Por Maicon Cláudio da Silva.
Das eleições municipais de 2016, chama atenção o resultado nas duas maiores cidades do país: em São Paulo venceu um megaempresário, no Rio de Janeiro um pastor de Igreja neopentecostal. É, de forma simbólica, uma expressão forte da relação carnal entre capital e ideologia.
Ideologia, segundo o filosofo venezuelano Ludovico Silva, pode ser entendida na obra de Marx de duas maneiras. Em um primeiro caso, a que ele chama de sentido lato, percebem-se “fenômenos como a arte e a ciência, e em geral toda expressão espiritual da sociedade (seja ou não “encobridora” e formadora de falsa consciência) [como] parte da ideologia da sociedade”.
Contudo, não se pode por em um mesmo nível analítico “um fenômeno como a arte de Shakespeare e o Código Napoleônico; o primeiro é expressão de uma visão profunda e geral das relações humanas, que em vez de ocultá-las, as denunciam e as intuem magistralmente; o segundo, ao contrário, é um aparato jurídico destinado a justificar um estado capitalista, um estado de exploração, de propriedade privada, de privilégios”. É desta percepção que surge o sentido estrito de ideologia, que a compreende como falseamento da realidade. Não um falseamento qualquer, mas sim aquele ligado à exploração das classes dominantes sobre as subalternas.
Ainda que existam dois sentidos de ideologia, é claramente o sentido estrito o mais útil aos trabalhadores; isto porque sua compreensão desvela a luta de classes existente na sociedade capitalista. E no capitalismo atual, em que os meios de comunicação de massa atingem praticamente toda a população mundial, o domínio da ideologia nas massas é um dos principais fatores que tem freado a participação popular em momentos revolucionários decisivos. Não por acaso o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini deixa de produzir filmes para as massas e passa a se concentrar em cinema para as vanguardas. Estava desiludido com a sociedade dominada pelos meios de comunicação de massa.
Esse domínio ideológico da população acontece através da produção do que Ludovico Silva chama de mais-valia ideológica. “A televisão não é um ente abstrato. É por dentro, uma mercadoria que nos faz ver outras mercadorias – culturais ou não – e nos fala de suas excelências.” O tempo “livre” dos trabalhadores na sociedade capitalista não é um momento de desenvolvimento pleno de nossas potencialidades, mas sim um simples “não trabalho”. Tentamos escapar da alienação da produção, mas nos afundamos na alienação ideológica. “É o tempo do rádio, da televisão, dos jornais, do cinema, das revistas e, ainda que só se dê um passeio, o tempo dos anúncios luminosos, das lojas, das mercadorias”.
O papel que a mais-valia desempenha para a produção material das relações capitalistas, a mais-valia ideológica representa para a reprodução ideológica do sistema. Essa exploração imaterial causada principalmente pela televisão, engendra submissão, escravidão inconsciente e lealdade ao sistema de exploração material do homem pelo homem.
Sendo assim, o capital nos domina enquanto trabalhadores de duas maneiras. O faz diretamente através do sistema produtivo, em que somos obrigados para garantir nossa sobrevivência a vender nossa força de trabalho aos detentores de meios de produção, isto é, aos capitalistas; mas também, através da ideologia onde ele domina indiretamente.
Não surpreende, portanto, quando vemos no mapa do resultado das eleições no Rio de Janeiro, um predomínio de votos no Bispo Marcelo Crivella justo em áreas mais pobres; enquanto que os votos de Marcelo Freixo se concentraram principalmente na zona Sul, tradicionalmente mais rica.
Nas últimas décadas, o domínio das igrejas neopentecostais sobre a classe trabalhadora tem se acentuado, não só pelas seguidas instalações de templos em comunidades periféricas, como também através de programas na televisão. Vale destacar que a segunda maior rede televisa do país pertence ao fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, mesma igreja de Marcelo Crivella. Da mesma maneira, a quase totalidade dos canais de rede aberta de televisão tem horas e mais horas arrendadas pelas mesmas igrejas. Nas palavras de Marx, “A hipoteca que tem o camponês sobre os bens celestiais garante a hipoteca que tem a burguesia sobre os bens do camponês”.
Da mesma maneira, toda a campanha midiática que vem ocorrendo desde as Jornadas de Junho de 2013, mas principalmente com o andamento do processo de impeachment da presidente Dilma, além de reforçar um estereótipo de que a esquerda é incompetente e responsável pelos grandes problemas do país, tem cada vez mais criado um consenso de que “políticos são todos iguais” e que “a política não presta”. Essa insatisfação popular ao invés de ser direcionada aos políticos da elite é, por interesse dessas mesmas elites, direcionada à política em geral. Tal fenômeno pode ser uma das causas da rejeição a candidatos de esquerda, da grande porcentagem de abstenções e votos brancos e nulos no país, e também de certo reforço aos “perfis técnicos” para cargos políticos. A eleição de João Doria Júnior para a prefeitura de São Paulo é exemplo disto. Doria representa o empresário bem sucedido, com capacidade técnica para gerir grandes negócios, sendo, do ponto de vista ideológico, apto para administrar uma grande cidade como a capital paulista.
Desta maneira, ainda que saibamos que numa democracia burguesa, as eleições sejam apenas um simulacro de democracia real, o resultado refletiu de forma clara o domínio ideológico da burguesia sobre os trabalhadores. No sistema capitalista, estamos sempre em desvantagem em relação ao poder da ideologia. Contudo temos uma arma essencial do nosso lado, a realidade, que tem se imposto cada vez mais sobre nossas vidas.
As contradições do desenvolvimento capitalista dependente, que nos próximos anos tendem a se acentuar, despertarão a classe trabalhadora da letargia dos últimos treze anos. Neste despertar, os trabalhadores se mostrarão com todas suas contradições e debilidades, afinal sua formação enquanto ser social é entranhada das ideologias dominantes. Caberá à vanguarda, enfrentar esta realidade através da organização e do desenvolvimento de consciência de classe nos trabalhadores.
O mais complexo é que na sociedade capitalista, não há imunes à ideologia. É por isso que Leandro Konder afirma que: “Antes de poder transformar a sociedade na qual nasceu e atua, o revolucionário é em boa parte formado por ela, de modo que seria ingenuidade supor que ele possa permanecer completamente imune aos venenos dela. Muitas, muitíssimas vezes, as ideias revolucionárias se combinam, na mesma pessoa, com sentimentos bastante reacionários e com preconceitos surpreendentemente conservadores”.
Teremos, portanto, que superar essas debilidades. Nessas eleições, por exemplo, não devemos isentar a esquerda de erros. A dificuldade em dialogar com a população trabalhadora ficou muito clara. Resta-nos, portanto, nos reinventarmos. Somente a consciência de classe poderá enfrentar a ideologia dominante, e é através dela que nos reinventaremos e despertaremos a classe trabalhadora para a luta.
Fonte: IELA.