que passar por isso para então poder resistir”.
Islam Jameel Abu Auda
“Nós começamos o projeto Noor Women’s Empowerment Group (Luz: Grupo de Empoderamento de Mulheres), em 2010, quando uma chef brasileira chamada Sandra veio aqui no campo de refugiados de Aida (Belém) com uma amiga belga e viram meu filho mais velho, que tem paralisia cerebral e epilepsia.
Elas tentaram ajudar meu filho e nós conversamos muito sobre ele e sobre as muitas crianças como ele aqui no campo. Nós falamos sobre como ajudar todas elas. Eu disse que não gostava que as pessoas dessem dinheiro para o meu filho. Ela pensou e teve a ideia de eu fazer um curso de culinária junto com outras mulheres do campo que tem filhos com deficiência, para arrecadar dinheiro para a reabilitação deles. Nós começamos na minha casa, nessa cozinha aqui. Eu gosto das aulas de culinária porque com ela nós ensinamos nossa cultura para os turistas, queremos que eles vejam nossa cultura e o que as mulheres podem fazer.
Mas era difícil para mim nas primeiras vezes. Eu tenho outros seis filhos e não falava inglês, era muito tímida. A Sandra precisava falar com as pessoas, mas eu não entendia. Depois ela trouxe um voluntário que nos ensinou inglês. Hoje em dia eu consigo me comunicar melhor e isso foi graças ao projeto.
A iniciativa cresceu e nós precisávamos de mais espaço porque minha casa era pequena. Meu marido me ajudou a montar os ambientes e depois de dois anos e meio nós saímos de dentro da minha casa. Nós fazemos muitas atividades ativas para mulheres. Bordado, trazemos psicólogas, ensinamos as mães e as crianças. O significado do nome ’empoderamento’ é porque nós começamos com 3, 5, 10, 13 e agora são 30 mães no projeto.
As mães precisam de alguém que venha ajudar, antes elas tinham medo de vir aqui, agora elas vêm ao projeto e dizem que precisavam de algo e de alguém para ajudar. Conseguimos até fazer uma escola, esse era o nosso sonho. Quando começamos o projeto com as aulas de culinária nós sonhávamos em fazer algo maior para as crianças. Meu filho hoje tem 17 anos e não consegue ir para a escola porque nós não temos escolas especiais para ele.
Agora temos 3 mulheres empregadas, trabalhando para 120 crianças. Uma fisioterapeuta, uma professora e uma psicóloga. É difícil e nós não temos nenhuma associação para vir e ajudar o projeto, apenas as mulheres. Para mim isso é incrível, porque as mulheres e as mães fazem tudo sozinhas.
Muitos maridos aqui tem medo até de carregar no colo os filhos com deficiência. Quem traz os filhos aqui? As mães. Quem vai trabalhar podem ser os maridos, mas muitos homens não trabalham, não têm empregos e mesmo assim não fazem nada. Eu fui até as casas e vi que quem cuida das crianças com deficiência são as mães.
A ocupação israelense é muito dura para todos, mas fica muito mais difícil quando você tem um filho com deficiência. Eu lembro uma noite em que os soldados israelenses jogaram gás dentro da minha casa. Meu filho não conseguia respirar e ele não pode andar. Nós tentamos abrir a porta e carregar meu filho, ele é pesado e todas as minhas crianças me ajudaram. Ele também desenvolveu trauma de sons de bombas. Às vezes o celular de alguém toca, ele fica com medo e começa a bater na própria cabeça. A professora ensina as crianças a brincarem, para se distraírem, mas eles sempre lembram do que acontece aqui, das crianças que foram presas e assassinadas. Nós tentamos mudar e solucionar isso, mas essa é a realidade da ocupação.
Nós mulheres mudamos muito, agora nós nos sentimos fortes, talvez já fossemos fortes antes, mas agora somos mais. Antes as pessoas não gostavam de falar que tinham crianças com deficiência, agora elas vêm aqui e perguntam se podemos ajudar. Eu me sinto muito orgulhosa.
A UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina) não faz nada sobre isso. Se nós não tínhamos ninguém para nos ajudar, precisávamos trabalhar juntas. Se trabalharmos juntas, Inshallah (“Se Deus Quiser”, em árabe) que no futuro conseguiremos algo para as mães e para as crianças. As pessoas estão tão preocupadas com a ocupação que esquecem das crianças com deficiência e das mães delas”.
Riham Isaac
“Eu venho de uma família cristã, da cidade de Beit Sahour. As pessoas não sabem mas nem todos os palestinos são muçulmanos, e nem todas as muçulmanas escolhem usar o hijab. Mas eu não sou religiosa, minha religião é a arte. Ser uma mulher aqui e fazer arte foi muito desafiador, não é algo esperado de uma mulher. Eles esperam que a gente se gradue na escola, se case ou vá para a universidade arranjar um marido. São as expectativas para mulheres em muitos lugares do mundo, aqui não é diferente.
