Rosália, Márcia, Suzana. Elas foram três das gaúchas mortas no fim do ano no Estado apenas por serem mulheres, em crimes que se assemelham àquele que chocou o país na noite de Réveillon, quando um homem de Campinas matou a mãe do filho e, com ela, outras 11 pessoas, incluindo a criança. Em uma palavra: feminicídio.
Rosália da Silva, 35 anos, foi assassinada em Horizontina pelo ex-companheiro, na frente da filha de oito anos. Em Caxias do Sul, o ex-marido de Márcia Ferrarez, 31 anos, preparou uma emboscada para baleá-la na chegada a sua casa. Perto dali, em Farroupilha, Suzana Santos da Silveira perdeu a vida aos 20 anos, atingida por tiros pouco tempo depois de terminar um relacionamento.
Todas foram vítimas de um tipo recorrente de crime que nem a Lei do Feminicídio, em vigor desde março de 2015, nem as medidas protetivas disponibilizadas pela Lei Maria da Penha têm sido suficientes para diminuir. E o pano de fundo é, invariavelmente, o machismo, como explica a pesquisadora Mary Ellsberg, diretora do Global Women’s Institute.
Todos os estudos que fizemos indicaram que não é tanto a pobreza e a falta de educação ou de desenvolvimento econômico que produzem os altos índices de violência contra a mulher, mas o machismo, as normas culturais e sociais que colocam as mulheres em um plano inferior aos homens e que criam os homens, desde criança, com o pensamento de que eles têm o direito de impor sua opinião e seu corpo sobre elas.
Isso é o que está alimentando os altos índices de violência em todos os países explica Mary desde Washington, nos Estados Unidos. A Organização das Nações Unidas aponta que um terço das mulheres em todo o mundo já sofreu ou vai sofrer violência ou abuso sexual cometidos, na maior parte dos casos, por alguém que é ou já foi seu parceiro íntimo. No Brasil, uma mulher morre vítima de feminicídio a cada uma hora e meia, como apontou, em 2013, o estudo Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Em meio a 6 mil processos de violência contra a mulher, a promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo Maria Gabriela Manssur alerta que os assassinatos de mulheres já se tornaram um dos principais problemas do Brasil.
Quando uma mulher é morta, não é porque simplesmente uma pessoa a abordou e resolveu cometer um feminicídio contra ela. Em 99% dos casos, essa mulher estava em um ciclo da violência que começou com uma discussão, um relacionamento abusivo, passou para ameaças, xingamentos, lesões corporais leves e mais graves até culminar no feminicídio — afirma a promotora.
No ranking da Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil ocupa a quinta posição entre os países onde mais se matam mulheres apenas por seu gênero. Foram 5 mil mortes por ano entre 2001 e 2011, segundo estudo do Ipea. E a maior parte dos assassinos é bem próxima da vítima. A pesquisa concluiu que grande parte das mortes são decorrentes de violência doméstica e familiar contra a mulher, já que aproximadamente um terço dos assassinatos entre 2009 e 2011 foram registrados dentro da própria casa das vítimas. Os crimes ocorrem, sobretudo, após o término de namoros ou casamentos, cometidos por homens que não aceitam a separação.
O homem tem uma sensação de superioridade em relação às mulheres. A partir do momento em que elas vão conquistando espaço, liberdade financeira e afetiva, vão se desvinculando de relacionamentos abusivos, com mais autonomia para fazer suas próprias escolhas. Às vezes, o homem nem gosta mais dela, mas não quer perder o controle. Ele não se conforma e acaba perseguindo e ameaçando a mulher. Muitas vezes, essa ameaça, perseguição e violência física acaba chegando à pior forma de expressão da violência contra a mulher, que é o feminicídio — explica a promotora Gabriela, que criou o Movimento pela Mulher para promover o empoderamento e a recuperação da autoestima.
Presente em todas as classes sociais, o feminicídio afeta não apenas suas vítimas, mas a sociedade como um todo. Cada assassinato de uma mulher carrega uma tragédia impossível de ser mensurada nas estatísticas. Envolve filhos que perdem as mães e estruturas familiares inteiras que se desestabilizam. E, por mais contraditório que pareça, o momento em que a mulher toma coragem para romper o círculo de violência e fazer uma denúncia contra o agressor pode ser quando ela está mais exposta ao risco de morte.
Uma mulher com medida protetiva tem mais chance de ser assassinada. Esse fato ainda não é levado em consideração no Brasil, mas já há estudos nos Estados Unidos que mostram por que determinadas medidas punitivas aos agressores se tornam um perigo para as vítimas, pois desencadeiam um sentimento de vingança no homem em relação à mulher. É o momento em que ela corre mais risco de ser assassinada — explica a técnica de Planejamento e Pesquisa do Ipea Leila Posenato Garcia, organizadora de um dos mais completos estudos sobre os feminicídios no Brasil.
