Por Marcelo Auler.
Há quatro dias, O Cafezinho publicou em primeira mão a Circular Telegráfica Nr. 101296 que o Itamaraty, comandado por José Serra, fez circular entre todos os embaixadores e cônsules brasileiros no exterior, na tentativa de estancar as críticas que outros governos e a imprensa internacional vêm fazendo ao golpe brasileiro que destituiu Dilma Rousseff.
Recebi o texto no sábado e hoje decidi postá-lo, mesmo após verificar que o Cafezinho já o tinha feito em uma reportagem de Theo Rodrigues. O faço, por entender fundamental que se conheça os argumentos – um tanto quanto falaciosos – que a diplomacia brasileira, a partir das ordens de José Serra, vem utilizando não em defesa do país, mas à serviço de um grupo que tomou o poder através de um golpe. Trata-se, na verdade, como resumiu um amigo, da “ideologização da politica externa e partidarização da mesma”.
A defesa que aparece no texto, segundo apurou Theo Rodrigues, escrito pelo Ministro de Segunda Classe Haroldo de Macedo Ribeiro, é até primária. Respalda-se no fato de o impeachment estar previsto na Constituição e ele ter sido decidido por uma maioria de parlamentares que, segundo o telegrama cita, “receberam igualmente milhões de votos para cumprir suas funções constitucionais, entre as quais a de investigar – e sancionar, se for o caso – o Presidente da República na hipótese de cometimento de crime de responsabilidade”.
Não fala dos pormenores do golpe, da preparação pelos políticos que pretendiam obstaculizar a Lava Jato para salvarem sua própria pele, como ficou claro nas gravações feitas pelo ex-presidente da Transpetro. Sérgio Machado. Não especifica, como destacou Jânio de Freitas neste domingo (29;/05) em sua coluna na Folha de S. Paulo – O prêmio – “a contribuição da Lava Jato, com a ida coercitiva de Lula para o aeroporto, a divulgação dos seus telefonemas com Dilma, e o veto à sua posse ministerial por Gilmar Mendes, criando o clima coincidentemente adequado para a decisão de Eduardo Cunha pró-impeachment”.
Na verdade, se a diplomacia brasileira espalhada pelo mundo foi basear-se no telegrama enviado pelo Itamaraty para tentar modificar a opinião daqueles que vêem um “golpe” no afastamento da presidente, dificilmente conseguirá êxito. Pois hoje, a certeza do golpe já domina cabeças pensantes mundo à fora, como o depoimento jurista italiano Luigi Ferrajoli, um dos principais teóricos do Garantismo, prestado neste domingo, em Madri, como mostra o vídeo abaixo.
Da SERE em 24/05/2016
Circular Telegráfico – Nr. 101296
Transmite informações sobre o processo de impeachment da Presidente da República e dá instruções.
Como é do conhecimento de Vossa Excelência, órgãos de imprensa, acadêmicos e membros da sociedade civil, mas também dirigentes de organismos internacionais e representantes de governos, têm-se manifestado, frequentemente de forma imprópria e mal informada, a respeito de questões da conjuntura política interna brasileira, em especial do processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, ora em curso.
2. Os equívocos porventura cometidos no tratamento de temas da realidade brasileira por autoridades locais na jurisdição do Posto, geradores de percepções erradas sobre o corrente processo político no Brasil, devem ser ativamente combatidos por Vossa Excelência, que se poderá valer, para tanto, dos documentos e das informações que lhe sejam encaminhados por meio eletrônico.
3. De início, é fundamental esclarecer – com elementos factuais e jurídicos sólidos – que o processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff observa rigorosamente os ditames e ritos previstos na legislação brasileira. O devido processo legal está sendo observado com todo o rigor, como deve ser, sob a supervisão atenta do Supremo Tribunal Federal, instância judiciária máxima do País e guardião da Constituição da República.
Declarações vagas e sem fundamento sobre a inobservância da legislação brasileira, sobretudo emanadas de autoridades governamentais ou de dirigentes de organismos internacionais, precisam ser enfrentadas com rigor e proficiência, a fim de evitar que continuem a fomentar dúvidas infundadas sobre a lisura do processo político no Brasil.
4. Vossa Excelência perceberá o tipo de avaliação equivocada que vem sendo difundida a respeito do processo político no Brasil – e que deve ser contestada – por meio da seguinte seleção de excertos de notas e declarações proferidas por dirigentes de organismos internacionais e governos:
“Nossa Organização tem feito uma análise detalhada do juízo político iniciado contra a Presidente e concluiu que o mesmo não se enquadra nas regras que sustentam o atual processo”. (SG-OEA – 15/04/16).
