Por Fernando Martínez Heredia.
Tradução: Elissandro dos Santos Santana, para Desacato.info.
Palavras na inauguração na Fiesta de la Cubana, na cidade de Bayamo.
Acampamento militar ou local de lavouras e gado, centro do comércio ou jurisdição administrativa, na bonança ou na ruina, o destino de cada comunidade na Cuba colonial estava além de seu controle. O colonialismo, o maior crime cometido em escala global pela expansão do sistema capitalista, mandava em tudo, desde a inovação eclesiástica oficial que precedia ao nome da cidade de Bayamo até as limitações ou proibições que se aplicavam aos indivíduos de castas consideradas inferiores.
Como toda ordem de dominação, o colonialismo tem suas leis. Uma colônia não tem história própria, seus nativos são eternos meninos, seus recursos pertencem à metrópole, que pode cortá-la, impor os tributos que deseje e implantar as formas mais selvagens de exploração nela. Este último aconteceu em Cuba com a enorme escravidão do século XIX, um milhão de pessoas trazidas em oitenta anos. Sobre a exploração mais cruel de seu trabalho, a opressão e a humilhação permanentes foi feita a colossal riqueza da colônia de Cuba.
Assim foi governada Bayamo, como todo o país. Porém, um acúmulo longo e lento de características específicas estava formando na ilha uma comunidade que podia chegar a ser nacional. No entanto, ela não era suficiente por si só. Diferentes ações e formas de resistência dos filhos do país foram-lhe acrescentando à identidade nascente um lado da negação do domínio e do direito do outro, que se transformava estrangeiro na medida em que o crioulo se transformava em cubano. O abuso, a repressão e a arrogância conduziram à rejeição e ao ressentimento, porém, isso tampouco era suficiente. Teve que aparecer a necessidade de rebeldia, e com ela a de dar-lhe organização e sentido. Estas duas características transformaram ao fugitivo, ao agricultor pobre, ao bandido e ao ex-escravo dos quilombos, unidos ao senhor crioulo local ofendido, turbulento e conspirador, quer dizer, a setores e pessoas nunca antes reunidas, nos sujeitos que se uniram para uma empreitada comum, nunca antes vista. Há cento e cinquenta anos, o leste de Cuba fervia em desobediências e centenas de pessoas estavam à margem da lei. Porém, faltava a conversão da subversão ou o motim em uma rebeldia detonada com um objetivo específico, que transformou a atuação em falange combativa e a paixão em ideias expressas. Faltava a revolução.
A pesar de ter sido doutor em leis e dono de escravos de fábrica, homem culto, bom piloto e amigo da arte, Carlos Manuel de Céspedes foi mais um colono. Seu caráter forte e suas ideias avançadas o fizeram líder local de conspiradores, um entre os possíveis diretores. Porém, sua determinação pessoal foi superior, e, na hora exata, soube começar a trabalhar sua grandeza. Ele expressou a primeira frase da lenda mambisa: “Espanha nos parece grande porque a observamos de joelhos. Levantemo-nos”.
No dia 10 de outubro 1868, Céspedes inaugurou a política revolucionária cubana e chamou o povo a lutar, com o mesmo slogan, pela liberdade e pela justiça. Aquela ação destruiu os impossíveis e criou uma nova realidade. Nesses dez dias que vão de La Demajagua à decisão de Bayamo, Céspedes abriu a brecha para que insurgisse o povo, e para que tudo o que ansiava ser rebelde pudesse se transformar em soldado e em cidadão, em revolucionário.
Depois que acontecem os grandes eventos históricos se podem enunciar facilmente, e até podem parecer fáceis ao pensamento pequeno, o que acredita que sempre acontece apenas o que deve acontecer. Ou ao que acredita que estes acontecimentos devem submeter-se a um esquema, a camisas de forças da História geridas por doutores incapazes de não cometer nenhuma loucura. Ao pé dos fatos em lugar remoto, o adolescente de Havana José Martí, que já conhece bastante de impossíveis, sabe que o que acontece em Bayamo parece um sonho. Por isso, escreve: “Não é um sonho, é verdade. Grito de guerra / lança o povo cubano com raiva / o povo que sofreu por três séculos / a partir do negro a opressão se encerra.” A Martí, tão distante e tão pobre, o iluminava a luz de Yara[1], porque em tempos de revolução a luz não se propaga de maneira uniforme. E uma semana depois da queimada gloriosa desta cidade pelos revolucionários, o jovem escreve a frase que será definidora para toda a época que apenas se inicia: “Ou Yara ou Madrid”.
