Para ler Walter Benjamin ou algumas notas sobre seu marxismo e a cultura, história e revolução, memória e porvir

Por João Lopes Rampim e Rafael Vieira. 

Densas metáforas e um aforismo alegórico, além de um entulho político de derrotas históricas, podem afastar os leitores possíveis de Walter Benjamin de uma contribuição inovadora e criativa para o pensamento crítico, em geral, e a perspectiva marxista, em particular. A história política e social do Séc.XX foi pródiga em separar muito abruptamente tradições e correntes que se beneficiariam muito de sua fertilização recíproca. Leitores de Antonio Gramsci soem desconhecer Leon Trotsky. Estudiosos de György Lukács costumam ignorar Karl Korsh. E poucos entusiastas de Rosa Luxemburgo sequer chegam a conhecer Walter Benjamin. Pensando nisso, e a partir de um convite do Blog CONVERGÊNCIA, decidimos colocar aqui e agora – como num diagrama bastante rudimentar – algumas questões fundamentais do trabalho teórico deste autor alemão e que podem suscitar vivo interesse por parte do público leitor. São nada mais do que algumas notas.* Em vista ao interesse coletivo despertado, e o que consideramos como algumas lacunas na versão anterior, chegamos a essa nova contribuição a quatro mãos.

O marxismo de Walter Benjamin é de fato bastante singular. Seu contato mais aprofundado com as obras de Marx, Engels e o materialismo histórico enquanto uma concepção total de mundo – ou uma “filosofia da práxis” revolucionária, na fórmula utilizada por Gramsci – ocorre em 1923-1924 por uma conjunção de fatores que vão desde a leitura dos ensaios do filósofo húngaro György Lukács, na obra História e Consciência de Classe, suas discussões com a comunista letã Asja Lácis e, sobretudo, por perceber na letra do texto da obra marxiana um poderoso instrumento de crítica ativa ao aprofundamento das contradições sociais e políticas na República de Weimar depois da derrota histórica do movimento dos trabalhadores na situação revolucionária aberta a partir de 1918-1919. Parte importante da compreensão teórica, política e historiográfica do significado do falhanço da revolução alemã para o movimento social como um todo repousa nos intrigantes fragmentos de Walter Benjamin.

Embora a partir de 1923-24 seu pensamento ganhe novos contornos com Marx, a crítica à civilização industrial moderna e ao modo de vida capitalista aparecem em alguns de seus textos desde 1915 pelo menos, sendo uma espécie de fio condutor de sua obra. Essa crítica é feita nesse primeiro momento a partir de uma associação complexa entre um romantismo revolucionário e uma interpretação particular do messianismo judaico, referências essas que não desaparecem – embora sejam reposicionadas – depois do contato com Marx e alguns de seus intérpretes. Nesse breve texto, o objetivo é tão-só apresentar alguns pontos que consideramos importantes na relação de Benjamin com Marx e algumas correntes de pensamento distintas do marxismo. A ideia é lançar algo de um começo de conversa, por assim dizer, com aspectos essenciais de uma agenda de pesquisa coletiva e questões fundamentais de debate público, sem qualquer pretensão de esgotá-los ou até mesmo desenvolvê-los propriamente. As linhas a seguir, mais do que qualquer outra coisa, são um convite à leitura.

I. Da luta de classes

Não poucos comentadores destacaram esse aspecto. Theodor Adorno, Michael Löwy e Leandro Konder – por exemplo – são alguns dos autores que chamam a atenção para a centralidade conferida por ele à luta de classes. A interpretação de tendências estruturais e a crítica da economia política é um componente essencial para se pensar à ação, mas é na luta concreta entre opressores e oprimidos, exploradores e explorados, que se jogam os lances decisivos da história. As análises históricas tem por isso um caráter tendencial justamente porque há um conteúdo em seu interior que não pode ser exatamente mensurado, não por uma limitação dos métodos científicos de produção do conhecimento, mas porque ali é o lugar da práxis transformadora, certamente condicionada por estruturas – sociais, políticas e econômicas – mas capaz de ir além fazendo a política ultrapassar à história.

