Por Wallace Oliveira.
Para o Pe. Jaldemir Vitório, celebração natalina foi transformada em comércio pelo capitalismo neoliberal
De acordo com pesquisa do instituto Pew Research Center, o Brasil é o segundo maior país cristão do mundo, com 175 milhões de pessoas que se declaram católicas ou protestantes. Ao fim de cada ano, cristãos e não cristãos congratulam-se e trocam presentes em lembrança do nascimento de Jesus. Nesse momento, a sociedade brasileira parece estar aberta a pensar sua própria espiritualidade, mas, contraditoriamente, o Natal se torna cada vez mais um evento tributado ao consumo e menos à reflexão. Qual será, afinal, o sentido do Natal, do cristianismo e das religiões cristãs? Para discutir essas questões, o Brasil de Fato MG conversou com o Pe. Jaldemir Vitório, teólogo e professor do Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta (FAJE), em Belo Horizonte.
Brasil de Fato MG – A celebração natalina tenta trazer para o presente a memória e a mensagem de um homem que, há dois mil anos, nasceu pobre, perseguido e sem teto, refugiado em uma manjedoura miserável. O que isso significa?
Pe Jaldemir Vitório – Houve uma grande modificação na mensagem cristã ao longo destes dois milênios. É preciso ler com atenção a experiência de Jesus em seu contexto religioso e político. Na época, ele encontrou uma religião extremamente legalista, na qual as pessoas achavam que estava tudo bem pelo fato de viverem aquelas normas religiosas impostas, às vezes de maneira fanática. Por outro lado, havia a dominação da Pax Romana, quando o império havia calado os mais fracos pela força. Jesus entrou na contramão dessa dupla realidade, em suas vertentes religiosa e política. Ele tentou formar comunidades alternativas a esse sistema, fundadas na partilha, na fraternidade, na solidariedade. É o que está escrito nos Atos dos Apóstolos: “entre eles, não havia necessitados”, “um só coração e uma só alma”, “repartiam entre si o que tinham”.
Com o passar do tempo, o Cristianismo foi se transformando em uma grande instituição. Um momento dramático foi quando o imperador Constantino [século IV] tornou-se cristão e o Cristianismo passou a ser a religião oficial do império. Então, aquilo que era perseguição, mas também humildade e solidariedade, virou grandeza, basílicas, cardeais. Desde então, os líderes das igrejas são, em sua maioria, cópias dos poderosos. Começa aí a derrocada do projeto de Jesus, embora, nesse meio tempo, encontremos inúmeros pequenos grupos que expressaram aquela espiritualidade original. O caso mais conhecido é o de São Francisco de Assis.
Na modernidade, houve uma ruptura entre a religião e a sociedade, entre fé e cultura, razão e fé. A igreja passou a estar na contramão da cultura moderna, até que, durante o Concílio Vaticano II (entre 1962 e 1965), fez-se uma tentativa de reconciliação com a história, trazendo novamente a fé cristã com peso social. A partir daí, entram figuras como Dom Paulo Evaristo, Dom Helder Câmara, Irmã Dorothy e tantos outros devotados ao serviço ao próximo, no sentido apresentado por Jesus.
Por que o Natal se tornou um grande culto ao consumo?
O capitalismo neoliberal transforma tudo em comércio. O Natal foi descristianizado e Jesus passou a ser um detalhe. Em qualquer shopping, há decoração natalina com Papai Noel, mas não há Jesus. O Natal foi assumido pela sociedade como tempo de gastar, festejar, dar presentes. É um tempo que vai alavancar a economia. Na segunda-feira, os jornais dirão se o Natal foi bom pelo volume das vendas dos dias anteriores. Trata-se de uma festa pagã que nada tem a ver com Jesus. Tem a ver com isso o fato de que, num país onde se fala tanto em Jesus, haja tanta corrupção, pobreza, desrespeito pela dignidade humana. Celebramos o Natal onde Jesus não tem vez.
Quais as semelhanças entre a Palestina do tempo de Jesus e o mundo em que vivemos?
A grande novidade de Jesus foi não apresentar como caminho de salvação alguém forte, poderoso, sábio aos olhos do mundo, mas alguém extremamente frágil. Os magos do oriente procuravam o rei dos judeus. Quando disseram isso ao rei Herodes, ele ficou apavorado, sentiu-se ameaçado por esse novo rei. Os magos seguiram a estrela no céu e, chegando a Belém, encontraram um menino pobre deitado na manjedoura, no meio dos pastores, que eram um grupo social que vivia na periferia das cidades por serem odiados pelos agricultores. Ao se defrontarem com aquele menino, os magos lhe oferecem presentes, reconhecendo nele a presença de Deus.
Porém, foi posto na cabeça das pessoas que a salvação vem dos grandes, dos poderosos, dos ricos, daqueles que roubam e massacram o povo. Certas Igrejas propõem resolver problemas pela ação mágica das lideranças religiosas, desde que você pague o dízimo ou coisa parecida. Isso é uma embromação religiosa e não tem nada a ver com o projeto de Jesus, que pensou a transformação a partir das bases, dos pequenos, dos marginalizados.
Na semana passada, morreu Dom Paulo Evaristo Arns, importante referência na defesa dos direitos humanos. Qual é o seu principal legado?
