Por Sebastián Ronderos.
Apesar da trama complexa e envolvente, série oferece uma visão estereotipada da Colômbia. Que isso tem a ver com a nova mudança nos planos geopolíticos dos EUA – e com o Brasil?
A filosofia de Nietzsche se constituiu como a matéria prima para estruturar um marco teórico do Terceiro Reich, principalmente através da sua irmã, Elisabeth Förster-Nietzsche, que, antissemita e nacionalista alemã, ajudou a forjar o conceito central de Vontade de Poder (1901), recompilando textos do seu irmão com financiamento direto de Hitler. A vontade de poder, desde Nietzsche, precisa aumentar ininterruptamente, conquistar, dominar e expandir seu espaço vital para assim conservar-se, como em um ciclo quase infinito.
Dita vontade procura impor uma interpretação da vida, gerando um determinado senso comum na sociedade, afogando a consciência crítica subjetiva em função da razão de quem domina. Göbbels, cínica e genialmente, reinterpreta a fase de Nietzsche: “não há fatos, só interpretações”, em: “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.
Daqui se desprende uma teoria do poder comunicacional, que procura que a própria mensagem seja a única possível. Assim como Göbbels, um senador republicano estadunidense, Joseph McCarthy, entendeu a importância da propaganda, do cinema e da televisão nas relações de poder, o que o levou a desenvolver uma caça às bruxas em Hollywood, pagando de Torquemada sobre a arte e a cultura.
Fazendo um paralelo entre marcianos e comunistas, começaram a se produzir filmes sobre extraterrestres que invadem os EUA, como os longas-metragens A guerra dos mundos (1953) de Byron Hasking e Os visitantes do espaço exterior (1956) de Fred Sears. Hollywood tornou-se um centro de propaganda política em favor dos Estados Unidos e dos seus melhores aliados — exacerbada após o 11 de setembro por meio da doutrina da guerra preventiva.
Para recriar a história recente da Colômbia, por meio da vida de Pablo Escobar — no passo final da agenda das negociações de paz com as Farc — Hollywood convocou uma das suas melhores plumas, Chris Brancato. Ele escreveu a série Narcos, produzida pela Netflix. Nem mais nem menos que o criador do filme (1998) Espécies II, onde, novamente, recorre-se ao paralelo de extraterrestres que infectam a terra ameaçando a vida humana, tradicional, livre e capitalista.
O seriado pretende abarcar uma audiência maior do que a colombiana. Estabeleceum foco especial sobre Brasil, ao destacar o diretor José Padilha e o ator Wagner Moura, ambos amplamente respeitados no país por abrir espaço nos seus trabalhos a problemáticas sociais e lançar olhares críticos frente ao cenário político brasileiro. Inclui contribuições especiais de figuras públicas brasileiras, como Rodrigo Amarante. Padilha e Moura trabalharam juntos no longa-metragem mais caro e famoso do Brasil: Tropa de elite (2007), que causou polêmica ao apresentar uma dicotomia entre policiais bons e ruins, onde a punição incorruptível é apresentada como a saída a problemáticas complexas em uma das cidades mais desiguais de América Latina e no país com a quarta população carcerária do mundo. Não obstante, o respeito por trabalhos anteriores e sua posição diante do atual cenário político ajudou a impregnar credibilidade nesta ficção ao estilo hollywoodiano, apresentada por meio de registros oficiais como uma série-documental.
Não quero dar excessiva atenção aos erros históricos, minuciosamente trabalhados por Brancato, que faz a reinterpretação da guerrilha M-19 por meio do mundo rural. Ela seria integrada por jovens sectários, que como diz a própria série, “leram Marx demais pro seu próprio bem”, e que acabam se enredando no narcotráfico pelo seu fanatismo. Convém lembrar as figuras de Jaime Bateman ou Carlos Pizarro para entender o caráter urbano, fundamentado e crítico dos principais protagonistas do M-19; que na sua maioria não vinham de uma tradição marxista, mas da militância da Aliança Nacional Popular (Anapo), integrados à luta armada após a fraude eleitoral contra Gustavo Rojas Pinilla em 1970.
No episódio histórico da tomada do Palácio de Justiça, sabe-se que nenhum dos magistrados foi ferido por armas da insurgência, como relata o próprio filho do então presidente da Corte, Alfonso Reyes Echandía, assassinado na retomada do Palácio pelos militares. Os pesquisadores mais sérios daquele evento, como Darío Villamizar, Ramón Jimeno, Juan Manuel López e Laura Restrepo, descartam enfaticamente a aliança entre o M-19 e Pablo Escobar, negando também a veracidade do presente da espada de Bolívar a Escobar pelo M-19, a qual foi entregue às autoridades pela guerrilha na sua desmobilização, em 31 de janeiro de 1991.
