Por Ligia Moreiras Sena.*
Conheci Angela há poucos meses, quando estivemos juntas numa mesa sobre “FEMINISMOS E DIREITO AO CORPO” na Universidade Federal de Santa Catarina, junto com Vitória de Macedo Buzzi, autora do livro Pornografia de Vingança, Lola Aronovich, escritora do blog Escreva, Lola, Escreva e professora da Universidade Federal do Ceará, e Thainá Castro, professora do curso de Museologia da Universidade Federal de Santa Catarina. A fala e presença de Angela me marcaram muito, por inúmeros motivos, a começar pelo fato de que ela chegou com um dos filhos dormindo e uma amiga pra dar apoio à criança enquanto ela participava do debate. Angela é uma mulher negra, estudante de Psicologia e tem três filhos. Contou histórias terríveis que acontecem todos os dias com mulheres negras, especialmente mulheres negras que são mães, e que as impedem de ter uma vida com o mínimo de dignidade nesta sociedade racista e misógina em que vivemos. Falou sobre a apropriação do corpo da mulher negra, sobre a hipersexualização que é depositada sobre seus corpos e sobre casos de esterilização involuntária de mulheres negras. Fiquei muito emocionada com sua fala, sua espontaneidade, sua força. Aprendi muito com ela naqueles poucos momentos e nossa identificação foi à primeira vista. Então neste último sábado, dia 04 de junho, voltamos a nos encontrar, dessa vez em um sarau feminista de empoderamento feminino e cultura em Florianópolis. Em boa parte do debate, discutimos sobre a maneira machista, ridicularizante e mercadológica que a mídia tradicional representa as mulheres. E então, Angela nos contou um caso que chocou a todas. É mais um caso de total desrespeito e irresponsabilidade que marca a atuação de grande parte da mídia tradicional. Especialmente a atuação da Rede Globo e suas afiliadas. Uma emissora com total falta de comprometimento com causas sociais, que representa as mulheres como produtos fetichistas e para consumo e faz escola na arte da misoginia. Apenas aqui neste site já foram relatados inúmeros casos de irresponsabilidade e total falta de ética e escrúpulos desta mídia. Como a matéria do portal G1 que divulgou depoimento de um obstetra chamando uma gestante de “comedora de placenta”, sem sequer questionar a fonte e expondo cruelmente a mulher. Como o caso da colunista de uma rádio local de Florianópolis afiliada Globo, que compara crianças brasileiras a cachorros franceses. Como o caso envolvendo um colunista social da mesma emissora, de nome Cacau Menezes, que objetifica sexualmente uma policial catarinense. Cacau Menezes já é velho conhecido no quesito desrespeito às mulheres e misoginia. Nem surpreende, portanto, o fato de que o relato absurdo abaixo veio de um quadro seu no programa diário JORNAL DO ALMOÇO, da emissora RBS, afiliada Globo no Estado de Santa Catarina. Inclusive, é relevante mencionar que a RBS foi lembrada – e vai continuar a ser sempre – na manifestação TODAS POR ELAS, ocorrrida em Florianópolis dia 30 de maio último, que reuniu centenas de mulheres em caminhada pelo centro da cidade, culminando em um ato nas escadarias da Catedral Metropolitana, quando ativistas pelos direitos das mulheres lembraram do caso de estupro de uma aluna do colégio Catarinense, que teve envolvimento do filho do diretor da própria RBS, e que foi silenciado por seu poder midiático.
Angela começou seu relato apresentando um vídeo que foi ao ar pela emissora na última quarta-feira. Neste vídeo, Cacau Menezes divulga a MARCHA DA MACONHA que aconteceria (e de fato aconteceu) dia 03 de junho. Assista ao vídeo. Você pode assistir clicando aqui (será direcionado para o site do G1) ou clicando na imagem abaixo (você será direcionado para o Youtube, para o caso de não querer dar views para a Globo – e para garantir que, ainda que o tirem do ar, tenhamos uma cópia).
Agora, dou espaço e voz a Angela Medeiros, para que você conheça essa história. Angela é mãe do Kairu, do Pedro e da Ísis. É estudante de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina e ativista do movimento negro.