No Rio Grande do Sul, os feminicídios ocorrem ao ritmo de um a cada quatro ou cinco dias. Até o fechamento desta edição, as estatísticas da Secretaria de Segurança Pública davam conta dos números dos seis primeiros meses do ano passado: 40 feminicídios _ três deles em Porto Alegre _, além de 135 tentativas não consumadas.
Ainda assim, provavelmente não faltará na caixa de comentários desta reportagem mensagens defendendo que essa informação é falsa, que esse tipo de crime não existe ou que as mulheres estão se vitimizando. Também faz parte da cultura do machismo desacreditar, menosprezar e até desmentir a fala das mulheres.
Infelizmente, a palavra da mulher ainda é posta em jogo. Ela como prova isolada é questionada por muitas pessoas que aplicam a Lei Maria da Penha. Um dos nossos desafios é fazer valer a palavra da mulher com valor probatório de grande importância ou até de maior importância no processo penal e tirar a impressão de que ela não está sendo verdadeira quando ela bate nas portas da Justiça e relata uma violência física, psicológica ou moral — explica Gabriela.
E por falar em palavra, a promotora afirma que as brasileiras precisam se apoderar do substantivo “feminicídio”, pois ele é uma conquista dos direitos da mulher e dos movimentos feministas:
Parece que tudo o que vem da mulher não merece crédito. As pessoas não se utilizam do termo para não dar esse poder às mulheres. É preciso fazer uma revolução cultural, social e histórica para que a gente consiga colocar na cabeça das pessoas que as mulheres estão sofrendo violência e nós precisamos fazer alguma coisa.
As ações sugeridas vão muito além das leis. Embora seja necessária uma legislação rígida _ e fundos para garantir que seja realmente cumprida —, o Código Penal de um país, por si só, não é capaz de impedir que as mulheres parem de ser mortas ou de sofrer violência doméstica. É preciso mudar a educação e promover reflexões profundas sobre as normas culturais e sociais que têm orientado a maneira como as mulheres e os homens são criados.
O combate à violência e a promoção da igualdade do gênero beneficia a sociedade como um todo, incluindo os homens. Pesquisas do Banco Mundial mostram que a redução da desigualdade de gênero e o enfrentamento da violência contribui, e muito, para o desenvolvimento econômico e social dos países — afirma Leila, do Ipea.
O QUE É FEMINICÍDIO
A palavra define o assassinato de uma ou várias mulheres motivado por questões de gênero, ou seja, simplesmente por serem mulheres. O feminicídio não se refere a todo e qualquer homicídio contra uma mulher. Para se enquadrar como feminicídio, a motivação do crime precisa estar relacionada ao fato de a vítima ser do sexo feminino, o que costuma acontecer nos crimes envolvendo ex-maridos ou ex-namorados.
A LEI
O feminicídio é considerado crime hediondo, previsto em lei (nº 13.104) desde 2015. A legislação o diferencia dos homicídios simples. Se o assassinato envolver “violência doméstica e familiar; e menosprezo ou discriminação à condição de mulher”, segundo a legislação, caracteriza feminicídio.
DENUNCIE
Mulheres vítimas de violência doméstica devem denunciar as agressões por meio do fone 180. O número funciona 24 horas e conecta as mulheres aos serviços que integram a rede nacional de enfrentamento à violência contra a mulher, sob amparo da Lei Maria da Penha.
Las hermanas dão o exemplo
Com o slogan “Vivas nos queremos”, a luta contra o feminicídio ganhou força na Argentina por meio do movimento Ni Una Menos. Autodefinida como “grito coletivo contra a violência machista”, a campanha passou a inspirar iniciativas semelhantes em outros países da América Latina ao realizar protestos massivos e até uma inédita greve geral de mulheres, em outubro. A mobilização ganhou força após o assassinato da adolescente Lucía Pérez, 16 anos.
Em 15 de outubro, ela foi drogada, estuprada e empalada na cidade de Mar del Plata em um feminicídio brutal que causou comoção em todo o país. Em 2015, a Corte Suprema de Justiça da Argentina contabilizou 235 feminicídios, uma média de um assassinato a cada 36 horas. O Ni Una Menos estabeleceu cinco prioridades para combater crimes contra as mulheres, como a garantia de que todas as vítimas possam ter acesso à Justiça e que a educação sexual seja garantida em todos os níveis de ensino.
Um documento elaborado pela campanha afirma que “nos últimos anos, os feminicídios deixaram cerca de 1,5 mil crianças órfãs, e algumas delas são obrigadas a conviver com os assassinos. O problema é de todos. A solução precisa ser construída em conjunto. Precisamos estabelecer compromissos para mudar uma cultura que tende a pensar a mulher como objeto de consumo e descarte e não como uma pessoa autônoma”.
Foi aprovada, no mês passado, uma lei que pune as cantadas e assédios às mulheres nas ruas com multas de até mil pesos (cerca de R$ 200). Divulgado em 2016, o primeiro Índice Nacional de Violência Machista apontou que 97% das argentinas já foram alvo de cantadas grosseiros ou assédio.
Fonte: Compromisso e Atitude.