Nota: A declaração da KCK, organização guarda chuva do Movimento Curdo foi feita no sábado, 20 de agosto, antes do ataque em Gaziantep à um casamento curdo que deixou 51 pessoas mortas e mais de 150 feridos, o ataque foi atribuído ao ISIS.
Devido à sua importância, no que diz respeito à questão curda, estamos publicando-a detalhadamente abaixo.
A Co-Presidência do Conselho Executivo da União das Comunidades do Curdistão (KCK), divulgou uma declaração sobre o estágio que a questão curda atingiu, ataques contra o Movimento Curdo (KM), apelam para um retorno às negociações (entre o KM e o Estado Turco) e as etapas necessárias de resolução a serem tomadas no futuro.
O KCK salientou que o movimento curdo sentiu a necessidade de re-expressar a sua abordagem em meio a demandas e as chamadas feitas por determinados governos, instituições internacionais, organizações do Governo Regional do Curdistão (KRG), as Forças Democráticas e o Partido Popular Democrático (HDP) na Turquia por um retorno às negociações para a resolução da questão curda. O KCK enfatizou que é o Estado turco, que deve dar um passo para a resolução do problema.
O KCK listou os seguintes passos de urgência para a resolução:
“Como Movimento de Libertação Curda, estamos prontos para cumprir nossas responsabilidades em todos os aspectos, se o governo do AKP demonstra haver a vontade necessária em resolver a questão curda e assegura que o povo turco vai dar um passo para isso, uma delegação parlamentar que envolva o HDP tem dialogado com o nosso líder Abdullah Öcalan e decidiu iniciar as negociações muito em breve, oportunidades serão criadas para que nosso líder se reúna com todos os partidos políticos dentro e fora do parlamento, incluindo organizações comunitárias que têm propostas para a democratização e resolução de problemas – principalmente com os alevitas, organizações não-governamentais e intelectuais”.
Observando que o fracasso da tentativa de golpe em 15 de julho foi uma grande oportunidade para a Turquia, o KCK disse que o governo do AKP tirou proveito desta falha mobilizando assim um contra-golpe.
AKP, responsável pela tentativa de golpe na Turquia
O KCK alegou também que o governo do AKP impôs um isolamento agravado ao líder Öcalan desde 05 de abril de 2015 e rejeitou o acordo de Dolmabahçe, feito em 28 de fevereiro de 2015 entre o KM e o Estado turco. Acrescentou que o governo turco “começou a implementar sua política e mobilização de guerra”, um mecanismo de golpe para suprimir a questão curda após os resultados da eleição geral de 05 de junho de 2015, que deixou o AKP sem maioria no Parlamento.
“Nosso líder Öcalan, lançou um processo de cessar fogo no final de 2012 e declarou um manifesto para a democratização da Turquia no Newroz de 2013. Com um plano de três fases, ele projetou a democratização da Turquia, declarou sua intenção de retirar as forças de guerrilha (PKK) das fronteiras turcas e, liberou soldados, policiais e um governador distrital pelo PKK. Por ter, o movimento, tomado estes passos, nosso líder tentou encorajar o estado turco a tomar medidas para a democratização. No entanto, o governo do AKP se absteve de tomar medidas de resolução da questão curda e sustentou o cessar-fogo apenas em prol de suas próprias decisões “.
‘Plano Colapso’ colocado em ação
“Ao sustentar o cessar-fogo, apesar de todas as abordagens negativas do estado, nosso movimento deu ao governo do AKP uma oportunidade para tomar medidas em prol da resolução da questão curda e democratização. Em cada reunião com o Estado e delegações do HDP, o líder Öcalan advertiu aos partidos da existência de um “estado paralelo dentro do estado” e enfatizou que estas estruturas com ligações exteriores não queriam a resolução da questão curda. Ele alertou repetidamente que o impasse nessa resolução havia criado um mecanismo de golpe de estado, e que este mecanismo entraria em ação ao menos que se desse um passo para sua resolução.
