Por Daniel Giovanaz, do Maruim.
Terreno de 9.000 m² na área urbana de Chapecó simboliza resistência ao modelo dominante de plantio e consumo no Oeste catarinense.
Santa Catarina é responsável por mais de um terço das exportações de frango e suíno do país. O valor bruto da produção agropecuária do estado é equivalente a 21,4 bilhões de reais. E uma parte significativa desse dinheiro se concentra nas mãos de duas grandes agroindústrias com sede em Chapecó: a Aurora Alimentos e a BRF, resultado da fusão entre a Sadia e a Perdigão.
Degradação do solo e da água, superexploração do trabalho de indígenas e haitianos, êxodo rural. O professor aposentado Jandir Santin, 71, vive em Chapecó desde a década de 1970 e vê os problemas socioambientais da região aumentarem na mesma proporção que o lucro dos empresários. Entre várias tentativas de resistência, ele ajudou a formar a chapa de oposição vitoriosa no Sindicato dos Trabalhadores em Indústrias de Carnes e Derivados (Sitracarnes) em 2010. Dois anos depois, montou uma livraria para oferecer clássicos da teoria política a preço acessível aos operários, mas se decepcionou com o resultado de seus esforços.
A insatisfação de Jandir coincidiu com a de Simone Marcon, 49, ex-professora da rede municipal que “cansou do sistema de educação tradicional”. Os dois se conheceram em pleno trabalho de militância no município e há seis anos passaram a viver juntos em um terreno de 9.000 m² no bairro Esplanada?—?uma herança deixada pelo avô dela. A propriedade, um oásis entre uma plantação de soja e uma área de especulação imobiliária, permitiu a ambos realizarem uma nova forma de resistência. “Na atuação sindical, ficamos desiludidos com a falta de resultados efetivos para a vida dos trabalhadores, e com a iniciativa da livraria percebemos como as pessoas leem muito pouco em Chapecó, mesmo nos ambientes de disputa política. Então, acabamos migrando para a permacultura; não como uma fuga, um idealismo, mas como um modo diferente de desafiar o status quo”, explica o casal quase em uníssono.
O termo permacultura foi criado pelo ecologista australiano Bill Mollison na década de 1970 e significa, em uma tradução literal, cultura permanente. A proposta dele era criar sistemas de florestas produtivas para substituir os latifúndios de trigo e de soja, recuperando os ecossistemas locais de forma estável e capaz de fornecer alimentos nutritivos aos seres humanos. Hoje, são cerca de 10 mil praticantes e quase 250 pesquisadores de várias as nacionalidades trabalhando em tempo integral para avaliar resultados e difundir métodos de plantio.
A permacultura chegou ao Brasil na década de 1980, mas soa como novidade na capital da agroindústria. Simone ouviu falar no assunto por acaso em maio do ano passado, durante a reforma de sua casa. Ela pediu aos responsáveis pela obra que separassem a água cinza (usada no banho, na lavagem de louça ou roupa) da água negra (aquela que possui fezes e urina). Como os engenheiros e arquitetos disseram não poder atender àquele pedido, ela foi a Porto Alegre para conversar com permacultores e bioconstrutores que conheceu através do blog Espaço Naturalmente. E foi inspirada por eles que decidiu iniciar um novo tipo de militância.
A variedade de alimentos que o casal cultiva hoje inclui frutas, legumes e hortaliças. Nas refeições que fazem em casa, eles costumam comer e beber apenas o que plantam. Nenhum deles é adepto da dieta vegetariana. “Reduzimos muito o consumo de carne no dia a dia, e todos os dias a gente colhe alguma coisa. Às vezes, no inverno, a gente faz uma galinha caipira. E se alguém chama para um churrasco, acabamos comendo também”, ressalta Simone.
O consumo eventual de carne ilustra o modo como os dois interpretam a relação com o meio ambiente. Se é preciso podar uma planta ou mesmo arrancá-la, porque ela impede o crescimento de outra, eles não hesitam: “Precisamos colaborar com a natureza, ajudar no seu equilíbrio, e isso é muito diferente de desmatar ou agredir”. Os livros sobre permacultura e plantas alimentícias não convencionais espalhados pela casa dão a entender que quase todas as escolhas têm base científica, embora ambos reconheçam a importância da intuição.
Nenhum veneno químico entra no Recanto do Ser?—?é assim que eles chamam a propriedade. Ele admite que a recusa aos agrotóxicos torna a produção mais difícil: “Esta semana descobrimos que um bichinho está atacando os maracujás. Acabamos perdendo várias frutas. Como não tem pesticida, nós mesmos temos que estudar, observar para saber qual o inseto que está causando isso para depois eliminar”.
A permacultura também ensinou o casal a repensar o destino dos resíduos sólidos e sua própria concepção de habitação e saneamento básico. Simone afirma que a cada dia aprende a assumir responsabilidades: “Você não joga o lixo fora. Você joga no planeta!”.
A divulgação acontece no boca a boca. Quem ouve falar e se interessa, vai até o terreno com produtos para trocar. E quem não produz nada, troca experiências. “O jeito é voltar ao tempo do escambo”, brinca Jandir. O espaço recebe cursos de design em permacultura e até o final do ano deve ser transformado em um eco-hostel, que funcionará como hospedagem e espaço de formação. Para que o hostel comece a funcionar nos dois andares superiores da casa, faltam apenas detalhes burocráticos.
Enquanto não tem viabilidade econômica, o Recanto do Ser não representa uma ameaça ao modelo de produção agrícola tradicional. Milhares de famílias de agricultores do Oeste catarinense não têm onde plantar, outras não têm tempo ou estímulo para repensar seus hábitos de consumo. Jandir e Simone consentem que um terreno de tais dimensões próximo ao centro da cidade é um privilégio, mas consideram que sua função em Chapecó, mais do que gerar renda, é servir de exemplo.
Deve ser por isso que eles deixam o portão da casa sempre aberto.
Foto: Reprodução/Maruim
Fonte: Maruim