Benjamin recusa ao longo de sua trajetória a vulgata economicista, o determinismo mecanicista e noções típicas, como “época de decadência”, enquanto um fundamento de análise histórica, e aposta suas forças até seu último escrito nas classes oprimidas e combatentes do mundo dos trabalhadores enquanto um sujeito coletivo de lutadores e resistentes que viria a consumar a tarefa histórica de emancipação total das várias gerações de derrotados e vencidos.

II. Do progresso

É possível que dentre os marxistas do começo do Séc.XX Walter Benjamin tenha sido o mais radical dos críticos à filosofia da história orientada pela noção de progresso. Essa crítica também aparece com força, por exemplo, em Rosa Luxemburgo. Para Benjamin, a imagem do progresso certo e exato direcionado a um fim teleológico tem um sentido estratégico para aqueles que dominam ou para os resignados, ao protelar e adiar indefinidamente a emancipação humana relegando o presente a um instante no meio de um fluxo homogêneo, contínuo e linear. As diferentes variantes teórico-práticas que entendem o progresso como norma histórica são tributárias de uma perspectiva que termina por apagar a regressão e a barbárie contra os “sem nome” e os vencidos da história, como um momento passageiro ou como um “mal menor” no caminhar contínuo de uma marcha com início, meio e fim definidos. Para contrapor-se a esse tipo de percepção, Benjamin será um autor que elaborará diferentes alternativas metodológicas, tanto na busca de uma outra concepção de tempo – ou o tempo-de-agora de que fala em Sobre o Conceito de História – radicalmente oposta à ideologia moderna do progresso, quanto pela valorização dos “farrapos”, dos “restos” e dos “cacos” da história como elementos de uma tarefa ético-política de rememoração e de ação.

Para Benjamin, esse tipo de percepção está presente em correntes de pensamento que procuram eternizar o capitalismo, mas também aparece no marxismo vulgar da socialdemocracia alemã e do stalinismo. Benjamin toma para si em seu trabalho sobre as “Passagens” a tarefa de retomar Marx e o materialismo histórico com o objetivo de: “considerar como um dos objetivos metodológicos desse trabalho mostrar claramente um materialismo histórico que tenha aniquilado de seu interior a ideia de progresso. Precisamente aqui, o materialismo tem todos os motivos para se separar com nitidez da forma burguesa de pensar” 1.

III. Da memória

O marxismo de Benjamin tem os olhos voltados para o passado como abertura. Para ele, a luta é travada em memória dos antepassados escravizados e não na imaginação dos descendentes liberados, por isso estabelece uma delicada ponte entre memória, passado e presente. Ao mirar os “rastros” e “restos” que a historiografia dominante tem por hábito deixar de lado, está preocupado não só com o passado propriamente dito, mas no momento crítico em que o acesso a esse passado aparentemente esquecido é capaz de iluminar o presente, reconfigurando a relação presente-passado.

Benjamin é consciente da relação entre as memórias e as disputas do presente, e enxerga nela um elemento essencial nas lutas de classes e na narr/ação contra-hegemônica. Para tanto, procura despertar no passado as centelhas de esperança não cumpridas, e fazer justiça às gerações de vencidos que tombaram no decorrer da marcha de um formato de sociabilidade que se reproduz produzindo, assim, a barbárie.

IV. Da revolução

Benjamin foi um estudioso de diferentes processos revolucionários nos Sécs.XIX e XX. Para ele, o historicismo, corrente historiográfica que Benjamin combatia, e sua apologia estão empenhados em “encobrir os momentos revolucionários do curso da história” 2. Ao teorizar sobre a revolução, buscava romper epistemologicamente com um pensamento – e uma prática – orientado por uma percepção dogmática da relação entre meios e fins, ao se recusar a compreender a revolução como um meio para um fim definido – que nos colocaria novamente diante de uma marcha orientada e de uma concepção de tempo homogêneo. Para ele, as revoluções são o gesto de “agarrar o freio de emergência” do processo que conduz a humanidade ao abismo – social e humano e também civilizatório e ambiental, conforme aparece em suas Teses –, trazendo com ela a possibilidade de construção da história sob bases radicalmente distintas.

