O Ministério Público Federal (MPF) obteve tutela antecipada na Ação Civil Pública nº 64483-95.2015.4.01.3800, obrigando a Fundação Nacional do Índio (Funai) a concluir, no prazo de um ano, o processo de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Krenak de Sete Salões, adjacente ao atual território da etnia localizado na região leste do estado de Minas Gerais.
A ação, ajuizada em dezembro do ano passado, pede que o Estado brasileiro reconheça as graves violações de direitos cometidas contra o povo indígena Krenak durante a ditadura militar, adotando medidas de reparação em favor de sua cultura.
Para o procurador regional dos Direitos do Cidadão, Edmundo Antônio Dias, “a decisão reveste-se de especial importância num momento em que os povos indígenas se veem sob crescente ameaça de retrocesso quanto ao reconhecimento de seus territórios. A Justiça Federal demonstrou grande sensibilidade à necessidade de reparação aos povos indígenas pelas graves violações que sofreram durante o regime militar. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade estima que pelo menos 8.350 índios tenham sido mortos em todo o país no período investigado, além de descrever inúmeros outros abusos, como os que foram narrados nesta ação”.
Os Krenak ocupavam terras situadas no município de Resplendor, à margem esquerda do rio Doce. Durante a ditadura militar, a Ruralminas, uma fundação pública do estado, outorgou as terras dos indígenas a fazendeiros, que foram se apropriando indevidamente de glebas naquela região.
Na ação, o MPF narrou, com profusão de detalhes, três episódios principais ocorridos durante aquele período: a criação da Guarda Rural Indígena (GRIN), a instalação de um presídio chamado de “Reformatório Krenak”, e o deslocamento forçado para a fazenda Guarani, no município de Carmésia/MG, que também funcionou como centro de detenção arbitrária de indígenas.
Nesses locais, vigorou um ambiente de exceção, com trabalhos forçados, tortura, remoção compulsória e intensa desagregação social impostos ao povo Krenak.
Para o Reformatório Krenak, foram enviados indígenas de mais de 15 etnias, oriundos de ao menos 11 estados das cinco regiões do país.
Segundo Edmundo Antônio Dias, “o reformatório era um presídio sem previsão legal, destinado a confinar indígenas em razão de condutas valoradas segundo critérios inteiramente subjetivos. Ali funcionou uma verdadeira polícia de costumes. As condutas em geral sequer eram previstas pela legislação penal e os índios não eram submetidos a julgamento. Os índios não podiam viver sua própria cultura, praticar seus rituais, nem mesmo conversar na língua materna. Crianças, mulheres e idosos eram vítimas dos atos de arbítrio, além de serem obrigados a executar tarefas para os policiais, sendo castigados quando não as realizassem. Também há relatos de abusos sexuais cometidos contra as mulheres Krenak pelos policiais militares que faziam a guarda do reformatório”.
Outra situação que ilustra o ambiente da época aconteceu na solenidade de formatura da 1ª turma da Guarda Rural Indígena (GRIN), um grupamento composto por indígenas de várias etnias sob o comando de um delegado da Polícia Militar de Minas Gerais. No evento, que contou com a presença do então governador de Minas Gerais, Israel Pinheiro, do seu secretário estadual de Educação, José Maria Alkmin – que fora vice-presidente da República entre 1964 e 1967 – e de outras altas autoridades federais, houve um desfile durante o qual foi exibido um índio dependurado em um pau de arara. A cena, filmada, é a única registrada no Brasil que mostra, em um evento oficial, um ato de tortura.
Em 1972, o povo Krenak foi retirado à força de suas terras e levado para a Fazenda Guarani, situada no município de Carmésia, a 343 km de distância. O objetivo real do deslocamento forçado foi de liberar as terras para fazendeiros que, no ano anterior, haviam perdido uma ação de reintegração de posse.
Os Krenak referem-se ao episódio do exílio com profundo sofrimento, devido à distância do rio Doce, que era o centro de sua vida cultural e espiritual. Por oito anos, eles suportaram as péssimas condições de vida na Fazenda Guarani, que funcionou como uma continuação do Reformatório Krenak.
Somente em 1983, a Funai ajuizou uma ação ordinária de nulidade dos títulos concedidos pelo Estado de Minas Gerais e pela Ruralminas aos fazendeiros. Dez anos depois, em 1993, o STF julgou declarou a nulidade dos títulos de propriedade.
Mas, apesar dessa decisão proferida há 23 anos, até hoje o processo de Identificação e Delimitação de todo o território Krenak não foi concluído pela Funai.
Resgate cultural
Na ação, o MPF também pediu que os réus implementem várias ações para resgatar e preservar a cultura e a língua Krenak e promovam a tradução da Constituição Brasileira, da Convenção nº 169 da OIT e do texto temático do relatório final da Comissão Nacional da Verdade.
Ao deferir o pedido, o juízo federal registrou que, diante da especificidade da língua indígena e a escassez de pessoal habilitado, deve ser constituído um grupo de trabalho formado pela comunidade Krenak, Funai e outras instituições relacionadas à temática indígena, para o estabelecimento de uma agenda de encontros, os quais devem ter início em até 180 dias.
Outra medida deferida na decisão judicial foi a de obrigar a Funai e o Estado de Minas Gerais, através da Secretaria de Estado da Educação, a estenderem aos indígenas, após consulta à comunidade, oficinas de trabalho linguístico como forma de resgatar e preservar a língua Krenak.
Memória
O MPF também pediu que a União, através do Arquivo Nacional, fosse obrigada a reunir, sistematizar e publicar toda a documentação relativa às violações de direitos humanos sofridas pelos povos indígenas durante o período da ditadura militar, disponibilizando-as na rede mundial de computadores.
A magistrada da 14ª Vara Federal de Belo Horizonte deferiu o pedido, dando prazo de um ano para cumprimento da medida.
No prazo de 180 dias, Funai, União, Ruralminas e Estado de Minas Gerais também “deverão entregar ao povo indígena Krenak cópia de todos os documentos governamentais, mantidos sob qualquer meio impresso, digital ou audiovisual, produzidos no período da ditadura militar, especialmente os pertinentes ao Reformatório Krenak e à transferência compulsória desse povo à Fazenda Guarani”.
Fonte: CIMI.