No entanto, Erdo?an e seu entorno não levaram em conta os esforços do nosso líder e o ambiente de não-conflito que ele havia negociado seriamente, não avançou um passo sequer no fortalecimento de tais esforços.
Como resultado, o governo do AKP, na pessoa de Erdo?an, trouxe em vigor o “mecanismo de golpe” ao decidir pela guerra durante a reunião do Conselho de Segurança Nacional (MGK), em 30 de outubro de 2014. O “Plano Colapso”, criado para esmagar o Movimento de Libertação Curda, foi decidido nesta reunião e o que se seguiu foram diversas manifestações de 6 e 8 de outubro, ajudando a evitar a queda de Kobane.”
O Conselho de Segurança Nacional propôs que o exército esmagasse o movimento curdo
O KCK enfatizou que havia sido entregue nas mãos do exército turco como tentativa de esmagar a luta durante a mesma reunião do Conselho de Segurança Nacional acima mencionada, e que isto ativou o ‘mecanismo de golpe’ e reforçou a facção de dentro do exército turco que a efetivou.
Recordando as observações do então primeiro-ministro Ahmet Davutoglu “Solicitei ao exército e à polícia para que se preparassem em 2014”, o KCK disse que isso era uma clara confissão do papel do governo do AKP na formação das fundações que ativaram o “mecanismo de golpe.”
O isolamento de Öcalan
A declaração do KCK lista os principais desenvolvimentos que levaram à ativação do “mecanismo de golpe” tais como: a rejeição do Contrato de Dolmabahçe, imposição de isolamento agravado a Öcalan desde 5 de abril, rejeição dos resultados das eleições de 7 de junho e o início de uma “guerra generalizada” em 24 de julho de 2015.
“Entende-se agora que o apoio dos poderes externos dados à política de guerra do AKP, depois da eleição de 07 de junho, está relacionado com a ativação deste “mecanismo de golpe”. Esta é a razão pela qual as potências externas fecharam os olhos para o governo do AKP. Eles estão queimando cidades curdas e massacrando centenas de civis. O plano era que o “mecanismo de golpe” obteria resultados mais breves em um ambiente de conflito onde o AKP e PKK fossem enfraquecidos.”
A tentativa de golpe de 15 de julho começou em dezembro de 2015
O KCK observou que a tentativa de golpe de 15 de julho teve início 14 de dezembro 2015, quando então o governo do AKP deu sinal verde para que o Exército turco entrasse em cidades curdas com tanques, artilharia e armas pesadas “esmagando o povo curdo que declarava autonomia.”
“Erdo?an e Ahmet Davutoglu comentaram ‘Nosso bravo exército derrotou os terroristas’ [a respeito de Sur, Cizre e Nusaybin] e isso significou que o “mecanismo de golpe” tinha sido ativado e decidiu tomar o poder do Estado. Sua reivindicação com esse exército era ‘Nós somos aqueles que lutam contra o PKK, estamos assumindo esse fardo pesado, e, portanto, nós somos os únicos que podem governar e determinar a política’. Os tanques, artilharia, helicópteros e jatos que foram bastante eficazes nas montanhas do Curdistão, agora mudam sua mira para Ancara, Istambul e Izmir. A fracassada tentativa de golpe surgiu como uma consequência das políticas que prodcuravam respostas para a questão curda e acabou por profundar o impasse. O governo do AKP afirma que este golpe foi encenado pelos círculos de [Fethullah] Gülenist. A verdade, porém, é que os membros do AKP desempenharam um papel importante no golpe, tanto ideológica quanto politicamente”.
O KCK disse que sempre houveram círculos democráticos e curdos na Turquia e que os mesmos permaneceram contra os golpes de Estado, “como testemunhamos durante o golpe militar de 1980 e da guerra suja lançada pelos militares na década de 90 contra os curdos.” O KCK acrescentou que ambas as partes, tanto de círculos curdos quanto democráticos, foram as que mais sofreram com os golpes.
