“Haveria de chegar um tempo no qual as ruas começariam a queimar. Desde 2008, elas queimam nos mais variados lugares. Em Túnis, em São Paulo, no Cairo, Istambul, Rio de Janeiro, Madri, Nova York, Santiago, Brasília. Elas ainda queimarão em muitos outros e imprevistos lugares, recolocando o que é separado pelo espaço em uma série convergente no tempo. Na verdade, por mais que alguns procurem se convencer do contrário, por mais que agora o fogo pareça ter momentaneamente se retraído, as ruas desde então não pararam de queimar, elas só deslocaram suas intensidades. É importante lembrar disso, pois há algo que pode existir apenas quando as chamas explodem em uma coreografia incontrolada de intensidades variáveis. Por isso, diante de ruas queimando não há de se correr, não há de se gritar, há apenas de se perguntar: O que fala o fogo? O que se diz apenas sob a forma do fogo?”
Pergunta o Professor Livre-Docente de Filosofia da Universidade de São Paulo, e eminente teórico contemporâneo da esquerda brasileira, Vladimir Safatle, numa noite fria no centro de Florianópolis. Ele esteve na cidade, no último sábado, 08 de outubro, para lançar seu novo livro pela N-1 edições¹ – “Quando as ruas queimam: manifesto pela emergência”.
Naquela noite, o centro vazio e abatido, típico cenário daquele bairro florianopolitano aos finais de semana, queimou com uma reflexão aguda que deixou resmungando os reacionários presentes entre os poucos que se juntaram no largo da alfândega. Assim, em meio à fala de Safatle era possível escutar os resmungos daqueles que incapazes de sonhar e que só podem desejar abafar as chamas das ruas: “faz sentido o que ele tá falando?”; “monte de maconheiro”.
A fala de Safatle é uma daquelas que nos arrebate em meio ao tempo que vivemos e nos laça, como uma catapulta, em direção a luta política. É certeira e detém no seu âmago a potência de tocar a alma dos não proprietários, como ele mesmo diz: “a saber, proletários”. Resgata, em seu conteúdo, não só a forma, mas a essência de uma estratégia para um por vir emergente – e que só emergirá se assim o construirmos, entre o rigor e a imaginação política.
“É verdade, nos perdemos várias vezes, mas nunca fomos derrotados. Pois nossas derrotas são, na verdade, o fogo alto que forja o aço de nossas vitórias. Toda verdadeira vitória é fruto da elaboração profunda sobre perdas. Ela reverbera o desejo animal de nunca mais perder. Por isso, só vence quem caiu e clama com paciência por uma segunda chance. Ela virá, mas cedo que esperamos. É isso que nos leva a afirmar que tais perdas não são derrotas alguma. Talvez o traço mais sublime e incompreendido da filosofia hegeliana seja a certeza de que as feridas do Espírito são curadas sem deixar cicatrizes. Isso significa muita coisa, entre elas que nada, absolutamente nada, terá força de bloquear, de uma vez por todas, a possibilidade de realizar nosso destino. Há momentos em que este destino fala baixo, mas ele nunca se cala e é isso o que importa.
No entanto, é certo que nada nos exime de nos perguntarmos por que nossas perdas são tão constantes nestes últimos tempos. Por que as ruas queimando desde 2008, por que nossas ruas queimando desde 2013 não produziram ainda as transformações que poderiam produzir? Por que esta força efetiva da reação? Várias são as razões que poderiam ser levantadas, mas talvez seja o caso de se deter diante de uma, a saber, porque não temos mais um corpo e não há, nem nunca haverá, política possível sem corpo. Se quisermos voltar a vencer, precisaremos de um corpo. Teremos que aprender a dizer, como David Cronenberg: “Vida longa a nova carne.” Insurreição não é emergência, ou seja, uma insurreição não é necessariamente a emergência de um novo sujeito político. A insurreição pode ser a explosão bruta da revolta, mas para que esta revolta forje um sujeito emergente é necessário ainda mais um esforço. Só mais um esforço se quiserdes ressoar a emergência.”
¹. N-1 Edições: n-1edições.org
Fonte: Ufsc à Esquerda.