MINHA IMAGEM VEICULADA INDEVIDAMENTE NO JORNAL DO ALMOÇO – EMISSORA RBS – AFILIADA REDE GLOBO EM SANTA CATARINA – EM 01 DE JUNHO DE 2016.
Por Angela Medeiros
01 de junho de 2016. Ao meio dia, entra no ar o programa Jornal do Almoço, que conta com o quadro de um colunista que discute sobre acontecimentos da cidade e apresenta sua opinião. Neste dia, ele fala sobre a mudança do local onde será realizada a MARCHA DA MACONHA, em Florianópolis. Enquanto fala, imagens de pessoas em uma manifestação são exibidas por meio de um vídeo.
Eu estou nas imagens.
Estou nas imagens, segurando meu filho, participando da Marcha.
No mesmo momento, começo a receber mensagens de amigas informando que me viram no jornal de maior audiência da cidade, participando da MARCHA DA MACONHA com um bebê no colo.
Meus pais assistem ao programa. Meu pai está com problemas sérios de coração e vê a imagem da filha no jornal. A filha que ele ajudou muito a fazer a faculdade. Meu pai é militante ativo do Alcoólicos Anônimoshá mais de 25 anos. Ele participa e dá palestras sobre as problemáticas do consumo de vários tipos de drogas em diferentes lugares.
Até aí, nada de novo sob o sol, pois uma mãe ativista geralmente participa de manifestações. Mas o que espantou as pessoas foi o fato de terem me visto na MARCHA DA MACONHA.
A questão é justamente essa. EU NÃO ESTAVA NA MARCHA DA MACONHA!
A imagem que foi exibida neste dia 01 de junho de 2016 data do ano de 2011 (eu disse 2011)! E se trata da 1ª MARCHA DAS VADIAS realizada em Florianópolis, em que participei com meu filho no colo, à época com 1 ano e alguns meses. Eu estava naquela manifestação, em 2011, indignada por saber que mulheres estavam mais uma vez sendo julgadas pela roupa que vestiam, compreendendo a necessidade de dizer que nós temos direito aos nossos corpos, direito de vestir o que quisermos, e que nenhum homem pode dizer que eu sou VADIA porque eu uso a roupa que me dá na telha, por estar cansada de ver mulheres tendo que se encaixar em padrões para entrar na universidade.
O jornalismo desta rede de comunicação – a RBS – me intriga. A falta de ética, de filtro, de análise do conteúdo que vai veicular é grotesca. Como a maior rede de comunicação do país – posto que é afiliada Globo – não faz uma análise criteriosa do seu conteúdo antes de divulgá-lo ao meio dia? Isso me indigna. Especialmente considerando que ainda não tenho um posicionamento definido em relação à MARCHA DA MACONHA, pois ainda me preocupa, sendo mãe e negra, saber que a legalização não mudaria o contexto de violência que sofre a juventude negra, coisa que vi nos anos de participação em movimentos; pois que me preocupa saber que a marcha ainda é um movimento que discute a legalização, mas não a condição de violência e o genocídio da juventude negra. Eu não participaria desta marcha. E não sou usuária de maconha. Como exibir a minha imagem, segurando meu filho bebê no colo, em uma manifestação da qual não participo?!
Mas calma. O absurdo não é só esse.
Minha luta contra a divulgação indevida de minha imagem por esta emissora não começou nesta data, 01 de junho de 2016, dia de sua mais recente veiculação. Na verdade, nesta quarta-feira, enquanto recebia mensagens de amigos, o que eu vivi foi um verdadeiro DEJÀ VU. E por que? Porque, acreditem: este fato grotesco, esta situação absurda, já havia acontecido, exatamente do mesmo jeito. No ano de 2013…
Em 2013, também recebi mensagens de amigas informando que eu havia aparecido no MESMO JORNAL DO ALMOÇO, na MESMA MARCHA DA MACONHA! Em 2013 a mesma imagem que vi essa semana foi veiculada novamente como sendo MARCHA DA MACONHA. Eu já havia sido exposta assim, indevidamente, com meu filho no sling, na marcha errada!!