Benjamin também elabora, em um texto denso e extremamente difícil 3, uma teoria da violência revolucionária como um contraponto teórico-prático ao que chama de violência mítico-jurídica, essa última como expressão típica da sociedade burguesa. (Essa noção será debatida e comentada posteriormente por autores como Herbert Marcuse, Giorgio Agamben e Slavoj Zizek.)

V. Do porvir

Para Benjamin, o comunismo não é nem uma utopia piedosa e nem o fim da história, mas a interrupção da atual concepção e prática – e por isso, necessariamente vinculada a uma crítica radical dos fundamentos da sociabilidade burguesa – que inaugura uma condição de experimentação distinta da história. Essa construção não se dá no vazio, e se põe em relação direta com o passado e com as alternativas à modernidade hegemônica criadas pelas lutas dos explorados e oprimidos – numa necessidade de retomá-las ao mesmo tempo em que são transformadas, já que em Benjamin, a retomada do passado não significa um desejo de restauração nostálgica daquele momento, mas um despertar transformado e transformador daquilo que ficou soterrado no passado e que poderia ter ganhado voz –, e com os movimentos emancipatórios do presente, buscando em suas práticas, dessa vez redimensionadas, os fundamentos daquilo que vem.

Essa percepção se aproxima da forma como Marx concebe o comunismo nas Cartas à Ruge e n’A ideologia Alemã, textos com os quais não se sabe ao certo se Benjamin chegou a travar contato, no qual recusa-se a idealizar um futuro idealizado ao indicar que: “O comunismo não é para nós um estado de coisas que deve ser instaurado, um ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento – que devem ser julgadas desde o próprio contexto efetivo – resultam dos pressupostos atualmente existentes” 4.

***

VI. Da cultura

Benjamin diverge radicalmente dos marxistas que lhe antecederam no tocante à reflexão sobre cultura, e busca apresentar uma concepção de cultura capaz de dar conta tanto do passado representado em seus conteúdos quanto do presente do historiador que os investiga. No encontro desses dois momentos, Benjamin pretende elaborar um modelo de compreensão cultural que seja contraposto à compreensão cultural reificada da social-democracia alemã de seu tempo. “Reificada” no sentido em que não abarcava a relação crítica do presente com os conteúdos culturais, e produzia, na esteira do historicismo, uma concepção de inventário de “bens culturais”, por meio de sua representação em uma continuidade histórica. Benjamin identifica aí a atuação de uma ‘falsa consciência’, a saber, que a cultura seria um excedente, algo que surge apenas após supridas as necessidades básicas mais elementares.

Contra isso, primeiramente, chama a atenção para sua face bárbara: “Não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie”, tese que surge tanto no ensaio Eduard Fuchs, colecionador e historiador quanto em Sobre o conceito da História, o que quer dizer que as obras do passado não são apenas produtos de grandes gênios criadores, mas também são, em maior ou menor medida, tributárias do trabalho anônimo e escravo de seus contemporâneos. E a barbárie se estende à transmissão das obras do passado, faceta que abre para a necessidade de uma relação política do presente com os documentos da cultura. Pois não se trata, para Benjamin, de fechar seu significado no passado, mas de dar conta, nessa significação, da ação do presente que recepciona sua transmissão; trata-se de poder delinear o lugar que a obra do passado ocupa na constelação crítica do presente.