“El juicio político contra la presidenta legítima Dilma Rousseff es una manobra, disfrazada de legalidade, para apartarla de su cargo (…)”.(ALBA-TCP – 12/05/16).
“Los países de la Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América-Tratado de Comercio de los Pueblos, ALBA-TCP, informados de la votación ocurrida em el día de ayer en el Senado de Brasil, rechazamos energicamente el golpe de Estado parlamentario-judicial que está camino de consumarse en ese país”. (ALBA-TCP/ 12/05/16).
“El Gobierno del Estado Plurinacional de Bolivia, luego de conocer la decisión del Senado Brasilero que aprobó el inicio de un juicio político en contra de la Presidenta Dilma Rousseff, en base a una “farsa jurídica y política”, expresa su profundo rechazo a estas acciones que pretenden desestabilizar los procesos democráticos y desconocer la voluntad de los pueblos expressadas en el voto popular”. (Bolívia – 12/05/16).
“El Gobierno Revolucionario de la República de Cuba ha denunciado de manera reiterada el golpe de estado parlamentario-judicial, disfrazado de legalidade, que se gesta desde hace meses en Brasil”. (Cuba – 12/05/16).
“La República Bolivariana de Venezuela rechaza categoricamente el Golpe de Estado parlamentário en curso en Brasil que, mediante farsas jurídicas de las cúpulas oligárquicas y fuerzas imperiales, pretenden el derrocamento de la presidenta (…)”. (Venezuela – 12/05/16).
“(…) el proceso abierto contra la presidenta Dilma Rousseff es una manipulación política, en el cual no se ha podido comprobar que existe algún tipo de delito por el cual enjuiciarla”. (El Salvador – 14/05/16).
5. A Constituição Federal e as leis brasileiras estão sendo cumpridas de forma bastante estrita pelos Poderes constituídos, fato comprovável mediante qualquer análise criteriosa e isenta.
Não é admissível, portanto, que o processo de impeachment em curso seja assemelhado a “manobras” ou “farsas políticas”. Como em qualquer país em que impere o Estado de Direito, a lei brasileira precisa ser cumprida. Acusações dessa natureza, sem fundamentação factual e jurídica, revelam desconhecimento profundo do ordenamento jurídico brasileiro e prejudicam a imagem do País no mundo.
6. Nos contatos de Vossa Excelência com interlocutores locais, faz-se necessário enfatizar que o processo de impeachment tem natureza eminentemente política e não se confunde com um julgamento penal. Essa é a natureza do impeachment em todos os países democráticos que acolhem em suas legislações esse instituto, e não apenas no Brasil. O que se busca por meio do processo de impeachment é investigar – e sancionar – ocupantes de funções públicas aos quais se impute o cometimento de infrações político-administrativas, e não de crimes comuns.
São descabidas, portanto, afirmações no sentido de que se estaria aplicando equivocadamente o rito de impeachment no Brasil a uma autoridade que não teria cometido crime na acepção da lei penal. O seguinte excerto de declaração do Secretário-Geral da UNASUL ilustra o tipo de avaliação equivocada do instituto do impeachment que compromete uma análise isenta do que está ocorrendo no Brasil:
“La Presidenta solo puede ser procesada y destituída – revocando el mandato popular que la eligió – por faltas criminales en las cuales se compruebe su participación dolosa activa. Aceptar que un mandatário puede ser separado de su cargo por supuestas fallas em actos de carácter administrativo llevaría a la peligrosa criminalización del ejercicio del gobierno por razones de índole simplemente políticas”. (SG-UNASUL – 12/04/16).
7. Os chamados “crimes de responsabilidade”, previstos no artigo 85 da Constituição Federal e em outros dispositivos legais brasileiros, como a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, são infrações político-administrativas, e não crimes no sentido da lei penal. A expressão “crime de responsabilidade”, adotada no Brasil desde a legislação imperial, não se refere a uma infração penal, ainda que nela esteja inserido o termo “crime”. Diferentemente dos crimes comuns tipificados na lei penal, sancionados com penas de detenção ou reclusão, os crimes de responsabilidades são punidos com a perda do mandato pela autoridade infratora e com sua inabilitação para a função pública por determinado período de tempo. Por essa razão, o artigo 86 da Constituição Federal estabelece claramente que o Presidente da República será julgado pelo Supremo Tribunal Federal, no caso de cometimento de crime comum, e pelo Senado Federal, instituição política por excelência, nos crimes de responsabilidade.