Notando que o fracasso da tentativa de golpe de 15 de julho foi uma grande oportunidade para o povo turco, o KCK disse que o governo do AKP não havia pensado na resolução da questão curda e nem na democratização, através das quais o mecanismo de golpe poderia ter sido eliminado.
O KCK mudou de ideia
A declaração do KCK observa que o movimento curdo tinha considerado fazer uma nova avaliação da situação após a recente tentativa de golpe, mas decidiu não fazê-la devido à abordagem negativa do governo do AKP, e disse ainda que tinha concordado que o partido precisava avançar para promover a democracia, a resolução da questão curda e mostrar uma verdadeira postura anti-golpe, mas que isso não ocorreu no pós-golpe.
Em vez disso, o Estado continuou seu discurso chauvinista, declarando estado de emergência, e anunciou a suspensão das negociações com Imrali (ilha turca onde Öcalan está detido) exibindo uma abordagem desfavorável ao HDP com Erdo?an instrumentalizando tudo para se manter no poder.
Resposta a grupos que pedem negociações
“Mas, recentemente, foram publicados, mais uma vez, apelos e declarações sobre nossas necessidades e abordagens por certos estados, instituições internacionais que trabalham em soluções de conflitos pacíficos, organizações cooperativas do Curdistão Iraquiano (KRG), grupos de poder na Turquia, HDP e as forças democráticas.
Nosso líder Öcalan, e nosso movimento tem, desde 20 de março de 1993 feito grandes esforços para uma solução política e democrática à questão curda e declaramos cessar-fogo mais de dez vezes para esse fim. Além disso, o movimento mostrou-se favorável em retirar as forças armadas das fronteiras turcas (2013) e quase 40% das forças de guerrilha foram retiradas com muito mais mobilidade nesse sentido. Mas o Estado e o AKP não tomaram medidas necessárias para acabar com a negação aos curdos e estenderam suas políticas genocidas, a situação que criou o atual e intenso conflito veio à tona. “
O AKP fez proveito do cessar-fogo
O KCK afirmou também que os recentes confrontos tinham se tornado mais violentos do que os anteriores, porque o governo do AKP fez proveito do acordo de cessar-fogo para seus próprios fins.
“Erdo?an e o governo do AKP têm utilizado todos os cessar-fogos que tenham sido declarados para reforçar a sua permanência no poder. Eles criaram uma falsa esperança de resolução para isso. Erdo?an abordou a questão curda, como uma questão fundamental da Turquia de forma irresponsável a fim de promover seus interesses e de seu partido. Ele interrompeu o povo curdo, as forças democráticas, e todo povo turco, embora pudesse ter oferecido todas as condições e oportunidades para a solução da questão curda. Outros poderes políticos desconfiaram dessoe abuso de Erdogan e não ofereceram o apoio necessário.
Portanto, esta experiência mostra-nos que a declaração de cessar-fogo, sem um fim para a utilização da mesma só vai manter a política de uso ferramental que o partido faz, portanto, servindo à sua insistência em não resolver a questão curda. As questões relativas ao cessar-fogo não devem mais ser abordadas no interesse de um determinado partido, mas vistas como um problema que toda a Turquia enfrenta. Palavras, passos ou ações que não são em prol de uma solução e servem apenas para enganar não tem nenhum significado. Repetir isso não ajudará em nada, além de piorar a situação.
Não foi o PKK nem o Movimento de Libertação Curda que criaram esse conflito. O PKK foi formado pela falta de uma solução para a questão curda, e chamou a atenção para isso, bem como o fortalecimento dos fundamentos de uma solução, uma vez que lutou contra as políticas de negação e de extermínio”.
O Estado turco deve dar um passo
Em sua declaração, o KCK foi inflexível com o fato de que o Estado turco precisa dar o primeiro passo para as negociações a serem feitas.
