Por Julia Saggioratto, para Desacato. info.
Entrar na universidade significa, muitas vezes, vivenciar distintas experiências, desconstruir opiniões e discutir concepções sobre a sociedade. Sair da “caixinha” que aprisiona pode ser muito enriquecedor. Uma das formas de nos livrarmos de muitos “pré-conceitos” é entrando em contato com realidades distantes das nossas. É com este objetivo que a extensão universitária se torna imprescindível na formação dos estudantes.
Buscando a aproximação dos acadêmicos do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) à essência da futura profissão, que o projeto de extensão O Direito Achado na Rua procura integrá-los à realidade social, rompendo com o Direito estritamente positivado, como comenta a voluntária do projeto, acadêmica do oitavo semestre do curso, Giulia Vogt Maycá: “os cursos de Direito, em sua maioria, não possuem uma cultura forte e comprometida com a extensão, estando os acadêmicos, predominantemente, voltados ao ensino e pesquisa”. Segundo ela, embora o Direito Achado na Rua ainda seja um projeto recente, já cumpre um papel de grande relevância social na universidade, no sentido de fomentar o interesse dos acadêmicos na participação de projetos de extensão e proporcionar a interação com realidades sociais.
O projeto, criado em 2014 pela professora Maria Beatriz Oliveira da Silva, propõe aproximar o Direito dos movimentos sociais, além de incentivar o vínculo entre ensino, pesquisa e extensão. Giulia conta que a expressão “Direito Achado na Rua”, que deu origem ao projeto, foi criada com o objetivo de pensar o Direito orientado a partir de ações dos movimentos sociais: “Indo além do legalismo e procurando encontrar o Direito na rua, no espaço público, nas reivindicações da população, sem, por certas vezes, seguir o Direito Constitucional, tendo como seus principais expoentes Roberto Lyra Filho e José Geraldo de Sousa Junior”. A professora Maria Beatriz destaca que o projeto nasceu da percepção do “Direito como ‘movimento’, como direito emergente da luta e dos movimentos da sociedade e, também, inspirado na experiência de ensino, pesquisa e extensão da Universidade de Brasília (UnB) que há tempo trabalha com o Direito Achado na Rua”, comenta.
O projeto se desenvolve vinculado ao Núcleo de Interação Jurídica Comunitária (NIJUC), em parceria com a Pró-Reitoria de Extensão da UFSM (PRE), e funciona como Disciplina Complementar de Graduação (DCG), que é ofertada no curso de Direito. A voluntária Giulia comenta que a finalidade desta dinâmica é despertar o interesse pela extensão nos acadêmicos e integrá-los às comunidades santa-marienses, peritindo, posteriormente, sua inserção em projetos já existentes no curso de Direito. “Os encontros do grupo são realizados semanalmente, de modo que a parte introdutória das atividades constitui-se em pesquisas bibliográficas, leituras e discussões sobre o Direito Achado na Rua. Faz parte desta fase, também, a visita de profissionais da área que contribuíram com suas experiências em atividades similares no Brasil”, comenta a estudante.
Além disso, são realizadas oficinas, pesquisas e visitas a organizações ou grupos que são envolvidos com as temáticas relacionadas aos eixos do projeto possibilitando, assim, trabalhar a interdisciplinaridade e a formação de uma rede de debates entre o Direito, os Movimentos Sociais e a realidade que os envolve. A coordenadora Maria Beatriz, relata, ainda, que outro desejo do projeto é abrir as portas da universidade para a comunidade participar das oficinas e atividades realizadas, ao mesmo tempo em que prepara bases para a formação de uma futura assessoria jurídica popular mais qualificada e próxima da realidade, além de dar suporte para que os estudantes se sintam preparados a participar da extensão.
Diversas oficinas foram organizadas pelo projeto durante os anos de 2014 e 2015, com temáticas como o Direito de Morar e a Luta por Moradia, com a realização de visita às comunidades Estação dos Ventos e Nova Santa Marta em Santa Maria. A aluna do quinto semestre de Direito da UFSM, Dábine Caroene Capitanio, que cursou a DCG em 2015, conta que na comunidade Estação dos Ventos o grupo ouviu o líder comunitário Tito Rodrigues, além de conhecer o local e as dificuldades enfrentadas como a falta de saneamento básico, de eletricidade, de creches e de posto de saúde próximo, pois precisam se deslocar uma grande distância para terem acesso a consultas e medicamentos.
