Arder até as cinzas, renascer como fênix: A potência da palavra povoada de Violeta Parra (1917-1967)

Por Eduardo Carli de Moraes.

“…toda palavra se não tem brasa
se desprende e cai da árvore do tempo.”

PABLO NERUDA

citado por Antonio Skármeta em A Insurreição
(Cap. XXV, p. 189, ed. Francisco Alves, 1983)

Visitar o Chile ao raiar de 2017, aos 100 anos do nascimento de VIOLETA PARRA (1917-1967), foi ótima ocasião para uma imersão na obra desta magistral multi-artista, uma das mais celebradas cantautoras chilenas do século XX, capaz de incendiar sua palavra com seu brilhantismo e seu ânimo a ponto dela não cair da árvore do tempo.  Já se passaram 50 anos desde seu suicídio em 1967, mas Violeta Parra revela, no ano deste seu centenário, a capacidade de resiliência e de renovada atualidade que é o dom das obras rotuladas de clássicas. A travessia por Valparaíso e Santiago revelou-me um país que alimenta a chama da memória da querida presença desta violeta ainda em flor.

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Em Santiago, onde há museu consagrado a ela, havia vistosa homenagem: bem maior que um mísero outdoor, um gigante painel fotográfico (foto acima) decorava de alto a baixo o frontispício de um prédio na Avenida Libertador Bernardo O’Higgins, a via que dá acesso ao palácio presidencial La Moneda e onde o estouro de fuegos artificiales reúne a maior muvuca comemorativa do reveillon em Santiago.

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Em várias livrarias chilenas, exposto em vitrines e outros locais de destaque, marcava presença o belíssimo livro publicado pela Universidade de Valparaíso, em parceria com a Fundación Violeta Parra: Poesia (capa dura, 472 pgs). Trouxe-o comigo para servir não só como companheiro de viagem, mas como camarada na vida. Comprado na Libreria Crisis, em frente ao Congresso Nacional (Valparaíso), o livro abre janelas para a descoberta de imensos tesouros da arte popular latino-americana tão brilhantemente condensados nas canções e poemas de Parra.

Nascida no Outubro da Revolução Bolchevique de 1917, Violeta Parra terá o ano de 2017 a ela dedicado no Chile, pátria-mãe que mostra-se repleta de gratidão pela vida e pelo legado de uma de suas figuras culturais de maior relevo e importância, algo comunicado com muita potência por Paula Miranda, que destaca a influência da Teologia da Libertação tanto quanto da canção que é catarse em meio à dor e ao desamparo:

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Pintura de Claudia Martinez dedicada a Violeta Parra: “Dulce Vecina De La Verde Selva”

“Su gesto más revolucionario es abandonar progresivamente la función otorgada por el capitalismo a la canción y al arte en general, como mero accesorio artístico y de del espetáculo, para convertirlos en lugares de denuncia de las injusticias sociales y de los abusos de los poderosos, que protesta por los pobres  y redime los mártires que se han enfrentado al orden imperante: Lumumba, García Lorca, Vicente Peñaloza, Zapata, Rodríguez y Recabarren. Hay algo aquí de la teología de la liberación de la época, pero más de los valores que ha adquirido Violeta Parra de la cultura religiosa campesina: compasión, solidariedad, sacrificio, salvación, imagen de un Dios muy cercano, redentor. Hay algo também de la canción que cumple su función catártica em medio del dolor y del desamparo.” – PAULA MIRANDA (PUC-Chile), In: PARRA, Poesia, V. Valparaíso, 2016, p. 27.

Assim como o cantor e compositor Victor Jara, assassinado após o golpe de Setembro de 1973, prossegue cultuado por velhas e novas gerações (“Victor Jara será eterno”, li pintado na mochila de uma guria no metrô…), Violeta Parra também é homenageada com altos louros pelos chilenos. É descrita como “imortal”, comparada em sua maestria verbal a alguns dos luminares principais doa poesia do Chile, como Gabriela Mistral, Pablo Neruda e Nicanor Parra (irmão mais velho de Violeta). Em artigo publicado em El País, Rocío Montes escreveu:

A chilena Violeta Parra (San Fabián de Alico, 1917; Santiago do Chile, 1967) viveu múltiplas vidas ao longo de seus 49 anos. Foi cantora e compositora, ofício pelo qual foi mais reconhecida, mas também compiladora de música folclórica e artista plástica. No centenário de seu nascimento – celebrado neste ano no Chile com a publicação de livros sobre sua obra, festivais, concertos, exposições e congressos internacionais –, o país a homenageia como uma criadora diversa e promove o reconhecimento de seu legado sob uma perspectiva integral. “Por que Violeta Parra transcende?”, pergunta-se a pesquisadora Paula Miranda, uma das maiores especialistas em sua figura. “Porque tem um trabalho com a palavra muito sofisticado. A dimensão poética está presente em toda sua obra”.