“É o Estado turco, que deve dar um passo para a solução da questão curda e garantir uma solução duradoura. Se o governo não consegue fazer isso, o povo curdo irá criar sua própria solução e continuará a lutar por uma vida livre e democrática. Ninguém deve esperar uma abordagem diferente do povo curdo e do Movimento de Libertação. No entanto, o Estado turco nem sequer dá um passo, nem tolera a criação da própria solução do povo curdo. O Estado turco não pode sair deste ciclo vicioso se não abandonar suas políticas e alianças anti-curdas.”
A saúde e segurança do Öcalan
“Como Movimento de Libertação Curda, sabe-se que tivemos de recorrer à guerra por necessidade. A história tem provado que a paz na Turquia virá com a solução da questão curda, e que isso só é possível com a libertação dos povos curdos e do líder Abdullah Öcalan, que irão desempenhar um papel importante na realização desta solução. Nosso líder é a ponte fundamental entre os povos turcos e curdos. O líder Öcalan tem apresentado a abordagem mais razoável para a solução da questão curda, mas sua abordagem não foi correspondida, pelo contrário, ele foi colocado sob isolamento mais rigoroso.
Enquanto era sabido que os golpistas estavam muito irritados com o nosso líder por causa de suas análises, as preocupações do nosso povo a respeito de sua saúde e segurança não foram respondidas, assim como a não concessão ao acesso pelos advogados de sua família e garantia de seus direitos mais básicos. Não respondendo a essa demanda urgente isso prova que ainda não existem políticas para a solução democrática da questão curda. Se houvesse qualquer intenção de uma solução política democrática, uma reunião com Öcalan teria sido estabelecida. Neste contexto, o isolamento agravado imposto ao nosso líder é, em sua essência, um isolamento da solução política democrática.”
Solução possível caso o Estado turco tome medidas
O KCK enfatizou que uma solução para a questão curda poderia acontecer em um curto espaço de tempo, caso o Estado turco e o governo tomassem iniciativas. “Se desenvolverem uma política para essa solução, a questão curda será resolvida dentro de um mês, e a paz virá para a Turquia. Como um movimento de libertação, nossa preferência é por uma solução política democrática. É claro que vamos fazer todos os sacrifícios necessários para isso, o que requer uma postura do estado e do governo que garanta que eles não vão instrumentalizar os cessar-fogos e períodos livres de conflito. Ninguém deve esperar um passo apenas unilateral nesta questão.
No entanto, se o governo do AKP mostrar ter vontade de resolver a questão curda e selar um compromisso com o povo turco tomando assim as medidas necessárias tais como dar início às negociações para uma solução imediata com reuniões entre a Comissão Parlamentar incluindo a do HDP e nosso líder, garantirem que Öcalan terá a oportunidade de se reunir com a sua organização [KCK / PKK] e todas as partes dentro e fora do Parlamento, todos os grupos dentro da Turquia que têm pontos de vista sobre a democratização e soluções para seus próprios problemas, principalmente os alevitas, ONGs e organizações intelectuais; nós, como o Movimento de Libertação estamos preparados para cumprir todos os deveres no âmbito das medidas a serem tomadas e os compromissos recíprocos.
Esta não é uma imposição, nem uma colocação diante de condições. Estas são as etapas necessárias para se certificar de que não retornaremos às condições terríveis em que nos encontramos hoje. Grandes perdas e dor foram causadas pelas políticas que têm instrumentalizado assuntos relacionados com a solução da questão curda.
Se as políticas de negação e extensão genocidas [contra os curdos] forem descartadas, nós, como o Movimento de Libertação seremos os defensores mais destacados e praticantes de uma solução que permitirá ao povo turco viver em fraternidade. Este tem sido o nosso objetivo em todas essas décadas de longa luta, e vamos concretizar isso.
Fonte: Resistência Curda