Por Paulo Kliass.
A cada novo movimento na cena política fica mais clara a presença do DNA tucano nas decisões estratégicas do governo interino. Michel Temer nomeou pessoas ligadas ao PSDB para ocupar postos-chave de sua equipe na Esplanada. Dessa forma, o interino incorpora um elemento de tensão entre os doutrinários do ajuste ortodoxo na área econômica e a voracidade por gastos dos adeptos do fisiologismo da multiplicidade de partidos da base de apoio no Congresso Nacional.
Esse balanço entre essas duas correntes se manifesta em decisões concretas do governo. Um exemplo bem objetivo foi o processo de elaboração e votação da lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Apesar de toda a crítica realizada ao suposto “descontrole das contas públicas” atribuído ao governo Dilma, a equipe de Temer apresentou uma proposta de LDO prevendo um déficit primário superior a R$ 170 bilhões. Esse é o descompasso previsto de antemão entre as receitas e as despesas ditas primárias – aquelas que não sejam de natureza financeira. Ou seja, trata-se de um buraco orçamentário muito mais elevado do que o observado no ano anterior, antes do afastamento da Presidenta.
Ora, para quem centrou todo o seu combate denunciando as “pedaladas fiscais” e argumentando que aquele seria um mecanismo ardiloso para falsear o rombo existente nas contas do governo federal, tal opção de Temer evidencia apenas que nada foi feito para superar aquelas dificuldades. Ou melhor, muito foi feito. Os cortes vieram nas despesas de saúde, previdência social, educação, pessoal, administração da máquina de governo e outros. Mas o anúncio do déficit de tamanha magnitude tem o significado de liberar o governo para sua gastança especial onde e como quiser até o final do exercício, em áreas que possam ser do agrado de sua base de apoio entre os parlamentares e eventuais demandas de setores empresariais que lhe prestam apoio.
Ajuste “verdadeiro” em compasso de espera até outubro
O detalhe específico desse segundo semestre, que teve início há pouco, refere-se ao pleito de outubro próximo. Por mais que o governo Temer seja simpático às teses do financismo radicalizado, o fato inescapável é que haverá eleições em cada um dos mais de 5.700 municípios brasileiros. Isso significa um processo político envolvendo mais de 20 mil candidatos ao cargo de chefe do Poder Executivo local, além das várias centenas de milhares de candidatos a vereador pelo país afora.
Ora, a pressão de todo esse universo sobre o governo federal e sobre o establishment político é inegável. Cada um dos inúmeros subgrupos da ampla base de apoio federal não pode aceitar uma conjuntura de redução da capacidade das finanças públicas municipais. E muito menos eles se sentiriam confortáveis em carregar nas costas o ônus de medidas impopulares a serem anunciadas pelo governo em Brasília. O governo já é objeto de ampla desconfiança e rejeição. Caso as medidas prometidas nos corredores fossem divulgadas imediatamente, o quadro de isolamento seria ainda mais aprofundado.
Assim, Temer se ancora nessa desculpa vinculada ao calendário político-eleitoral e na necessidade de ver o impedimento de Dilma ser aprovado de forma definitiva em agosto para iniciar o seu governo “de fato”. E já reconheceu mesmo em recente entrevista que algumas “medidas impopulares” serão necessárias mais à frente. Isso significa: passadas as eleições, coisas para o ano que vem.
Cumplicidade mentirosa dos grupos privados de comunicação
O anúncio do pacote de maldades tem a sua cadência determinada pelo tempo das condições da política. Superadas as dificuldades de aceitação perante a sua base de apoio. O ano de 2017 se apresenta como ideal para esse fim. O governo já conta com um amplo colchão de apoio costurado junto aos grandes meios de comunicação. A simpatia dos principais órgãos de imprensa para com a equipe interina supera os limites do imaginável.