Miranda fala de Violeta Parra como uma das melhores poetas da música e ressalta que a discussão sobre a entrega do Nobel de Literatura a Bob Dylan no ano passado também poderia valer para a cantora e compositora chilena: “Existe muita poesia fora dos livros e a poesia, além do mais, era cantada em sua origem”. Miranda, doutora em Literatura e autora do estudo La Poesía de Violeta Parra, publicado em 2013, cita como exemplo um dos hinos mais conhecidos da criadora: “A poesia em sua máxima expressão é aquela que consegue transformar o mundo, e isso é o que Parra faz em “Gracias a la Vida”. Por um lado agradece e, por outro, tenta retribuir algo que recebeu da vida. Sua arte não é de adorno, nem de entretenimento, mas de reflexão e emoção. Acompanha as dores e os amores humanos”, diz a pesquisadora. [LEIA O ARTIGO COMPLETO]

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Em seu texto Arder Hasta Las Cenizas, Rosabetty Muñoz, pesquisadora da obra de V. Parra, sugere que ela viveu “no tempo do asco”, sempre junto ao pueblo e suas luchas, na convicção de que o artista trabalha flamejando nas chamas da coletividade a que pertence. É preciso arder até as cinzas para dar à luz algumas pérolas de imorredoura poesia, renascente como Fênix. Só as palavras em brasa, incendiadas pela vivacidade dos afetos da gente verdadeira, são capazes de seguir dependuradas na árvore do tempo, nutrindo as gerações que se sucedem como um milagroso fruto cujo sumo não se esgota mesmo se sorvido por um milhão de bocas. Escreve Muñoz, rememorando o impacto da obra de Violeta Parra sobre seus contemporâneos:

“Así la conocí: su poesía se abrió con la ferocidad propia de un tiempo que exigía de nosotros una ligazón entre la palabra y la historia, un compromiso com el presente que ella tenía claro. (…) ‘No puede ni el más flamante / pasar en indiferencia / si brilla en nuestra conciencia / amor por los semejantes.’ (…) El el tiempo del asco (como lo llamó Stella Díaz Varin) necesitábamos voces mayores y los versos de Violeta llovieron cargados de integridad. Así como tenía claro el lugar del creador (lejos de los privilegiados, cerca de los suyos) también declara ferviente la dirección que tomarán sus llamas líricas en la lucha por denunciar y marcar los daños: ‘entre más injusticia, señor fiscal / más fuerzas tiene mi alma para cantar.’” – R. MUÑOZ, Violeta Parra: Arder Hasta Las Cenizas. p. 11-12

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“Seus trabalhos foram a base para o desenvolvimento do movimento estético-musical-político chamado de Nova Canção Chilena, do qual fizeram parte também Victor Jara, Rolando Alarcón, e Patricio Manns, além dos grupos Inti-Ilimani e Quilapayún.” – Portal Vermelho

O livro traz em sua capa uma das obras realizadas por Violeta no âmbito das artes visuais, outro domínio onde ela também expressou sua fecunda criatividade, em especial em tapeçarias cuja técnica ela aprendeu com sua mãe, tecedora de raízes indígenas e vinculada ao povo Mapuche. Muitas das tapeçarias violetianas foram expostas em Paris, no Museu de Artes Decorativas do Louvre, reaparecendo também no início dos capítulos do livro. Confira abaixo algumas reproduções das obras:

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O cinema também reavivou Violeta há alguns anos com a bela biopic Violeta Se Fue Aos Cielos (2011), de Andrés Wood (o mesmo diretor de Machuca), em que Parra foi interpretada por Francisca Gavillan. O filme  saiu consagrado no badalado festival de Sundance, colheu farta bilheteria em seu país de origem e tem mérito duradouro não só como competente esforço biográfico e dramatúrgico, mas por oferecer uma convidativa porta de entrada para quem deseja descobrir mais a fundo a vida e a obra de Violeta.