Outras ações do Direito Achado na Rua
Em parceria com a Themis: Gênero e Justiça, outra atividade realizada pelo projeto Direito Achado na Rua foi um programa de formação de Promotoras Legais Populares (PLPs), que, como conta a estudante Dábine Caroene Capitanio, “trabalha o empoderamento das mulheres que residem em comunidades com altos índices de violência relacionada ao gênero, para que elas se organizem e ajudem umas às outras na luta contra o machismo que vivem diariamente”. Ocorreram ainda oficinas sobre o Programa de Oportunidades e Direitos Socioeducativo, sobre a Teoria Crítica do Direito e o legado do Direito Alternativo, o Direito Achado no Lixo e a respeito dos direitos dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas.
Ainda em 2015, no segundo semestre, foi realizado o Curso de Formação em Educação Jurídica Popular, utilizando as contribuições da corrente crítica do Direito Achado na Rua e o método de Educação Popular, legado de Paulo Freire. “O objetivo central foi de, a partir de um curso de capacitação, implementar futuras ações de educação popular visando a democratização do conhecimento jurídico e o fortalecimento da participação popular na luta por acesso à justiça e pelo reconhecimento de direitos emergentes”, afirma a acadêmica Giulia Maycá.
A estudante de Direito Rafaely Romani Simoni relata que na conclusão da disciplina realizou o trabalho “O Direito Achado no Presídio”. Os estudantes foram até o Presídio Regional de Santa Maria para investigar sobre o pluralismo jurídico presente na organização do cárcere, as regras de convivência estipuladas pelos próprios internos. “Entrevistamos duas mulheres e um homem, foram conversas descontraídas, sem algemas. Eles nos forneceram um material incrível, de uma forma que se não fosse por via do projeto não seria possível, não na mesma dimensão. Com certeza esse foi o momento em que pude ver certa aproximação do que a academia discute, num plano abstrato, com a realidade”, ressalta. Rafaely destaca que acredita na extensão como fundamental para todos os cursos: “ela complementa o que aprendemos quando estamos isolados apenas no ‘ensino’”.
Dábine comenta que é muito difícil saber o que esperar ou como se preparar para momentos de atuação nas comunidades. “Cada projeto deve estar aberto a mudanças quando queremos atuar com grupos em vulnerabilidade, já que, muito provavelmente, a nossa teoria não se adéque perfeitamente à realidade deles”, comenta. Dábine ressalta que O Direito Achado na Rua a ajudou nessas dificuldades, além de proporcionar muito aprendizado a partir de trocas de experiências durante as aulas e por meio de leituras sobre projetos semelhantes existentes no Brasil.
Ela evidencia, por fim, que a vivência da prática se distancia dos procedimentos jurídicos, pois por meio dela pôde experimentar as realidades das comunidades e o afastamento do Direito que elas vivem. “A troca de conhecimentos entre nós e os grupos me trouxe uma outra percepção de realidade, que dentro da universidade eu dificilmente conheceria”, declara.
Para Giulia a realidade mostrouque existe uma “barreira” entre o Direito formal e os cidadão, de um modo geral, e as minorias, os impedindo de usufruir de seus direitos básicos estabelecidos na Constituição. Ela considera que o projeto vem sendo muito importante em sua formação acadêmica, pois a qualifica como futura profissional e a sensibiliza como pessoa. Giulia acredita que além de formar acadêmicos mais comprometidos com os Direitos Humanos e com a justiça social, o Direito Achado na Rua traz à tona a importância da relação da universidade e dos estudantes com os Movimentos Sociais por meio do incentivo a projetos de extensão.
Fonte: Extenda – Revista de Extensão da UFSM – 3 | 2016.
Link da Revista: https://issuu.com/visibilidadeufsm/docs/extenda_n_3_print.