Naquela época, meu pai também viu a imagem… E foi muito constrangedor. Eu sou mãe, natural de São Paulo e para estudar em Florianópolis, tenho o apoio dos meus pais, e minha mãe foi uma guerreira junto comigo, pois veio de São Paulo, deixando o marido, ouvindo críticas machistas do tipo: “Como assim, vai deixar seu marido?”, “Você não tem medo que ele arranje outra?”, “Eu não deixaria meu marido por causa do estudo dos meus filhos”. Meu pai nos visita periodicamente e em uma dessas visitas viu a imagem da filha – que deveria estar estudando – na MARCHA DA MACONHA. Um senhor de 61 anos, católico ortodoxo, coordenador do Alcoólicos Anônimos. Pensa?
Naquele ano de 2013, abri um processo por dano moral e uso indevido de imagem contra a RBS. E o processo está rolando até hoje. Ganhei em primeira instância. Eles recorreram. E o processo está parado desde 13 de março de 2015.
Pensar nas consequências de um jornalismo irresponsável é necessário. Imagine as consequências que essa imagem cria para uma mulher negra, periférica, ativista, estudante de Psicologia e o principal: mãe de 3 filhos? Eu estou me formando numa luta dura, cheia de entraves, dificuldades, estou fugindo da lógica atual do papel da mulher negra nesta sociedade e não teria nenhum problema em ser atrelada à MARCHA DAS VADIAS, mas não admito que minha imagem seja utilizada de maneira equivocada, seja para o que for, poderia ser comercial de margarina, nenhuma rede de comunicação tem o direito de usar minha imagem sem meu consentimento!
Àquela época, eles disseram que “minha imagem poderia ser utilizada, pois se eu estou na marcha das vadias poderia estar em qualquer outra marcha, logo minha imagem poderia ser utilizada”. Se fosse assim, então, qualquer um poderia pegar a mensagem de qualquer pessoa e colocar aqui e ali independente de qualquer coisa…
Fica então o questionamento em relação a ética jornalística, à falta de respeito e à sensação de impunidade que sinto vendo que, mesmo com um processo em curso, parado, minha imagem continua sendo veiculada com meu filho, que hoje tem quase 6 anos, e a preocupação com as consequências que isso pode causar.
Eu espero mais uma vez a justiça. Na primeira vez, não quis expor minha indignação, acreditando que essa empresa de comunicação seria coerente e tomaria mais cuidado com a forma com que constrói seu jornalismo.
Mas dessa vez quero expor.
Isso não pode ficar impune!
Angela Medeiros
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Quando convidei Angela para contar sua história aqui, foi para ajudá-la a movimentar novamente seu processo contra a RBS, parado desde março de 2015, há mais de 1 ano. Então eu quero pedir a todas as pessoas que defendem os direitos das mulheres, em especial às mulheres, em especial às mulheres catarinenses, em especial às mulheres mães, que nos ajudem a pressionar a justiça catarinense para que Angela não seja prejudicada, além do que já foi.
Postem! Compartilhem! Falem sobre isso! A RBS já silenciou um caso muito pior, não vamos permitir que silencie este também!
#AngelaMedeiroscontraRBS
#MulherescontraRBS
#MãescontraRBS
Em tempo: para mim é uma honra que Angela Medeiros, essa mulher tão forte, tenha aceito nosso convite para integrar a equipe de mães da plataforma Cientista Que Virou Mãe. Logo mais teremos mais textos dela por aqui.
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Ligia Moreiras Sena é mãe da Clara, bióloga, mestre e doutora em Ciências, doutoranda em Saúde Coletiva, escritora. Mudou toda sua vida depois do nascimento da sua filha por um único motivo: quer ajudar a diminuir as desigualdades e iniquidades que as mulheres passam a viver apenas por se tornarem mães. Criadora do site CIENTISTA QUE VIROU MÃE. Apaixonada pelo que a maternidade pode trazer às mulheres em termos de motivação para o empoderamento, a emancipação e a autonomia. Escreve aqui sobre tudo isso: infância, feminismo, educação sem violência, empoderamento materno, direitos reprodutivos e o combate à violência contra a mulher.
Fonte: Cientista que virou mãe.