Do filme de Andrés Wood eu destacaria algumas cenas e citações que me parecem memoráveis. Em uma entrevista televisiva, Violeta Parra revela muito de suas convicções políticas e estéticas. Sobre as primeiras, quando o jornalista lhe pergunta se ela é comunista, ela brinca: “Camarada, eu sou tão comunista que, se me derem um tiro, o meu sangue sai vermelho…” Achando graça da resposta, seu interlocutor contesta: “Ora, o meu sangue também sairia vermelho…” Ao que ela retruca, estendendo a mão para cumprimentá-lo: “Que bom, camarada!”

Em outro momento da entrevista re-encenada no filme, o entrevistador pede que ela dê conselhos a jovens artistas. Ela então aconselha: “A criação é um pássaro sem plano de vôo e que nunca voará em linha reta.” Longe dos conservatórios onde a música é ensinada com formalismo e rígida disciplina, Violeta Parra buscou sua pedagogia poético-musical através da imersão junto à gente comum, em meio ao “povão”, indo beber na fonte de campesinos e Mapuches, tendo realizado monumental trabalho como compiladora do folclore del pueblo. 

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Em um dos momentos mais tocantes de Violeta Fue A Los Cielos, podemos testemunhar longas e árduas caminhadas que Violeta fazia para chegar até as moradias campestres de idosos aos quais solicitava, com doçura e interesse, que compartilhassem com ela canções de tempos idos. Um senhor recusa-se terminantemente a ajudar: havia feito um juramento de nunca mais cantar desde que seu netinho havia morrido.

Empregando toda a sedução sincera de alguém que enxerga valor imenso naquilo que o velhinho trazia enclausurado em seu crânio, Violeta busca convencer-lhe a compartilhar os tesouros musicais e poéticos que, caso não sejam cantados e anotados em um caderninho, podem perder-se para sempre. É esta percepção de que os tesouros da tradição estão ameaçados pelo trator impiedoso da modernização, de que os depositários de cancioneiros de tempos idos estão caindo no túmulo e levando consigo canções e poemas irrecuperáveis, que faz de Violeta uma infatigável pesquisadora da cultura popular. Ela parece pesquisar na certeza de que é frágil e efêmero o depositário carnal das canções cuja chama está sob ameaça de para sempre apagar-se.

Estas cenas são comovedoras por revelarem uma Violeta Parra que é o avesso e o antônimo da popstar que recebe de magnatas da indústria e de fabricadores profissionais de hits as receitas prontas para os sucessos comerciais fáceis. Revelam uma trabalhadora em prol da memória, uma folclorista que foi em andanças pelo Chile afora para pesquisar a fundo a música, a dança e a lírica que o povão havia conservado por gerações, transmitido língua a língua sem ter nunca conseguido fixar-se em partitura e ganhar assim chances maiores de sobrevivência. Sua capacidade de escuta e de interesse evocou em mim a lembrança de um dos melhores filmes brasileiros de cinema verdade já realizados: O Fim e o Princípio, de Eduardo Coutinho.

Quando Andrés Wood filma o velhinho, antes relutante em cantar e teimoso em seu silêncio juramentado, a cantar no velório de um bebê morto, é como se criasse um emblema para o mérito do labor de Violeta Parra: ela resgatou do esquecimento algumas pérolas que, sem ela, estariam mortas para sempre, oferecendo assim inestimável contribuição para a condensação cultural de uma miríade de manifestações culturais de seu povo (no Brasil, trabalhos similares foram empreendidos por um Mário de Andrade, por uma Ecléa Bosi, dentre tantos outros…).

Cena do filme de Andrés Wood

Cena do filme de Andrés Wood

A morte de um filho bebê, como narra o filme, serviu também para que Violeta, em meio aos tormentos do luto, compusesse uma de suas canções mais memoráveis – “Rin del Angelito”, célebre na versão do Inti-Illimani (ouça abaixo). Longe de qualquer pregação gospel, a canção é ainda assim uma reflexão religiosa sobre o después da “morte da carne”, cheia de um conteúdo consolador que vincula-se às ancestrais doutrinas de transmigração da alma. 

