Por Julia Saggioratto, para Desacato.Info.
Na madrugada de 23 de abril de 2002 diversas famílias ocuparam um latifúndio no interior de Chapecó, oeste de Santa Catarina, como comenta o agricultor Pedro Rocha: “Enquanto a burguesia dormia nós fazíamos a nossa parte”. Lá passaram sete anos resistindo e pressionando para conquistarem sua terra. Após o longo tempo de espera, de um acampamento de 28 dias no INCRA onde davam aula às crianças, eis que chega o momento mais esperado e mais lembrado pelos, hoje, assentados: o dia da conquista da terra.
Com o decreto em mãos os agricultores soltaram foguetes e iniciaram a construção de suas moradas, seus barracos de lona. Dividiram o assentamento em setores para saúde, educação, alimentação, segurança e negociação. Antes latifúndio improdutivo, hoje abriga cerca de 30 famílias com lotes de 6 hectares de terra cada, as quais produzem alimentos e firmam sua dignidade. Em meio à discussão de um nome para o assentamento surge Dom José Gomes, bispo da diocese de Chapecó, que teve sua trajetória junto aos povos excluídos e marginalizados e que contribuiu com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Por este motivo o assentamento ganhou o nome de Dom José Gomes, que faleceu em setembro de 2002.
Uma das tendas temáticas do 12º Encontro Estadual de Comunidades Eclesiais de Base de Santa Catarina, que aconteceu entre os dias 20 e 22 de maio, foi no assentamento Dom José Gomes. Os participantes da tenda, vindos de diversas regiões do estado, puderam entender e sentir um pouco da realidade vivida pelos assentados que inclui forte preconceito pelos habitantes da cidade de Chapecó. O assessor da tenda, Álvaro Santim, assentado na comunidade Dom José Gomes, buscou traçar pontos da história da agricultura brasileira para que a realidade atual pudesse ser entendida em sua totalidade.
Álvaro iniciou sua fala com esclarecimentos sobre a origem das negociações pela terra no Brasil. Após o colonização por Portugal, as terras brasileiras foram divididas em capitanias hereditárias, dadas a amigos do rei Dom João III. O Brasil vivia num sistema de escravidão e massacre dos povos indígenas. Após a industrialização surgia a necessidade de mão de obra e, principalmente, de consumidores para este mercado. Por este motivo diversas leis surgem neste momento histórico para a libertação dos escravos como a Lei do Ventre Livre, em que os filhos de escravos seriam libertos, mas os pais continuariam neste sistema, a Lei do Sexagenário em que os escravos estariam libertos ao completar 60 anos e, por fim, a Lei Áurea, em que a escravidão tem seu fim formal, apesar de existir até os dias atuais.
Antes disso, porém, foi promulgada a Lei de Terras, em que ficou estabelecido que só se poderia adquirir terras por meio de compra e venda ou doação do estado. A obtenção de terra por meio do usucapião não era mais permitido. Em consequência disto as maiores e melhores propriedades ficaram nas mãos dos mesmos donos passando como herança para outras gerações.
Escravos libertos, sexagenários e filhos de escravos que nada possuíam continuavam, muitas vezes, na situação de escravidão ou iam ocupar as regiões das cidades que lhes eram permitidas, os morros às margens. Muitos imigrantes de diversos países da Europa e da Ásia vieram para o Brasil em busca de sua “terra prometida”, se instalando, também, de formas precárias. Neste momento diversas revoltas de escravos fugidos, caboclos e indígenas, como Contestado e Canudos, além dos quilombos de resistência, surgem contra aqueles que possuíam a terra e que dela continuaram donos.
Após a Revolução Verde, que ganhou força na década de 1970, inicia-se um processo de esvaziamento do campo, visto que os agricultores estavam sendo substituídos por um pacote tecnológico que incluía sementes transgênicas, agrotóxicos e maquinários em nome da modernização. Diante deste contexto o Brasil se tornou o maior consumidor de agrotóxicos no mundo, que contamina, além dos alimentos e da população, a terra, a água, o ar, enfim, toda forma de vida. O êxodo rural provocou o inchaço das periferias das cidades e o campo foi consolidando-se em sua maioria por latifúndios.
Segundo o assessor Álvaro Santim, atualmente, das áreas agricultáveis no Brasil, uma porcentagem muito pequena é destinada a pequenos agricultores, que produzem cerca de 70% dos alimentos consumidos no país. De 1990 até 2008, a produção de arroz e feijão diminuiu, enquanto a produção de cana-de-açúcar, milho e soja aumentaram mais do que o dobro. Além do aumento da produção de madeira e carne bovina.
A educadora da Associação Paulo Freire de Educação e Cultura Popular (APAFEC), Mariza Fidelis, da cidade de Fraiburgo, conta que a experiência foi muito boa, pois sabe da luta de um por seu pedaço de terra e as dificuldades que enfrentam desde o momento de acampamento até a conquista da terra, com os desafios de viver no assentamento. “O barraco de lona preta até a casa, sinto um orgulho muito grande desse povo e de suas lutas, me senti em casa”, ressalta. Mariza comenta, ainda, sobre os assentados que deram seus depoimentos de orgulho e felicidade, ela garante que foi uma grande aprendizado em sua vida e que a vivência contribuirá para melhorar seu trabalho tanto dentro da igreja como na APAFEC.
Tenda temática do 12º Encontro Estadual de Comunidades Eclesiais de Base.
No domingo, 22, diante das realidades discutidas e experiências no assentamento os participantes da tenda realizaram uma apresentação que sintetizava os principais problemas do campo atualmente. Os pontos observados pelos participantes incluíam a perda da sementes crioulas e da cultura camponesa, a esteriotipização dos camponeses, o esvaziamento do campo, o aumento da concentração de terra, o modelo de agricultura baseado no agronegócio que intensifica ano após ano o uso de transgênicos e agrotóxicos e, ainda, a falta de escolas e de uma pedagogia para o campo. O questionamento que fizeram ao final foi sobre qual seria o futuro de um campo sem camponeses, uma agricultura sem agricultores.