Benjamin busca resgatar a força destrutiva da dialética materialista para dispersar a continuidade histórica reificada, e assim preparar a apreensão do verdadeiro teor histórico dos conteúdos culturais com base na atualidade do tempo presente do historiador. O estudo do passado cultural deve implicar na crítica do presente, pois só assim pode-se compreender o caráter de atualidade de determinado documento da cultura. Para caracterizar o momento construtivo desse modelo, Benjamin retorma, no ensaio sobre Eduard Fuchs, até o prefácio de A Origem do Drama Barroco Alemão para revisitar sua teoria da origem, e trazê-la, não sem modificações, ao contexto marxista. “Originária” deve ser, agora, a qualidade da experiência do historiador materialista que divisa no documento da cultura sua história anterior e história posterior – categorias que, em Origem do Drama…, assinalam o salto do originário para fora da corrente do vir a ser e perecer, e que, agora, na teoria materialista da cultura, assinalam o salto da constelação atual do passado, formada por obra/vida/época, para fora do continuum da história.

Esse salto é propriamente um salto em direção ao presente, e nesse encontro a imagem histórica do passado cultural investigado pode ser apreendida. Benjamin concebe seu modelo historiográfico como pautado em uma concepção descontínua do tempo histórico, viés pelo qual ele pode dar conta dos momentos revolucionários do passado que foram relegados pela afirmação apologética de uma continuidade histórica. O historiador materialista benjaminiano toma esses momentos descontínuos em seu inacabamento histórico, e visa em tais conteúdos sua história posterior no presente, isto é, a oportunidade de um despertar restaurador, porém único (na medida em que se dá na roupagem do presente crítico de sua retomada), de suas intenções/aspirações não realizadas no outrora.

***

Lembrando que nenhum comentário substitui o acesso em primeira mão da leitura da letra do próprio autor, sugerimos para os leitores que eventualmente quiserem ter contato com uma introdução à obra de Benjamin alguns materiais em língua portuguesa:

“Walter Benjamin – O marxismo da melancolia” de Leandro Konder; “Walter Benjamin – Os cacos da história” de Jeanne Marie Gagnebin; “Walter Benjamin – Aviso de Incêndio: Uma leitura das teses ‘Sobre o Conceito de História’” de Michael Löwy; “’É possível uma historia materialista da cultura?’: Walter Benjamin (re)lê Friedrich Engels” de Ernani Chaves 5; “Walter Benjamin: Estética e experiência histórica” de Jeanne Marie Gagnebin 6; e “Imagem e consciência da história: Pensamento figurativo em Walter Benjamin” de Francisco Pinheiro Machado. “Sobre alguns temas em Walter Benjamin” de Alvaro Bianchi 7 e “Por uma história materialista da cultura” de Anita Helena Schlesener.8

As Obras Escolhidas da Editora Brasiliense, em volumes como Magia e Técnica, Arte e Política, e o livro das Passagens, recentemente lançado pela Editora UFMG, são materiais de referência incontornáveis para a introdução e o aprofundamento na letra do texto do autor em tela.

Notas

*. Uma versão preliminar deste texto foi apresentada ao Blog Capitalismo em Desencanto.

1. BENJAMIN, Walter. Libro de los Pasajes. Madrid: Ediciones Akal, 2005, p. 462-463 [N 2,2].

2. BENJAMIN, Walter. Passagens. São Paulo/Belo Horizonte: Imprensa Oficial/Editora da UFMG, 2007, p. 516 [N 9a, 5].

3. Referimo-nos ao seu ensaio, de 1921, intitulado Crítica da Violência. Esse texto tem ganhado traduções recentes, mas ainda é bastante importante a tradução de Willi Bole em: BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência. In: Documentos de Cultura – Documentos de Barbárie. São Paulo: Cultrix, 1986, p.160-175.

4. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p.38, nota a (nota de Marx). Essa característica também é ressaltada em uma carta de Marx à Ruge, de setembro de 1843. Carta reproduzida em: MARX, Karl. Sobre a questão Judaica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010, p.70-73.

5. In: No limiar do moderno: Estudos sobre Friedrich Nietzsche e Walter Benjamin. Belém: Paka-Tatu, 2003.

6. In: O pensamento alemão no século XX, vol. I. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

7. Caderno UniABC, Santo André, v. 1, n. 10, p. 16-32, 2002.

8. Revista Outubro, São Paulo, v.25, p. 120-139, 2015.

Fonte: http://blogconvergencia.org/?p=7542.

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