Céspedes libertou os escravos dele na primeira manhã, porém a justiça teve que abrir passagem frente aos obstáculos provenientes de seu próprio campo. A independência e a abolição tiveram que fundir-se em um só propósito, liberdade pessoal e cidadania, reunidas, assumirem a forma de governo republicano. Os revolucionários tiveram que se tornarem maiores do que eles mesmos, e não somente maiores do que as circunstâncias. A guerra foi uma tremenda forja em que foram alcançados os milagres necessários, e ela se alimentou com os sacrifícios, com o heroísmo e com a constância de milhares de homens e de mulheres.
Dar a vida, passar fome e escassez de tudo, combater, todas as formas da entrega e do altruísmo se fizeram cotidianas. A bandeira da estrela solitária se tornou sagrada, e a marcha, o acampamento, o herói, o amado e a amada, a jornada de sangue e de morte, se expressaram em canções. Quando tudo se condensou para sobreviver, escolher o vital e ganhar forças, o hino de Bayamo ficou em oito versos guerreiros que convidam a lutar, desafiam à morte necessária e prometem vida eterna. Próceres e pobres de todas as cores aprenderam que a revolução a que lhe dava probabilidades de êxito a suas lutas e seus anseios mais profundos. E conseguiram se sentir irmãos enquanto compartilhavam todas as vicissitudes. Na guerra revolucionária nasceu a identidade nacional cubana, com seu conteúdo e objetivos populares.
A História tem sido nossa mãe, e nesta região nos deu suas primeiras lições. Mais de oitenta anos depois, buscando naquela façanha forças para saltar ao futuro, as crianças cantavam, pouco antes de se lançarem aos jogos em uma sacudidela: “que Bayamo foi um sol refulgente / onde pôs o cubano valente / mui alto o pendão tricolor”. E em A História Me Absolverá o jovem rebelde Fidel reivindicava a ancestralidade patriótica do leste, onde, dizia: “se respira, ainda, o ar da epopeia gloriosa” e “cada dia parece que vai ser outra vez o de Yara ou o de Baire”.
O discurso de Fidel no centenário de 10 de Outubro, em La Demajagua, é uma obra-prima para a compreensão de nossa história. Escolho uma de suas teses e cito:
Se uma revolução em 1868 para chamar-se revolução tinha que começar por dar liberdade aos escravos, uma revolução em 1959, se quer ter o direito de se chamar revolução, tinha como questão elementar a obrigação (…) de liberar a sociedade do monopólio de uma riqueza em virtude da qual uma minoria explorava o homem (…). Suprimir e erradicar a exploração do homem pelo homem era suprimir o direito da propriedade sobre aqueles bens, (…) sobre aqueles meios de vida que pertencem e deve pertencer a toda a sociedade.
A história segue sendo mãe, porém, agora, traz consigo uma gigantesca cultura de liberação acumulada. De Céspedes a Fidel, temos crescido e aprendido tanto, que nunca mais o capitalismo poderá nos enganar, e contra qualquer roupagem com que se apresente saberemos desnudá-lo e varrê-lo. E nossa pátria cresceu tanto, que o que foi Yara, hoje é Cuba, e Cuba é muito mais que ilha liberada.
O antagonista no mundo atual também é muito maior e poderoso, conta com imensos recursos materiais e uma cultura onipresente, altamente capaz e até mesmo atraente, que é sua arma principal nesta fase de sua guerra contra Cuba. Porém, é o mesmo inimigo de que este país poderia ser independente há duzentos anos, o mesmo que truncou a grande revolução libertadora faz 118 anos e impôs seu domínio neocolonial, o que fez tudo o que pode contra este povo desde 1959, a águia voraz, grande no crime e na imoralidade. Visa enfraquecer-nos e dividir-nos, a recrutar cúmplices e a acabar com a sociedade que criamos entre todos e com a soberania nacional.
O desafio, então, é do mesmo caráter que quando era ou Yara ou Madrid, e a disjuntiva volta a ser de corte. Agora é: ou Cuba ou Washington.
E na contagem dos que estão acostumados a lutar juntos, forma luz nas fileiras de Yara, e se reúnem em Bayamo, lugar sagrado da Pátria, das artes e das ideias, das homenagens e dos sentimentos, da corneta que toca e da decisão revolucionária. A maior canção na voz de todos; o hino na voz do povo. E como um farol e guia a bandeira do triângulo vermelho, a estrela solitária.
[1] N. do T.: O Grito de Yara dá início ao processo independentista de Cuba da Espanha, começado por Carlos Manuel de Céspedes em 10 de outubro de 1868. (Com informações de wikipedia.)
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Revisão: Tali Feld Gleiser.
Artigo original em espanhol em Cubadebate.