Da doutrina indiana do karma às crenças da seita do filósofo grego Pitágoras, a transmigração da alma ou metempsicose é um corpo de artigos de fé de uma ancestralidade que não sai de moda. No caso de Violeta, ela explora uma modalidade bastante latino-americana desta fé, afirmando uma espécie de panteísmo panpsiquista em que a alma do angelito falecido pode penetrar num passarinho ou num “peixinho novo”:

Ya se va para los cielos
ese querido angelito
a rogar por sus abuelos
por sus padres y hermanitos.
Cuando se muere la carne
el alma busca su sitio
adentro de una amapola
o dentro de un pajarito.

La tierra lo está esperando
con su corazón abierto
por eso es que el angelito
parece que está despierto.
Cuando se muere la carne
el alma busca su centro
en el brillo de una rosa
o de un pececito nuevo.

En su cunita de tierra
lo arrullará una campana
mientras la lluvia le limpia
su carita en la mañana.
Cuando se muere la carne
el alma busca su diana
en el misterio del mundo
que le ha abierto su ventana.

Las mariposas alegres
de ver el bello angelito
alrededor de su cuna
le caminan despacito.
Cuando se muere la carne
el alma va derechito
a saludar a la luna
y de paso al lucerito.

Adónde se fue su gracia
y a dónde fue su dulzura
porque se cae su cuerpo
como la fruta madura.
Cuando se muere la carne
el alma busca en la altura
la explicación de su vida
cortada con tal premura,
la explicación de su muerte
prisionera en una tumba.
Cuando se muere la carne
el alma se queda oscura.

De sua arte, tão enraizada nas tradições mas tão aberta também às invenções, “brotam luzes” – ainda que não haja escassez de sombras. É nesse jogo de claro e escuro que desenha-se a profundidade e a densidade destas composições que vão muito além e muito mais fundo do que a rasidão e a estreiteza a que estão limitadas as canções comerciais.

Ouçam, por exemplo, a emblemática “Cantores Que Reflecionam”, do álbum Las Últimas Composiones, um dos mais importantes discos na história da música chilena, uma daquelas poesias que não podem ser reduzidas a mera “letra de música”, já que os versos se sustentam perfeitamente em seu próprio mérito:

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En la prisión de la ansiedad
medita un astro en alta voz.
Gime y se agita como león,
como queriéndose escapar.
¿De dónde viene su corcel
con ese brillo abrumador?
Parece falso el arrebol
que se desprende de su ser.
«Viene del reino de Satán
–toda su sangre respondió–.
Quemas el árbol del amor,
dejas cenizas al pasar».

Va prisionero del placer
y siervo de la vanidad.
Busca la luz de la verdad,
mas la mentira está a sus pies.
Gloria le tiende terca red
y le aprisiona el corazón
en los silencios de su voz
que se va ahogando sin querer.
La candileja artificial
le ha encandilado la razón:
¡dale tu mano, amigo Sol,
en su tremenda oscuridad!

¿Qué es lo que canta? –digo yo.
No se consigue responder.
Vana es la abeja sin su miel,
vana la hoz sin segador.
¿Es el dinero alguna luz
para los ojos que no ven?
«Treinta denarios y una cruz»
–responde el eco de Israel.
¿De dónde viene tu mentir
y adónde empieza tu verdad?
Parece broma tu mirar;
llanto parece tu reír.

Y su conciencia dijo al fin:
«Cántale al hombre en su dolor,
en su miseria y su sudor
y en su motivo de existir».
Cuando del fondo de su ser
entendimiento así le habló,
un vino nuevo le endulzó
las amarguras de su hiel.
Hoy es su canto un azadón
que le abre surcos al vivir,
a la justicia en su raíz
y a los raudales de su voz.

En su divina comprensión
luces brotaban del cantor.