A série também não retrata os jovens que trabalhavam no palácio, apontados como guerrilheiros pelo exército, que foram torturados e desaparecidos pelo terrorismo de Estado. Deles, acharam-se recentemente os corpos de Cristina del Pilar Guarín, Luz Amparo Oviedo e Luz Mary Portela. Não em vão, Gloria Gómez, coordenadora da Associação de familiares de desaparecidos (Asfaddes), diz: “Os familiares dos desaparecidos foram tratados como mentirosos e oportunistas”. Vamos lembrar Göbbels: “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.
Enfim, há mais provas concretas das licenças concedidas pelo ex-presidente e hoje congressista Álvaro Uribe Velez a narcotraficantes — dentre eles, Pablo Escobar — que da relação que o Netflix sugere haver entre o M-19, Pablo Escobar e o incêndio do Palácio de Justiça.
Narcos promove uma historia distorcida que inverte a relação entre a inteligência estadunidense e as dinâmicas do narcotráfico. É quase uma regra: quanto maior a presença dos norte-americanos no território nacional, maior e mais perigoso o conflito se torna. Levantam-se provas inexistentes ou informações verdadeiras que não foram apresentadas pela DEA, mas pelo jornalismo independente colombiano, como, por exemplo, a foto de réu de Escobar, levada as autoridades colombianas diretamente pelo jornal El Espectador.
São alguns elementos que ressaltam uma reinterpretação caricata. Ela retoma a perspectiva colonial dos EUA e os falsos imaginários constituídos pela elite tradicional colombiana, para deslegitimar seus nexos com a impunidade que, até hoje, sustenta a violência política. Faz-se um claro reforço do vínculo entre esquerda e crime, através da narração de um agente da DEA que se aventura corajosamente na Colômbia para nos salvar de nós mesmos. Ele transforma-se em um ser selvagem, pré-moderno e irracional à medida em que se suja da vida colombiana, do mesmo jeito que Patrick Ros, protagonista do filme Espécies II (1998), vira uma criatura perigosa, que põe em ameaça a vida na terra, ao se expor ao DNA alienígena.
Será uma coincidência que um clássico expoente do macartismo hollywoodiano faça uma reinterpretação da infecção marciana através da violência colombiana? E, caso contrário, por que agora?
No final do século 20 e começo do 21, os EUA centraram seus esforços no Oriente Médio, descuidando seus interesses no seu quintal histórico, América Latina, oferecendo um respiro precioso aos movimentos sociais do sul para se rearticularem e perfilar suas pretensões eleitorais. Hugo Chávez na Venezuela; Evo Morales na Bolívia; Néstor e Cristina Kirchner na Argentina; Rafael Correa no Equador; Michelle Bachelet no Chile; Lula no Brasil; Tabaré Vázquez no Uruguai. Uma década ganha por movimentos populares que deram à região direção contrária dos interesses e predominância históricas dos EUA, do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, consolidando projetos neodesenvolvimentistas de integração regional como Mercosul e Alba.
Os EUA enfrentam um panorama global de fortes disputas por hegemonia. Mantêm-se poderosos por emitir a moeda padrão (dólar). Mas movem-se num tabuleiro geopolítico multipolar onde China e Rússia jogam um papel determinante no âmbito comercial e energético e ingressam nos mercados latino-americanos; e onde a Índia cresce exponencialmente. Depois de 2010, as oligarquias locais na América Latina têm desenvolvido uma contraofensiva através de guerras econômicas, difamação por meio da mídia e fraturas institucionais provocadas por golpes parlamentares.
Os EUA têm rearticulado seus interesses geoestratégicos, pressionando a Venezuela e suavizando as relações com Cuba, impulsionando a Aliança do Pacífico e o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica como respostas ao Mercosul e ao Brics. Mostram que seus focos, já não estão no Oriente Médio, mas, concretamente, na Ásia e na América Latina.
A Colômbia é central nesta história, pois tem sido a exceção das transições políticas nas ultimas décadas. As mesmas elites políticas e econômicas do século 19 seguem no poder, mantendo vivo o espírito da guerra contrainsurgente e dando presença física na América do Sul às tropas estadunidenses, com saída direta ao Atlântico e Pacífico. Narcos deixa claro que, em paz ou guerra, os EUA continuaram desenhando o caminho da Colômbia para a lógica dos mercados. É ela, vale lembrar, que mantém o país com o maior nível de desigualdade no continente mais desigual do planeta. Também é bom ressaltar que o presidente que abriu o espaço institucional para impor o neoliberalismo como doutrina econômica de Estado foi César Gaviria. Ele é apresentado no seriado como um verdadeiro patriota que luta contra o fratricídio e violência.
O outro foco essencial em dita estratégica, denunciada pelos vazamentos do Wikileaks sobre espionagem norte-americana na região, é o país com o mercado mais diversificado da América Latina. Tal nação, que estruturou uma proximidade comercial e financeira com a África e a Ásia, além de ser uma peça essencial no Mercosul e nos Brics, hoje está imersa num processo de golpe parlamentar. Casualmente, é o país do continente com a maior participação na produção da serie Narcos. Chama-se Brasil.
Fonte: Outras Palavras/http://www.vermelho.org.br/noticia/286755-1.