Por Samuel Lima.*
Os jogos olímpicos são considerados o maior evento esportivo do planeta para uma plateia estimada em um bilhão de pessoas. Sim, cerca de 1/7 dos habitantes do mundo estarão conectados com as competições da Rio 2016. É uma audiência gigante, sem dúvida, que conforma uma arena pública cujos embates, do ponto de vista da produção de sentidos e do simbólico, transcendem as disputas entre os atletas e a distribuição das medalhas.
No caso do Rio 2016, os principais jornais impressos e grupos de mídia do país apostaram, há tempos, no fracasso. Inicialmente, a decisão pró-Rio, em 2007, é um legado do governo Lula, que foi abraçado pelo governo Dilma Rousseff (2010/14).
No entanto, a ordem na Casa Grande é cancelar o registro do Partido dos Trabalhadores, como troféu de caça do protagonismo seletivo da Justiça Federal, a partir da “República de Curitiba”, as Olimpíadas foram desconstruídas como espaço para fortalecer a imagem do país perante o mundo e, em última análise, tal desconstrução também desdenhava até mesmo a oportunidade econômica (via Turismo e outras fontes) que os Jogos poderiam propiciar à Capital carioca e ao Brasil.
Isto foi anunciado, às vésperas da Cerimônia de Abertura em manchetes no impresso e nas edições digitais da Folha de S. Paulo e do Estadão de S. Paulo. Usando uma expressão de um dos criadores do show da abertura, os dois diários paulistas (que bem representam o espírito da elite tacanha deste país) estamparam algo similar: “Festa de abertura à base de ‘gambiarra’ falará sobre paz e ecologia” (Fonte: http://migre.me/uBqrj). A concepção geral do espetáculo coube aos renomados cineastas Fernando Meirelles, Andrucha Waddington e Daniela Thomas; a premiadíssima Deborah Collker assinou a coreografia que colocou em movimento mais de 6 mil voluntários.
Colunistas, apresentadores à la William Waack e outros “clones” regionais, no rádio e na TV, também vocalizaram na mesma direção, apostando no fracasso da Cerimônia de Abertura. Seria apenas o famigeradíssimo “complexo de vira-latas” do qual falava o eterno Nelson Rodrigues? Ou essa elite é mesmo um “ser” eternamente de “frente para o mar e de costas para o Brasil”? Meu palpite é que há uma mistura fina das duas coisas, historicamente, que resulta numa alma pusilânime.
Imprensa internacional é só elogios
A grandiosidade do show, como um evento cênico, cultural, temática (denúncia do aquecimento global, por exemplo), musical e político, no limite do que seria possível no Maracanã transformado em arena, impactou telespectadores e críticos, mundo afora. Embora o exercício da crítica seja sempre saudável e necessário (li críticas bem fundamentadas e interessantes, politicamente bem assentadas), confesso que vi e me emocionei com algumas passagens.
Evidentemente, como tudo passa pelos filtros, nem sempre objetivos e técnicos, da “noticiabilidade” alguns detalhes fundamentais foram preteridos nas vitrines da mídia tradicional e hegemônica. Por exemplo, o jornal Extra (Rio de Janeiro) destacou: “De bicicleta, modelo transexual Lea T puxa a delegação brasileira no desfile da cerimônia de abertura”. Há um posicionamento inegável, relevante e altamente simbólico, contra a intolerância de gênero e em defesa dos direitos da comunidade LGBT na presença da modelo conduzindo os/as atletas brasileiros para o palco da cerimônia (Fonte: http://migre.me/uBtbU). Não vi nenhuma informação similar nos demais veículos.
A repercussão na imprensa internacional foi notável, ante a expectativa de fracasso da “gambiarra” e dos “jogos olímpicos da crise e da recessão”. Evidente que a festa não sublima os problemas e a crise política (o Senado continua encaminhando o golpe que busca entronizar o ilegítimo governo Temer ao poder). Os principais meios de comunicação dos Estados Unidos, Europa, China, Japão, Austrália e América Latina não pouparam elogios. O jornal britânico The Telegraph resumiu, na minha visão, o sentimento geral: “É como se alguém tivesse apertado o botão e ligado as pessoas. De repente, tudo é esplêndido”.
Do espetáculo destaco sua energia pulsante, a abordagem precisa sobre a pobreza (no cenário e na canção interpretada por Ludmila (“Eu só quero é ser feliz/ andar tranquilamente na favela onde eu nasci…”), a exclusão dos negros na sociedade brasileira; a denúncia da emissão do dióxido de carbono (CO2) e o aquecimento global provocado pelo Norte rico; a excelência da música popular representada pelas figuras de Paulinho da Viola, Elza Soares, Tom Jobim (interpretado em “Garota de Ipanema” pelo neto Daniel Jobim, ao piano), Zeca Pagodinho, Marcelo D2, Caetano Veloso, Gilberto Gil e a cantora Anitta (os três últimos encerraram a festa com um clássico de Ary Barroso).
