Por Edson Teles.
Finalmente o terrorismo voltou ao Brasil. Há pelo menos quatro décadas os dispositivos de segurança pública, militarizados, aguardavam ansiosamente o retorno de um motivo de legitimação inequívoco para que suas instituições pudessem aplicar com desmesura as estratégias autoritárias do Estado policial.
Nos anos 70, o então chamado “terrorismo” se referia à luta armada e de resistência ao Estado ditatorial, este violento por natureza. Afinal, seus governantes eram militares, pessoas especializadas no uso da força como meio de diálogo com o outro. Fundamentada na Guerra Fria, que opunha dois blocos globais, a Doutrina de Segurança Nacional alimentou a Teoria dos Dois Demônios. Em síntese, a ideia era a de que havia um lado identificado com os subversivos e terroristas que, para serem combatidos e vencidos, demandavam um adversário mais violento e sanguinário. Assim, os porões da ditadura, suas práticas de tortura, assassinato e desaparecimento, se justificavam pela aparente necessidade de derrotar o comunismo.
É claro que hoje, mais de quarenta anos depois, a repetição da fantasmagoria do terrorismo no país se dá pela farsa. Se em outras partes do mundo este sujeito contemporâneo é real e bem presente, no Brasil ele foi reificado no criador de galinhas. Morador do sul do país, um dos suspeitos de terrorismo recentemente preso habitava uma casa no sítio da família e vivia da criação e venda de galinhas de raça.
A despeito da inconsistência do processo de combate a esta “unidade terrorista”, o Estado policial através de suas instituições acionou uma série de descumprimentos das próprias leis da Constituição. Com acusações frágeis de posts nas redes sociais (o que foi confirmado pelo próprio juiz que autorizou as prisões e pelo ministro da defesa ao dizer que se tratava de prisões para intimidar outras iniciativas), permaneceram detidos em um presídio federal por cerca de dez dias sem comunicação com advogados e hoje caem no ostracismo do sistema penal-prisional brasileiro.
Este fato – a prisão dos doze suspeitos de terrorismo às vésperas da Olimpíada – lança luzes sobre os efeitos de poder, de dominação e de controle embutidos na Lei Antiterror. Nos últimos anos houve o debate em torno da criação desta lei, proposta pelo Executivo e aprovada e sancionada no início de 2016. Muito se falou sobre os termos constantes no projeto (discuti o tema em post de novembro de 2012 aqui no Blog da Boitempo intitulado “A reforma do código penal e o controle da ação política”).
Os críticos, notadamente os movimentos sociais, prenunciavam em alguns dos artigos propostos e no “espírito” da lei um teor de controle e repressão. Em contraste, estavam as posições democrático liberais, defendendo a reforma de um outro artigo “duvidoso” e defendendo a aprovação da lei como modo de inserir o país na segura estrutura defensiva contra esta forma dos conflitos bélicos contemporâneos.
O que os dias atuais demonstram é que o conteúdo deste tipo de lei não apenas indica quebras de direitos, mas criam esferas de legitimação para a violência do Estado para além da letra da lei. É o caso dos eventos em torno da Lei Antiterror, a já passada Lei da Copa, a Lei das Olimpíadas, a Lei do Tribunal Militar para réus militares (esta lei autoriza a entrada das Forças Armadas na segurança pública, desobrigando-as a responder civilmente por eventuais crimes dolosos cometidos nas ruas, contra civis e em condições de “paz”).
Parece-nos que não se trata apenas de analisar as formas jurídicas e legitimadoras destas leis, seus mecanismos gerais e efeitos conjuntos ao restante das regras constitucionais. Trata-se de apreender as relações de força e poder nas extremidades da efetivação destes aparatos de segurança. Ou seja, lá onde se efetua cruamente estas leis, onde a discussão democrática liberal não atinge, nas periferias das grandes cidades, nos espaços de exceção e suspensão do direito em face a alguma necessidade maior, nas ocupações das escolas secundaristas, no protesto do bairro na avenida mais próxima.
São nestes territórios, locais, específicos, nos ramos menores das estruturas institucionais onde ocorrem a efetivação do poder autorizado por estas leis. Se são suspeitos de terroristas, aplica-se a Lei Antiterror de acordo com o que pensa o “soberano”, suspende-se o acesso aos direitos, legitima-se o excesso (tal como na teoria dos dois demônios) e, depois, se for comprovado algum dano maior à normalidade, justifica-se pelo procedimento preventivo necessário.
Com a Lei das Olimpíadas, por exemplo, proíbe-se o direito de expressão dentro dos locais de disputa dos Jogos. O manifestante portando cartaz “Fora Temer” é “rendido” por militares e “convidado” a se retirar. Os dispositivos de segurança ficam com a medalha de ouro.
Desta forma, o Estado policial repete a lógica laboratorial quando se busca por um meio universal a positivação do teste de uma doença. Tal procedimento pode produzir falsos positivos para casos singulares, os quais serão descartados e justificados pela demanda de se precaver do perigo maior. Assim também se faz com a aplicação destas leis. Utiliza-se abundantemente das estratégias violentas, mesmo que depois se reconheça ter ocorrido um excesso.
Não importa. O que vale é que as forças de segurança estão acima das leis e estas funcionam como legitimadoras de ações autoritárias. Estes poderes policiais e securitários, autorizados por leis liberais, vão além das regras que as organizam e as delimitam, e se estendem por meio de instituições, técnicas e táticas muitas vezes violentas.
Em vez de procurarmos os fundamentos jurídicos e democráticos de determinado conteúdo filosófico das leis, é preciso ver como se efetivam o exercício destas nas salas dos juízes locais, no batalhão militar instalado na avenida próxima à favela, na rua onde ocorre o protesto, na ocupação de um equipamento público na periferia da grande cidade.
Talvez o que se deva debater nos processos de criação e efetivação destas leis é seu uso extremo, cada vez menos jurídico. Não seus motivos externos ou teóricos. Não é a incidência de atentados em Paris, ou algum fundamento do direito penal que está em questão.
A política nos aparece como os conflitos constantes entre forças que se colocam nos papéis de dominação e resistência e cujas magnitudes são díspares o bastante para desconfiarmos do direito e das normas.
Parece que cegueira da Justiça, o fato de ela ser imparcial nos conflitos entre o patrão e o trabalhador, entre o agente de segurança e a vítima do abuso policial, ao menos “até que se prove o contrário”, nos leva a crer que nestas relações de poder a violência é um modo privilegiado de se silenciar as resistências.
De fato, o terrorismo que age no país não voltou, ele permanece nas instituições de segurança. É o terrorismo de Estado.
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Para aprofundar a reflexão, recomendamos a leitura do livro de intervenção Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas (R$10, impresso; R$ 5,00, e-book).
Fonte: Blog da Boitempo.