Infiltrado do Exército mirava MTST, Mídia NINJA e outros movimentos sociais
Capitão das Forças Armadas também atuou em grupos organizados, monitorou atividades políticas e assediou militantes por meses antes de ser descoberto
Na última semana, as redes sociais e a mídia corporativa foram inundadas por matérias desmascarando a infiltração de um agente das Forças Armadas em grupos de manifestantes em São Paulo. Disfarçado de “Balta Nunes”, o capitão Willian Pina Botelho teria passado informações que levaram à prisão de 21 jovens utilizando como justificativa flagrantes forjados, como uma barra de ferro, antes mesmo de começar a manifestação do último dia 4, que levou mais de 100 mil às ruas da capital paulista.
Botelho não se infiltrou somente em grupos de manifestantes que acabavam de se conhecer pelas redes sociais: sob o mesmo disfarce, o agente coletou por meses informações privilegiadas da frente Povo Sem Medo, que hoje reúne alguns dos mais importantes movimentos sociais do país, como MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), Fora do Eixo e Mídia NINJA, CUT (Central Única dos Trabalhadores) e UNE (União Nacional dos Estudantes), além de militantes de partidos de esquerda como o PSOL e PCdoB, jornalistas e comunicadores, entre outras organizações sociais.
Botelho abordava diversas mulheres dos movimentos em conversas privadas pelo menos desde abril de 2015, e passou a ter acesso direto a informações do grupo após participar presencialmente do ‘Encontro dos Comunicadores Sem Medo’, realizado em junho deste ano na Casa Fora do Eixo, em São Paulo.
Inscrição de Baltazar Nunes, o Balta, no formulário do encontro Comunicadores Sem Medo, realizado no dia 3 de Junho de 2016. No documento, Balta alegava ser administrador e “contra o golpe”.
Nas mensagens privadas, fica claro o interesse de Botelho em questões estratégicas dos movimentos sociais e a determinação de conseguí-las através de seu relacionamento íntimo com militantes. No relato de ao menos 5 ativistas da Frente Povo Sem Medo, Botelho se utilizava de insinuações afetivas para se aproximar e obter informações, o que sempre causou estranhamento nas vítimas.
Rotineiramente perguntava sobre ações do MTST, encontros e atividades fechadas de redes como os Jornalistas Livres, a relação dos movimentos com o Governo Federal da Presidenta Dilma e chegou a saudar a atuação do Levante Popular da Juventude. Em certa mensagem a uma militante, afirmou: “É meu sonho conhecer a Florestan Fernandes. Vamos lá? Eu dirijo”, referindo-se à tradicional escola de formação do MST em Guararema, a 70 km da capital paulista.
Foi dessa forma que teve acesso à convocatória do Encontro Comunicadores Sem Medo, uma imersão de jornalistas, designers, fotógrafos e midiativistas que reuniu em torno de 70 pessoas entre os dias 4 e 5 de junho.
Segundo testemunhas, Balta teria participado dos dois dias do encontro e dormido na Casa Fora do Eixo. O capitão parece ser um mestre em fugir de registros fotográficos que possam comprometê-lo: surpreendentemente, ele aparece em apenas uma foto do evento, de costas, mesmo com centenas de imagens registradas ao longo do encontro.
“Você é uma feminista que acho bonita”
Passando-se por recém-chegado nos movimentos sociais, as primeiras interações do militar alegavam desentendimento das pautas e vontade de se somar à luta, como relata uma das envolvidas: “Ele costumava falar comigo perguntando o que eu achava sobre os acontecimentos políticos, assim como passou a acompanhar atividades que eu postava no meu facebook”.
Em seguida, o infiltrado dava início às investidas, assédios e tentativas de envolvimento emocional e afetivo com as mulheres, como ilustram as imagens a seguir, capturadas de conversas do capitão com cinco ativistas diferentes e embaralhadas por questões de segurança.
OBS: ‘Usuário de Facebook’ é o nome que permaneceu para as conversas com Balta após a exclusão de sua conta da rede. Todas as mensagens enviadas por ‘Usuário de Facebook’ nas imagens acima são, portanto, de autoria de Balta.
O agente chegou a oferecer auxílio financeiro inúmeras vezes a militantes, se propondo a comprar celular, pagar exames médicos e qualquer necessidade que fosse apresentada pelas mulheres como empecilho.
“Quando você olha pra mim, você se sente atraída?”, “você é muito bonita”, “estou esperando você aqui, enrolado no meu cobertor..” e “Você é bonita… não deveria ter o sentimento de oprimida”, eram mensagens comuns. Como se não bastasse a arbitrariedade e o abuso na inserção em espaços organizados dos movimentos sociais e a falsidade ideológica, ao que parece, o assédio e machismo foram práticas recorrentes do sistema de inteligência do Estado nesse caso.
Hoje reconhecido como agente infiltrado, Botelho logrou a inclusão de outro membro nos grupos, identificado inicialmente como “Fagner”. Em uma das mensagens, o agente fala de seu ‘companheiro’: “Tem um compa que tá querendo ir no ato da Dilma para ajudar a cobrir o evento.”
No dia da manifestação, questionou: “O Fagner tá ai?”. A reportagem não conseguiu localizar informações ou imagens de Fagner, e suas contas nas redes sociais estão desativadas, assim como as de “Balta”. A única informação que há sobre ele é que esteve presente no ato de Dilma Rousseff no condomínio João Candido, São Paulo, no dia 8 de Julho, quando enviou imagens de cobertura no chat do movimento.
Pedimos que todos que possam ter registros dos infiltrados no encontro e em outras situações nos enviem em [email protected]
O juiz Rodrigo Tellini, responsável pela soltura de 18 dos jovens na segunda, 5, foi contatado pela NINJA e informou que não foram citados possíveis infiltrados no inquérito. Embora o “flagrante” não fale sobre isso, pois só apura a conduta dos detidos, Tellini alertou que o caso deve ser denunciado e se dispôs a auxiliar no encaminhamento da denúncia.
O deputado federal Ivan Valente (PSOL/SP) anunciou que vai entrar com um requerimento de informação exigindo das Forças Armadas explicações sobre a infiltração de agentes com o objetivo de monitorar movimentos sociais organizados. Valente comentou à reportagem sobre a gravidade do caso.
“A notícia é gravíssima e o Ministro da Defesa deve explicações à sociedade”, afirmou o deputado. “A utilização de membros do exército para monitorar os protestos parece ter sido planejada com o propósito de reprimir, violentamente e sem ordem judicial, uma manifestação legítima. Essa prática, típica de regimes ditatoriais, é um grave ataque à liberdade de reunião e expressão e não pode ser permitida na democracia”.
Algumas perguntas devem continuar sendo feitas: De onde partiu e quem chancela os métodos e atuação de William Botelho?
Existe uma colaboração e alinhamento entre a Polícia Militar do governo de São Paulo e o Exército brasileiro sob o comando do governo Temer? A prisão arbitrária de 18 jovens, o assédio e invasão da privacidade de ativistas antecedem outras ações ilegais contra os movimentos sociais no próximo ciclo? Quantos são os agentes infiltrados nos movimentos sociais nesse momento?
Em tempos de escalada repressiva, Lei Anti-Terrorismo e prisões feitas em manifestações sem qualquer motivo, o caso levanta o debate sobre o papel do Estado no trato com os movimentos sociais, a relação do Exército brasileiro com as Polícias Militares e, principalmente, a legalidade do monitoramento sistemático de cidadãos que, de forma legítima, vão às ruas em busca de seus pleitos democráticos.
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Fonte: Viomundo.