(1965-1966. In: Ultimas Composiones)

Não parece ser por mero saudosismo, típico de gente preocupada em tirar o pó dos vinis antigos, que os chilenos celebram Violeta Parra, mas sim pois esta obra tem resiliência e atualidade. Versos que ela escreveu em protesto ao presidente Ibañez (1877 – 1960), figura massacrada pelo escárnio do cineasta Alejandro Jodorowsky em seu ciclo de autobiografias surreais A Dança da Realidade Poesia Sem Fim – também servem para atacar a ditadura militar capitaneada por Pinochet entre o golpe de 1973 e o plebiscito de 1988. Já a celebração “Me Gustan Los Estudiantes” – regravada muitas vezes na América Latina, com destaque para versões de Mercedes Sosa e dos grupos corais brasileiros MPB4 & Quarteto em Cy – foi considerada apta a ilustrar vídeos no Youtube que revelam os levantes estudantis entre 2011-2014:

Que vivan los estudiantes,
jardín de las alegrías.
Son aves que no se asustan
de animal ni policía,
y no le asustan las balas
ni el ladrar de la jauría.
Caramba y zamba la cosa,
que viva la astronomía.

Que vivan los estudiantes
que rugen como los vientos
cuando les meten al oído
sotanas o regimientos,
pajarillos libertarios
igual que los elementos.
Caramba y zamba la cosa,
que vivan los experimentos.

Me gustan los estudiantes
porque son la levadura
del pan que saldrá del horno
con toda su sabrosura
para la boca del pobre
que come con amargura.
Caramba y zamba la cosa,
viva la literatura.

Me gustan los estudiantes
porque levantan el pecho
cuando les dicen harina
sabiéndose que es afrecho,
y no hacen el sordomudo
cuando se presenta el hecho.
Caramba y zamba la cosa,
el Código del Derecho.

Me gustan los estudiantes
que marchan sobre las ruinas;
con las banderas en alto
va toda la estudiantina.
Son químicos y doctores,
cirujanos y dentistas.
Caramba y zamba la cosa,
vivan los especialistas.

Me gustan los estudiantes
que van al laboratorio.
Descubren lo que se esconde
adentro del confesorio.
Ya tiene el hombre un carrito
que llegó hasta el purgatorio.
Caramba y zamba la cosa,
los libros explicatorios.

Me gustan los estudiantes
que con muy clara elocuencia
a la bolsa negra sacra
le bajó las indulgencias.
Porque, ¿hasta cuándo nos dura,
señores, la penitencia?
Caramba y zamba la cosa,
que viva toda la ciencia.

 Outra amostra da aptidão da obra de Parra para servir à apropriações criativas é uma canção como “Maldigo De Alto Cielo”: apesar de escrita muito antes do bombardeio ao palácio de La Moneda e os massacres do Setembro de 1973, foi mixada com fotografias do coup que derrubou o governo socialista, legítimo e eleito em eleições democráticas, de Salvador Allende,  em um vídeo com mais de 700.000 visualizações no Youtube (confira em La Pichanga – Música Chilena).

 

Escutar na sequência “Maldigo de Alto Cielo” e “Gracias a La Vida” é experiência inquietante: as duas canções parecem habitar dois pólos extremos, irreconciliáveis, quase como se não pudessem ter sido escritas pela mesma pessoa. Pode parecer paradoxal e absurdo que a mesma Violeta Parra que escreveu um belo hino de gratidão à vida, repleto de amor fati, espécie de símile latinoamericano de “Je Ne Regrette Rien” da francesa Edith Piaf, tenha podido compor algo o folk-punk de intensa malediciência de “Maldigo de Alto Cielo”, em que amaldiçoa tudo – a primavera e os planetas – numa orgia de pessimismo, niilismo e odium fati. Só se surpreenderá quem desconhece as complexidades afetivas que habitam e se digladiam no peito dos poetas.

Nietzsche chegou a dizer que o espírito fértil e fecundo é aquele rico em contradições, e este pensamento me ocorre ao contrastar estas duas canções: ouvi-las revela uma Violeta Parra capaz de explorar um amplo leque de afetos, de encarnar um vasto espectro de atitudes existenciais, que vai da ação de graças, sábia e serena, de “Gracias a La Vida”, à amarga maldição lançada contra o todo do mundo em “Maldigo Del Alto Cielo” por um eu-lírico sofredor, enlutado, deprimido, que ao fim de cada estrofe retorna ao seu lamento-bumerangue, que evoca uma dor imensurável, inquantificável, beirando o inefável.