8. Ilustram os erros de análise jurídica do instituto do impeachment – e, em especial, dos termos em que o referido instituto figura na lei brasileira – os seguintes excertos de declarações de dirigentes de organismos internacionais e autoridades estrangeiras:
“La elección democrática y mayoritaria de Dilma Rousseff como Presidenta Constitucional no puede ser derrogada em un juicio político por una mayoría parlamentaria a menos que exista una prueba que la vincule de manera directa y dolosa con la comisión de um delito común, hecho que hasta el momento no ha sucedido”. (SG-UNASUL – 18/04/16)
“Asimismo, reitera su decidido respaldo al pueblo de Brasil y al Gobierno constitucional de la Presidenta Rousseff, legítima depositaria del mandato popular expressado en las últimas elecciones democráticas, y contra la que no pesa, hasta el momento, una sola imputación que la vincule con la comisión de un delito común”. (Equador – 12/05/16).
9. Entre os crimes de responsabilidade, encontram-se as violações à lei orçamentária. Note-se que o respeito às regras orçamentárias figura em todas as Constituições brasileiras como obrigação da qual não se pode afastar o administrador público, o que atesta sua importância no ordenamento jurídico nacional. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 85, qualifica expressamente como crime de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a lei orçamentária. A Presidente da República foi acusada de haver violado regras orçamentárias mediante, entre outras ações, a abertura de créditos suplementares sem prévia autorização legislativa e a realização de operações de crédito ilegais com entidades do sistema financeiro nacional de controle da própria União. Trata-se, portanto, de hipótese inconteste de aplicação do rito do impeachment, nos termos da Constituição Federal.
10. Alguns dirigentes de organismos internacionais e autoridades estrangeiras revelam dificuldade em compreender que a má gestão das contas públicas, consubstanciada em ações de natureza administrativa, caracteriza crime de responsabilidade sempre que tipificar uma violação à lei orçamentária ou comprometer o princípio da probidade na Administração, conforme determina expressamente o artigo 85 da Constituição Federal:
“Não há nenhuma acusação criminosa contra a presidente, além do argumento relacionado com a má gestão das contas públicas em 2014. Trata-se, portanto, de uma acusação de natureza política que não justifica um processo de destituição”. (SG-OEA -15/04/16).
“Este proceso de destitución presidencial, calificado por la presidenta Rousseff como um “Golpe de Estado”, se basa en la “criminalización de acciones administrativas” que no ameritan responsabilidad alguna, según las propias leyes brasileiras”. (Bolívia – 12/05/16).
11. Na ordem constitucional brasileira, a Câmara dos Deputados é o órgão competente para receber a denúncia de cometimento, pelo Presidente da República, de crime de responsabilidade, bem como para realizar o juízo político de admissibilidade dessa denúncia, conforme estatuem os artigos 51, I, e 86, caput, da Constituição Federal. Em 17 de abril de 2016, o Plenário da Câmara dos Deputados autorizou, em sessão deliberativa extraordinária à qual compareceram 511 parlamentares, o prosseguimento do processo de impeachment da Presidente da República. Dos 513 membros da Câmara dos Deputados, 367 votaram a favor da admissibilidade da denúncia, número que ultrapassou o quórum de 2/3 dos parlamentares daquela Casa Legislativa exigido para o seguimento do processo de impeachment da Presidente da República.
12. O Senado Federal, por sua vez, é o órgão competente para processar e julgar o Presidente da República por crimes de responsabilidade, nos termos do artigo 52, I, da Constituição Federal. No dia 12 de maio de 2016, 55 dos 81 senadores da República que analisaram os aspectos formais da denúncia consideraram haver indícios suficientes de prática de crime de responsabilidade e votaram a favor da abertura do processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff. Em decorrência da referida decisão, a Presidente da República foi afastada do cargo por até 180 dias, havendo sido substituída em suas funções, interinamente, pelo Vice-Presidente Michel Temer, conforme prevê a linha sucessória estabelecida pela Carta Constitucional.
