Porque Idomeni tem um problema de equidade a resolver

Distribuição de alimentos em Idomeni, Grécia.

O que o tornou facilmente identificável para mim foi um pequeno corte no lado esquerdo da sua bochecha, próximo aos lábios. O ferimento tinha um formato em ‘C’ e estava coberto com o que parecia ser sangue seco. Ele aparentava ter menos de dez anos e aguardava na fila para receber uma porção de comida no centro de transição de Idomeni – agora transformado em um terrível campo de refugiados – na fronteira grega com a Antiga República Iugoslava da Macedônia. Era a hora do almoço e eu o entreguei uma sacola de plástico com macarrão cozido, um pedaço de pão e uma laranja.

“Apenas uma sacola por pessoa” é a resposta padrão para os que pedem por uma porção extra de comida na fila. O critério per capita é muito comum na distruibuição de itens de ajuda humanitária. Os doadores geralmente baseiam suas normas de justiça distributiva nesta regra, pois ela supostamente “garante” uma distribuição igualitária de bens entre os receptores, conforme Barbara Harrell-Bond argumentou em Human Rights Quarterly em 2002.

Como o garoto parecia tão faminto, fiz vista grossa quando ele retornou em busca de uma segunda sacola. Mas quando ele apareceu novamente, saiu de mãos vazias. Naquele momento, objetivamente pensando, negar a terceira porção de comida à uma criança faminta parecia tristemente justo. Eis o porquê: 1) havia quase 14 mil pessoas em Idomeni; 2) apenas 3 mil porções de comida haviam sido preparadas naquele dia pela cozinha comandada por voluntários; 3) havia uma clara escassez de comida.

Escassez de recursos não é incomum em operações de ajuda humanitária. Logo, não seria mais honesto explicar essa realidade aos refugiados? Essa abordagem envolveria um nível de esforço considerável em termos de habilidades linguísticas e organização daqueles distribuindo os bens, mas certamente seria mais genuína do que alvejar indivíduos por características físicas identificáveis.

Equidade como uma folha de figueira para o fracasso moral 

Embora o critério per capita possa criar a ideia de “distribuição equitativa” de bens ao nivelar uma população heterogênea de refugiados (idade, educação, sexo, etc) – teoricamente possibilitando a todos as mesmas oportunidades – é possível argumentar que a equidade é sujeita a conceitos morais pessoais, assim como é influenciada pela assimetria de poder entre receptores e aqueles que distribuem os bens.

Quando os distribuidores podem decidir quem é “merecedor” do donativo – o mesmo donativo que pode ser o meio de sobrevivência do receptor -, esse poder pode levar a um processo injusto. Conforme Harrell-Bond argumenta, tal poder “é altamente sedutor e desperta o melhor ou pior em nós”.

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Campo de refugiados em Idomeni, Grécia. Péssimas condições sanitárias Foto: Gabriel Bonis

Ademais, é possível também analisar a aplicação do conceito de equidade em um contexto mais amplo. Como podemos realmente nos preocupar com equidade na distribuição de comida em um campo de refugiados que reproduz as piores desigualdades de nossa sociedade? Idomeni se tornou uma favela na Europa, onde milhares de pessoas vivem em tendas de acampamento em campos lamacentos, sem aquecimento (lixo é queimado para evitar hipotermia), e onde as condições sanitárias são apavorantes.

A União Europeia regula as condições mínimas nos centros de recepção para refugiados. Logo, um campo de refugiados em um Estado membro deve, ao menos, oferecer condições de vida decentes. Isso incluiria, no mínimo, água corrente potável, aquecimento, alojamento adequado e comida o suficiente. Quando as necessidades mínimas dos refugiados lhes são negadas, aplicar o conceito de justiça distributiva no pouco que ainda resta “em nome da equidade” parece sem sentido. Nada no campo é “equitativo”.

Quando ninguém recebe o bastante 

Ademais, o critério per capita ignora um ponto importante destacado por Harrell-Bond, Eftihia Voutira e Marl Leopold: ele não aborda se todos recebem o suficiente. E este ponto parece ser mais importante. Pouco importa se uma pessoa recebe mais porções do que outra se ambas não recebem o bastante para satisfazer suas necessidades básicas.

Além disso, pode-se argumentar que, se não há refeições suficientes disponíveis para todos, o critério de justiça distributiva é falso. Quando três mil porções vão para 14 mil pessoas, a grande maioria ficará de mãos vazias – a lógica da distribuição per capita é suplantada pela dura realidade do “quem chegar primeiro leva”. Assim, não há igualdade de oportunidades de qualquer forma.

Pouco importa se uma pessoa recebe mais porções do que outra se ambas não recebem o bastante para satisfazer suas necessidades básicas

Conforme os três antropólogos acima argumentam, se “os refugiados comessem apenas os alimentos que recebem, eles morreriam”. É por isso que eles procuram outras formas de satisfazer as suas necessidades e complementar o que lhes é dado. Por exemplo, alguns refugiados ajudam “voluntariamente” na distribuição de bens em Idomeni para que possam defender seu “direito” de receber mais alimentos dos doadores – ou apenas para acessar áreas de armazenamento, onde podem pegar itens para si, para suas família e para amigos.

O que é equidade então? Teoricamente, o conceito está intimamente relacionado com outros vários conceitos morais, incluindo igualdade, imparcialidade e justiça. George Klosko, da Universidade de Virginia (EUA), descreve, de maneira simplificada, que equidade é quando as pessoas recebem o mesmo tratamento por parte de outros ou de instituições.

Quando há um processo, como a distribuição de bens, um procedimento equitativo aplica as regras de forma semelhante a todos os casos, com algumas exceções razoáveis. Neste sentido, o filósofo Brad Hooker afirma que equidade consiste em pessoas recebendo o que lhes é devido. Se elas devem receber uma porção de comida, é preciso haver 14 mil porções disponíveis para o conceito fazer sentido.

A constituição de equidade depende das regras decididas por aqueles que aplicam o critério. Neste sentido, equidade pode variar de uma pessoa para a outra: alguém objetivo pode achar moralmente legítimo negar uma terceira porção de comida à uma criança faminta em nome do “bem comum”, enquanto um indivíduo focado em direitos humanos poderia ver tal ato como moralmente errado.

Como o filósofo Lionel K. McPherson destaca, há alguns conceitos de equidade – sendo o mais proeminente deles a ideia de “justiça como equidade” de John Rawls. Entretanto, McPherson argumenta, na vida real os requisitos da equidade se tornam mais difíceis de determinar porque não há “uma concepção autônoma de equidade que possa servir como nossa base comum”.

O ponto crítico do debate é como proporcionar o suficiente a todos. Por muitos meses, ONGs internacionais e grupos locais de voluntários têm prestado apoio aos refugiados em Idomeni praticamente sozinhos, assim como em outras partes da Grécia. Mas há um limite ao que eles podem fazer. O governo grego e a UE devem apoiá-los material e logisticamente, o que não tem acontecido.

Quando Idomeni foi transformado em um campo de refugiados e as doações de alimentos recolhidos pelos voluntários já não eram suficientes para alimentar os refugiados, os Médicos Sem Fronteiras ajudaram financeiramente os voluntários a aumentarem a produção de refeições. Se é para resolver o problema da equidade no campo, a UE e o governo grego também devem ajudar a garantir que os refugiados tenham o suficiente para satisfazer as suas necessidades básicas.

Texto originalmente publicado em openDemocracy. Leia o original (em inglês) aqui


Fonte: Carta Capital

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