Foi uma surpresa para as pessoas quando comecei a fazer teatro. Sou graduada em fisioterapia e isso era respeitado, eu poderia trabalhar em um hospital e ganhar dinheiro. Mas minha família me apoiou muito. Se eu fosse escutar a sociedade eu não teria esse estúdio agora, não faria nada disso. O próprio estúdio virou fofoca na cidade, as pessoas vem ver quem eu sou, o que estou fazendo – mesmo que conheçam minha família. Perguntam se eu sou casada.
Na minha opinião, as mulheres palestinas são muito fortes, mesmo quando não estão elevando suas vozes em uma associação. Elas comandam as vilas, mas o estereótipo que sai para o mundo é que somos vulneráveis, fracas. Eu já encontrei muitas mulheres inspiradoras na Palestina. Elas trabalham no campo, coletam uvas, atravessam checkpoints diariamente, acordam cedo e trabalham duro. A Palestina é, de certa forma, baseada em muitas tradições que nos impedem de conseguir direitos e justiça. Mas também temos muita força. As coisas estão mudando, estamos estudando mais, trabalhando mais. Mas, como no resto do mundo, temos uma longa jornada pelos nossos direitos.
Para mim, foi natural que eu me afastasse da fisioterapia. Eu fazia teatro ao mesmo tempo e estava sobrecarregada. O meu projeto com que mais me identifico é o último que fiz, o “I Am You”, uma performance que junta música, dança, identidade e conexões. Ela questiona o fato de sermos todos um ser, sofrendo da mesma forma e nos sentindo sozinhos nesse mundo caótico. É uma apresentação ‘clown’, bastante independente. Meu palhaço é bastante normal, honesto e vulnerável. É um viajante do mundo, que tenta descobrir o que estamos fazendo aqui, de um jeito sensitivo. Eu não uso maquiagem, apenas o nariz vermelho.
Há muita pressão para que artistas palestinos façam arte política. As pessoas têm expectativas e nos colocam na moldura das vítimas, necessariamente. Eu já fiz diversas apresentações mais politizadas. Em uma delas, me vesti com as roupas de uma palestina de Belém, que foi fotografada atirando pedras na Primeira Intifada, e fiquei empurrando uma pedra enorme pelas ruas de Ramallah. Ela se vestia com um vestido preto, um lenço e sapatos amarelos. A foto é bastante famosa e eu me sinto muito orgulhosa dessa mulher, porque ela parecia muito elegante, comum, como se tivesse saído da missa e parado para participar um pouco da Intifada. Não queria me vestir com algo clichê para a performance, como uma Keffiyeh (lenço com bordado xadrez tradicional palestino).
Não sou contra fazer política, porque viver na Palestina faz com que eu seja muito conectada com esse lugar. Mas a arte não precisa ser feita dessa forma, e eu não preciso fazer algo sobre o muro, ou sobre checkpoints, apenas porque sou artista. Me senti muito livre quando saí desse ciclo e pude escolher como me expressar sobre a humanidade.
É muito importante para mim fazer arte em um lugar como este. Em um nível pessoal, quando você vive em um espaço limitado, sem poder se locomover livremente, a arte te dá espaço para sonhar e criar coisas novas. Eu ensino crianças e universitários aqui e sinto que estão sedentos por arte. Nosso sistema educacional é muito duro, até culturalmente, pelo jeito que nossa sociedade funciona.
Eu morei em Londres por um ano e fiz um mestrado em performance na Universidade de Goldsmiths. Me apresentei em diferentes países, inclusive no Brasil, em Belém do Pará. Vocês também têm uma Belém… Mas senti que eu precisava me reconectar com minhas raízes, e que deveria compartilhar coisas com o povo aqui. Há novas ideias emergindo no mundo e eu sinto que sou mais necessária aqui, apresentando essas iniciativas que não são esperadas, criando um novo movimento.
Mas aqui a ocupação funciona principalmente limitando nossa liberdade. Para mim, o mais crítico é não poder me locomover. É mais fácil para mim conseguir um visto do que me apresentar em Jerusalém, que fica a 15 minutos daqui. Meu último desafio foi conseguir me apresentar lá, em uma galeria, em janeiro. Fiquei esperando muito tempo por uma permissão de Israel, em certo ponto achei que não conseguiria. Tive que adiar o show, e todo o tempo eu pensava como era perto mas eu não podia simplesmente ir para lá. Consegui a permissão três dias antes do show. Depende puramente da vontade das Forças Armadas, eles podem muito bem te barrar se decidirem. Não há regras”.
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Edição: Ivan Longo.
Fonte: Brasil de Fato.