A história de Dom Paulo tem dois momentos. Antes, ele era um intelectual formado na Sorbonne (Universidade de Paris) com uma tese singular, explicando a arte da confecção de livros no tempo de São Jerônimo. Ele vivia estudando os teólogos e dizem até que era um professor enjoadinho. Depois, esse mesmo homem é feito arcebispo de São Paulo em plena ditadura. Eu estudava lá nessa época e lembro quando ele chegou de Roma como Cardeal. Quando alguém se tornava cardeal, a roupagem era dada pelo governo, mas os militares não fizeram isso para Dom Paulo. Houve uma recepção feita pelo povo, sem militares. As pessoas foram convocadas a levar rosas para receber Dom Paulo na Praça da Sé.
A realidade converteu Dom Paulo, coisa que não acontece com muitos líderes religiosos. Perante as denúncias de torturas, prisões e desaparecimentos, aquele homem se torna um leão na defesa dos perseguidos, sem medo de enfrentar nada nem ninguém, nem mesmo o Vaticano, nem mesmo o ditador Emílio Garrastazu Médici. Ele arriscou a própria vida.
Dom Paulo não pertencia a nenhuma congregação do Vaticano e foi responsável por pensar a Igreja de maneira diferente. Mas o que fizeram com ele no Vaticano foi algo indigno. Ele foi substituído e a Cúria Romana cuidou de implementar o contrário de tudo o que ele queria. Assim, ele foi marginalizado pela própria Igreja, mas não abriu mão de sua opção. Eu acredito que, por isso mesmo, ele foi um dos homens mais importantes da história do Brasil.
No ano passado, em encontro com movimentos populares na Bolívia, o Papa Francisco declarou que o sistema capitalista é insuportável, que não o suporta os pobres, os trabalhadores e tampouco a natureza. Qual o efeito desse posicionamento dentro e fora da Igreja?
Desde pequeno, Francisco foi uma pessoa próxima da realidade da injustiça e da miséria. Por outro lado, ele procurava distinguir o cristianismo do marxismo, que naquela época era uma presença muito forte na América Latina. Por isso, muitos o chamavam de conservador e ele teve conflitos na Argentina.
Feito papa, Francisco teve a coragem de levar para o Vaticano aquilo que ele sempre acreditou, desarrumando uma casa milenarmente arrumada pela Cúria Romana e resgatando a simplicidade e solidariedade com os pobres. Acontece que, se ele conquistou o reconhecimento e a simpatia da sociedade e de muitas pessoas que não têm religião, por outro lado, atraiu a ira das lideranças conservadoras da Igreja, de modo que ele é rejeitado por um grupo de católicos conservadores que estão ao lado dos poderosos e acham que Francisco está destruindo a Igreja. Ao mesmo tempo em que é muito escutado por não cristãos ou pelos simples da Igreja, encontra dificuldades na Cúria.
Isso não o impede de fazer suas críticas a esse esquema retrógrado que mantém a Igreja cativa de equívocos históricos. Francisco viveu toda a vida no conflito. O Papa Bento XVI não teria condições de enfrentar problemas como o da pedofilia, embora seja uma pessoa muito gentil. Ele passou a vida na academia, nunca desceu à realidade. Já Francisco foi a vida toda pé no chão, acostumado a situações conflitivas.
Eu acho que a principal pregação dele é o exemplo. Ele faz coisas que nenhum outro papa fazia, na linha da fidelidade a Jesus, ao Evangelho e ao povo: manter a compaixão pelos sofredores, criar diálogo entre grupos que não dialogavam, como na aproximação com o patriarca de Constantinopla. Ele realmente está tentando, a partir da cúpula, acender uma luz.
Na medida em que o Natal parece reunir, numa mesma festividade, cristãos e não cristãos, qual é o foco dessa celebração?
Para ambos, o foco é a reconstituição da humanidade, a dignidade de qualquer ser humano. Isso significa, na tradição judaico-cristã, resgatar a imagem de Deus. No nosso mundo, as pessoas são classificadas entre ricos e pobres, bonitos e feios, saradões e deficientes, cultos e incultos, patrões e empregados. Por outro lado, experimentamos uma banalização da vida, como vimos no assassinato do embaixador da Rússia na Turquia, naquele atentado em Berlim ou na questão da migração do Norte da África para a Europa, com o Mediterrâneo se transformando em cemitério de refugiados. Outro fato marcante é que se rouba, da forma mais descarada, dinheiro que deveria ir para hospitais, obras de saneamento, educação. Às vezes, quem rouba são membros de Igrejas que se apresentam em nome de Cristo.
Ora, se o Natal não questiona nossa maneira de ver a humanidade, ele não tem sentido nenhum. Quando conseguimos apresentá-lo assim, é possível que as pessoas de boa vontade se tornem parceiras da mesma luta. A humanidade está ferida e precisamos resgatá-la. Eu falo aqui da humanidade de todas as pessoas e não de um grupinho privilegiado.
Em especial, eu chamaria a atenção para a responsabilidade das Igrejas. Elas estão cada vez mais irresponsáveis e não escutam a convocação de Jesus. Muitas vezes, as Igrejas substituem a fé pela estética, pelas aparências, esquecendo o fundamental, que é a construção da nova humanidade querida por Jesus.
Fonte: Brasil de Fato.