O grito que ecoa, em ruas e praças, também não escapou aos olhos atentos da imprensa internacional. No El País Brasil, o registro: “Temer reduz seu discurso na abertura da Olimpíada a 10 segundos e é vaiado”. Escreve o jornalista Tom Avendaño: “Os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro foram oficialmente abertos por uma cerimônia de quatro horas e um discurso de menos de dez segundos. Michel Temer, presidente interino do Brasil, cumpriu com sua obrigação e anunciou o início da Olimpíada, mas o fez com uma única frase: ‘Depois desta maravilhosa festa, declaro inaugurados os Jogos Olímpicos de Rio, que se celebram na trigésimo primeira olimpíada da era moderna’- cujo final mal se escutou por causa das vaias” (Fonte: http://migre.me/uBssc). Nos bastidores, o cantor e compositor Caetano Veloso, posou para as redes sociais segurando um cartaz: “Fora Temer”.
Folha de Duas Capas
Em meio à festa do primeiro domingo da Rio 2016, um acontecimento jornalístico talvez tenha despertado pouca atenção. Falo das capas da Folha de S. Paulo, edição em papel (07/08/2016). A que circulou apenas em S. Paulo foi fechada às 00h14 de 07/08, domingo e traz como manchete: “Serra recebeu R$ 23 milhões via caixa dois, diz Odebrecht” (Fonte: http://migre.me/uBrsN). Veja e compare a imagem das duas capas.
A reportagem da jornalista Bela Megale denuncia: “Executivos da Odebrecht afirmaram aos investigadores da Operação Lava Jato que a campanha do hoje ministro das Relações Exteriores, José Serra (PSDB-SP), à Presidência da República, em 2010, recebeu R$ 23 milhões da empreiteira via caixa dois. Corrigido pela inflação do período, o valor atualmente equivale a R$ 34,5 milhões” (Leia o texto completo aqui: http://migre.me/uBrv4). Serra nega e jura que sua campanha “foi conduzida em acordo com a legislação eleitoral em vigor” (Fonte: idem).
Porém, para o distinto público leitor da edição nacional da Folha (dia 07/08/2016), concluída às 13h32 do sábado, 06 de agosto, a manchete era outra: “Alta de dívidas do setor privado pode limitar retomada”. A reportagem assinada pelas jornalistas Érica Fraga e Mariana Carneiro (Caderno Mercado, p. 6, ed. 07/08/2106) sob o título “Recessão e juro tornam mais difícil rolar as dívidas” trata do cenário econômico de suposta “asfixia financeira” evidenciada pelos balanços de 284 empresas brasileiras. Escrevem as jornalistas: “As perspectivas de retomada da economia brasileira são ameaçadas pela asfixia financeira das empresas privadas, que estão atoladas em dívidas e encontram dificuldades para voltar a investir” (Leia o texto completo aqui: http://migre.me/uBsdi).
O conteúdo da “temível” delação premiada da Odebrecht já estava estampado nas capas das revistas semanais, cujas edições são fechadas sempre às sextas-feiras. Ou seja, um dia antes do procedimento adotado pelos jornais impressos, para suas edições dominicais. A pergunta final é simples: qual a razão de fundo que levou os executivos da Folha de S. Paulo a omitir, do seu público leitor nacional, tão relevante informação? Seria a rota do viés adotado no rumoroso caso Datafolha/Folha, na avaliação do governo interino de Michel Temer? Seja por qual razão for, razoável ou não, o maior jornal impresso brasileiro marca mais um gol ou ponto contra si e seus leitores, eclipsado talvez pelo calor das disputas olímpicas da Rio 2016.
Encerro recorrendo ao olhar arguto e fecundo do mestre Nilson Lage (UFSC), jornalista, pesquisador e professor aposentado, que escreveu em sua página no Facebook: “Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Vana Rousseff foram os grandes silêncios na festa de inauguração das Olimpíadas do Rio, que idealizaram e promoveram. À falta deles, muitos convidados também não vieram e os que vieram tiveram o pudor de se manter discretos. Da festa ficaram três mensagens: a de superação pela qualidade do espetáculo; de catarse, pela vaia imposta ao usurpador que se propunha representar quem o rejeita; e de esperança, nos últimos versos da canção de Ari Barroso: “… também é o povo de uma raça que não se entrega, não”.
* Professor do Departamento de Jornalismo da UFSC; pesquisador do objETHOS e do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC).
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Fonte: Blog Manuel Dutra.