 “Maldigo” talvez seja a canção que melhor evoca o estado de espírito que pôde conduzir Violeta ao suicídio – que verso pungente é “Maldigo el vocablo amor con toda su porquería!” – pero “Gracias” sintetiza a sabedoria amável e irradiante de uma artista que, para além da morte, tornou-se sol acalentando a vontade de viver dos que hoje segue celebrando seu legado, 100 anos após seu nascimento e 50 anos após sua auto-extinção. O espírito de “Gracias a La Vida” irá inspirar muitas cantoras latinoamericanas – de Mercedes Sosa a Elis Regina – mas Violeta Parra tem muitos espíritos para além da doçura graciosa, incluindo verves mais contestatórias, manifestas em canções de protestos e crítica social de espantosa atualidade.

Evoco alguns exemplos: as promessas demagógicas de políticos sacanas, cheios de falsas promessas e sorrisos hipócritas, são denunciadas em “Miren Cómo Sonrién” (p. 113). São versos que podem ainda hoje ser citados na denúncia de estelionatos eleitorais e que podem inspirar análises sobre os descaminhos da democracia representativa.

Miren cómo sonríen
los presidentes
cuando le hacen promesas
al inocente.
Miren cómo le ofrecen
al sindicato
este mundo y el otro
los candidatos.
Miren cómo redoblan
los juramentos,
pero después del voto,
doble tormento.

Miren el hervidero
de vigilante
para rociarle flores
al estudiante.
Miren cómo relumbran
carabineros
para ofrecerle premios
a los obreros.
Miren cómo se viste
cabo y sargento
para teñir de rojo
los pavimentos.

Miren cómo profanan
las sacristías
con pieles y sombreros
de hipocresía.
Miren cómo blanquearon
mes de María,
y al pobre negreguearon
la luz del día.
Miren cómo le muestran
una escopeta
para quitarle al pueblo
su marraqueta.

Miren cómo se empolvan
los funcionarios
para contar las hojas
del calendario.
Miren cómo gestionan
los secretarios
las páginas amables
de cada diario.
Miren cómo sonríen,
angelicales.
Miren cómo se olvidan
que son mortales.

Já em “Al Centro de la Injusticia”, uma mordaz crítica social, Violeta Parra faz por merecer sua pertença junto aos maiores nomes da canção de protesto em todos os tempos. Apesar de bem menos conhecida do que os norte-americanos (Woody Guthrie, Bob Dylan, Joan Baez), Violeta é uma cantora folk que soube dirigir afiados petardos contra a injustiça social, as barbáries militaristas, os desgovernos autoritários; até mesmo a especulação imobiliária e o turismo alienado são alvo alvejados pela cantautora, e isso décadas antes de estarem na crista da onda os fenômenos da gentrificação:

“Linda se ve la patria, señor turista,
pero no le han mostrado las callampitas.
Mientras gastan millones en un momento,
de hambre se muere gente que es un portento…” (p. 115)

O que torna a obra de Parra tão resiliente, tão capaz de sobreviver aos 50 anos de sua ausência física entre os vivos, talvez seja aquilo que chamo de a potência da palavra povoada. Com isso quero dizer que Violeta Parra não é simplesmente uma poetisa que expressa afetos e impressões individuais, não é apenas um eu isolado que fala sobre si, mas sim alguém que põe o seu verbo e sua voz, sua verve e sua arte, em contato íntimo e cotidiano com todo um povo.

Sua poesia busca amplificar a potência e disseminar a sabedoria de uma coletividade que atravessa as gerações, ainda que o precioso trabalho de resgate dos tesouros acumulados pela tradição não impeça que Violeta seja também inventiva e recriadora. Como Maiakóvski, que em célebre poema fazia-se caixa de ressonância para 150 milhões de russos, Parra besunta-se com os chilenos para tecer seus cantos. Por isso, ouvi-la é mais que ouvir uma mulher de extraordinário talento, é entrar em contato com a pulsação viva de todo um pueblo em seu esforço de criar beleza imorredoura e palavras que não vão cair da árvore do tempo.

Fonte: Casa de Vidro. 

1 COMENTÁRIO

  1. Encantada e muito comovida com tamanha força poética. Acho que as palavras eram arma e ternura para essa grande artista. Foi linda a simetria com Maiakovski, outro ‘cientista’ na arte de escrever.

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