13. Para corrigir informações equivocadas no sentido de que a Presidente da República teria sofrido impeachment sem que se tivesse sido caracterizado – e comprovado – o cometimento de crime de responsabilidade, é preciso deixar muito claro que as decisões adotadas até aqui pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal referiram-se tão somente ao juízo de admissibilidade do processo e à constatação da presença de indícios de cometimento de crime de responsabilidade pela Presidente da República, o que impôs, nos termos da Constituição Federal, a instauração do processo de impeachment. As sessões de votação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal foram precedidas de exercício extenuante de informação – factual, técnica e jurídica – dos parlamentares brasileiros sobre os fatos denunciados, com amplo respeito ao princípio do contraditório, o que lhes permitiu formar a convicção necessária para se pronunciarem. Nesse sentido, não são razoáveis declarações a exemplo da seguinte:
“La decisión adoptada ayer por la Cámara de Diputados de Brasil de continuar el processo de destitución de la Presidenta Rousseff, sin que haya existido indício o discusión de fondo durante el debate sobre supuestos delitos, constituye um motivo de seria preocupación para la región”. (SG-UNASUL – 18/04/16).
14. É preciso ter presente que o rito do impeachment foi estabelecido pela Lei 1.079, de 10 de abril de 1950, havendo sido confirmado e detalhado pelo Supremo Tribunal Federal, ao final de 2015. Na etapa final do rito do impeachment, que se iniciou com a instauração do processo respectivo no dia 12 de maio de 2016, o Senado Federal converte-se em instância julgadora e decide. Na análise do mérito da peça acusatória por parte do Senado Federal, o Presidente do Supremo Tribunal Federal assume a presidência do processo. O direito de defesa será amplamente assegurado à Presidente da República também nessa etapa. A decisão do Senado será fundada na apreciação judiciosa de todos os fatos e argumentos, de acusação e de defesa, que lhe forem apresentados. Por tratar-se de um julgamento político, de competência exclusiva do Legislativo, não caberá recurso da decisão final ao Poder Judiciário.
15. O processo de impeachment, típico dos regimes democráticos, existe exatamente para permitir o afastamento de suas funções dos agentes públicos que cometam crimes de responsabilidade. Em regimes democráticos, a ação dos agentes públicos, inclusive e muito especialmente as do Presidente da República, está sujeita a limites legais que não podem ser ultrapassados em nenhuma hipótese. Não há democracia em um regime presidencialista em que o Chefe do Poder Executivo não responda por seus atos de gestão. O impeachment é justamente um remédio constitucional e democrático para coibir excessos cometidos por agentes públicos. São juridicamente inconsistentes tentativas de incompatibilizar o instituto do impeachment com a vigência de um regime presidencialista, como ocorre, por exemplo, tanto no Brasil como nos Estados Unidos.
16. Tem sido recorrente a tentativa de retirar legitimidade da instauração do processo de impeachment pelo Senado Federal com base na alegação de ter sido a Presidente da República eleita por mais de 50 milhões de brasileiros. Ocorre que os votos recebidos por um Presidente da República, no funcionamento regular de um regime presidencialista democrático, não constituem barreira à instauração de processo de impeachment para apurar o cometimento de crimes de responsabilidade pela autoridade referida. Os Deputados e Senadores brasileiros receberam igualmente milhões de votos para cumprir suas funções constitucionais, entre as quais a de investigar – e sancionar, se for o caso – o Presidente da República na hipótese de cometimento de crime de responsabilidade. Não são razoáveis, portanto, declarações como as seguintes:
“Este atentado contra la voluntad popular de millones de brasileños expressada en las urnas es una nueva expresión de la contraofensiva reaccionaria dirigida a derrocar a los gobiernos que han favorecido a los más necesitados (…)”. (ALBA-TCP – 12/05/16).
“Esto demuestra una intención de dañar la democracia en un país Hermano como el Brasil y desconocer los 54 millones de votos que llevaron a Dilma Rousseff a la presidencia.” (Bolívia – 12/05/16).
“Nosostros como pais somos respetuosos de otros países y tenemos el principio de no intervención, pero también somos respectuosos de otras democracia y somos respectuosos de la voluntad popular”. (El Salvador – 14/05/16).
17. O Brasil conta com instituições sólidas e com um regime democrático consolidado. O estrito cumprimento das regras aplicáveis ao processo de impeachment, fixadas pela Lei brasileira ou plasmadas em decisões da Suprema Corte, é a realidade comprovável que se observa no País. Nesse contexto, o Brasil vê com preocupação e rechaça toda tentativa de desqualificar suas instituições ou de questionar a lisura da aplicação de um instituto jurídico constitucional e republicano, como é o caso do impeachment, sobretudo quando sua democracia atravessa momento de tamanha relevância histórica.
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Fonte: Marcelo Auler.
Foto de capa: Reprodução O Cafezinho.