Os instrumentos de manipulação da opinião pública vão desde as tinturas de abordagem tendenciosa para os fatos anunciados até a mentira pura e simples. O clima de torcida organizada pró Temer é indisfarçável e não se admitem críticas nem mesmo quando se trata de apenas observar que as mesmas medidas adotadas por Dilma estão a se repetir na nova gestão. O mantra a ser difundido “ad nauseam” é que a equipe Meirelles/Goldfajn é competente e conta com a simpatia do sistema financeiro. Dessa forma, esses são os pré-requisitos fundamentais para que as intenções sejam positivas e portadoras de pleno sucesso.
Com isso, espera-se nas hostes palacianas estarem pavimentadas as condições para a divulgação do pacote de maldades para 2017.
A questão previdenciária vem sendo martelada insistente e maliciosamente martelada há tempos. Desde o período anterior à consumação do golpeachment, os “especialistas” vêm chamando a atenção para o “déficit estrutural” do nosso Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Na verdade, esse é um antigo sonho de consumo do financismo: botar a mão nesse fundo público bilionário, que movimenta mais de R$ 400 bilhões por ano sob a forma de arrecadação de tributos e concessão de benefícios previdenciários. Os olhinhos dos dirigentes da banca privada tilintam cifrõezinhos dourados só de pensar na possibilidade de se apropriarem de mais essa benesse.
Afinal não cogitam desperdiçar mais essa oportunidade histórica pacientemente construída. Agora fazem parte de um governo que chegou ao poder sem nenhuma legitimidade, pois não precisou sufragar esse programa entreguista junto à opinião da população. Esse é o momento para aproveitar e promover a verdadeira desestruturação desse regime de solidariedade previsto na Constituição de 1988. Para tanto faz sentido a urgência em caracterizar, de forma oportunista e leviana, o quadro atual como a antessala do apocalipse.
Maldades: previdência, limite de gastos e privatização
Outro projeto que visa promover a desconstrução do alicerce central das conquistas estabelecidas no texto da Constituição de 1988 é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n° 241/2016. De acordo com a proposição encaminhada pela equipe de Temer para apreciação pelo Congresso Nacional, as despesas da União teriam um teto para o seu crescimento. Assim, os gastos ditos primários somente poderão ser aumentados de acordo com a inflação do período. Ou seja, o crescimento real é nulo. A proposta é claramente prejudicial aos interesses da grande maioria da população, que depende da oferta pública de serviços como saúde, educação, previdência social, entre outros.
Ao iniciar a nova regra em um período onde as despesas com investimento da União e programas sociais já estão sendo comprimidas (lembremo-nos das gestões de Nelson Barbosa, Joaquim Levy e Meirelles à frente do Ministério da Fazenda), a PEC visa comprometer ainda mais a recuperação da capacidade de gasto e investimento do Estado. Por outro lado, é bastante significativo que não haja nenhuma previsão de limitar as despesas financeiras, com pagamento de juros e serviços da dívida pública. Essas rubricas põem crescer o quanto for necessário, mesmo acima dos índices da inflação.
Além disso, o governo diz claramente que pretende retomar com vigor o processo de privatização da economia, recorrendo a várias modalidades de beneficiar o capital privado, que incluem também a venda pura e simples de empresas estatais. Para tanto, volta a combinar o discurso a respeito da carência de recursos por conta do elevado endividamento e o surrado discurso sobre ineficiência intrínseca do setor público e o recurso à ideia surrada do Estado mínimo.
São estas os principais componentes do pacote de maldades que o governo temer deve anunciar em breve. Como se vê, corre-se o sério risco de um enorme retrocesso na desestruturação de importantes instrumentos de promoção de um eventual projeto de desenvolvimento nacional no futuro. A intenção é promover um verdadeiro desmonte na rede de proteção social prevista no texto constitucional, com o aumento quase definitivo da presença do capital privado nos mais variados setores da economia.
Publicado originalmente na Caros Amigos.
Foto: Reprodução/IELA
Fonte: IELA