Por Débora Fogliatto.
O sociólogo Emir Sader não esconde sua posição política e ideológica ligada ao Partido dos Trabalhadores. Professor aposentado da Universidade de São Paulo, ele é um dos intelectuais mais respeitados do país, já tendo presidido a Associação Latino-Americana de Sociologia, além de ser um dos idealizadores do Fórum Social Mundial.
Em Porto Alegre a convite da Fetrafi (Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Instituições Financeiras), Sader também participou do ato em defesa da democracia na última sexta-feira (18) na capital gaúcha. Em entrevista exclusiva ao Sul21, ele avalia a atual conjuntura política brasileira, sustentando que a entrada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no governo pode gerar uma retomada do crescimento econômico, a partir do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e de relações exteriores. “O projeto deles, exatamente duas semanas atrás, era prender o Lula, linchá-lo moralmente na mídia, ter a Dilma isolada e derrubá-la. Fracassaram e isso os levou ao desespero”, aponta.
Agora, especialmente após os atos desta sexta-feira em todo o país, a expectativa é positiva, segundo ele. “O juiz [Sérgio] Moro, que estava no limite de ações ilegais, passou a linha vermelha, agora, obviamente, ele fez coisas abertamente ilegais”, afirma, referindo-se ao juiz federal que ganhou notoriedade por ser o responsável pelas decisões da Operação Lava Jato na primeira instância e divulgou, na última semana, uma série de gravações de conversas do ex-presidente.
Confira a entrevista completa:
Sul21 – Na sua avaliação, é possível que o governo Dilma saia dessa crise política? E por onde passa essa possível saída?
Emir Sader – A raiz da crise está na política econômica do governo. Porque está socialmente errada, pune os trabalhadores, é economicamente ineficiente. Não se retomou o crescimento econômico, ao contrário, estamos no pior dos mundos, com estagnação e inflação. E é politicamente desastrosa, quer dizer, o governo perdeu as bases de apoio, por isso se tornou frágil e por isso essas ofensivas contra o governo. Nenhuma delas tem fundamento e elas só existem pela fragilidade do apoio popular. Então a entrada do Lula, embora não seja expressamente para mudar a política econômica, vai ter que ter ver com isso. Ele não entra com responsabilidade econômica, entra com PAC e outras coisas, mas se supõe que ele vai discutir esses temas, então eu acho que essa é a raiz a partir da qual é possível dar uma virada, além da questão da credibilidade.
É um governo que vai passar a ter articulação política, vai passar a ter intermediações com movimentos de esquerda, vai passar a ter intermediação com empresários e espera-se que vá haver um discurso público do governo. Embora com a gentileza e a delicadeza que o Lula tem, ele não fica quieto, digo no sentido de explicar o que ele está fazendo, onde estão os problemas. Além de que, na prática, vai enfraquecer a Lava-Jato, que obviamente era para persegui-lo, e enfraquecer o próprio impeachment, porque uma retomada das relações mais próximas com o PMDB enfraquece a base fundamental da aliança PMDB-PSDB, que poderia levar ao impeachment.
Sul21 – Desde que foi anunciado que o presidente Lula seria ministro, está havendo um momento em que todos os ânimos estão acirrados, tanto dos que defendem o governo quanto dos que criticam. Mesmo assim, é possível que essa perseguição ao Lula “saia pela culatra”?
Emir Sader – As manifestações do dia 13 foram muito claras. É um setor grande, mas a maioria da classe média-alta, da burguesia, segundo o próprio DataFolha. Portanto, eles não têm mais gente do que eles tinham antes. Eles têm as mesmas pessoas, mas mais radicalizadas. Conforme eles radicalizam, inclusive com apelo à violência, se isolam dentro da própria classe média. Eu acho que eles perderam o “timing”. O projeto deles, exatamente duas semanas atrás, era prender o Lula, linchá-lo moralmente na mídia, ter a Dilma isolada e derrubá-la. Fracassaram e isso os levou ao desespero. O juiz Moro, que estava no limite de ações ilegais, passou a linha vermelha, agora obviamente ele fez coisas abertamente ilegais. Os setores de oposição passaram para ações de agressões, de violência expressa. Eu acho que é um gesto de desespero da parte deles, que os isola mesmo dentro da própria base, que tem um radicalismo verbal, mas não esse radicalismo da violência, da transgressão da legalidade.
Sul21 – Nesse quesito, levando em conta as manifestações na rua e o papel da imprensa, é possível estabelecer uma comparação com o clima que antecedeu o golpe de 1964?
Emir Sader – Há duas diferenças fundamentais. Primeiro: o golpe de 1964 foi articulado desde o começo pelas Forças Armadas, desde o final dos anos 1940, quando fundaram a Escola Superior de Guerra. Portanto era uma situação típica daquela época, um golpe militar. O resto era desestabilização política social para favorecer a intervenção militar. Esse fator não existe. Mas era uma marcha de maneira tão conservadora quanto esta: Deus, família, liberdade. Num primeiro momento pode parecer um elemento comum, mas existia um monopólio ainda maior dos meios de comunicação. Sabe-se hoje, por pesquisas de Ibope, que o governo Jango tinha maioria no apoio popular. A gente só soube muito tempo depois. Naquele momento eles davam a impressão de ser um governo absolutamente isolado, não havia outro meio de controlar isso. Hoje eles não podem. Nas manifestações de hoje, qualquer que seja o tamanho, elas vão ser socialmente muito diferentes daquelas. A cara, a etnia, a própria idade das pessoas, é muito diferente. Então eu acho que essa disputa é muito mais aberta do que aquela do monopólio privado dos meios de comunicação, sobretudo naquela época: rádio, jornal, que passavam a impressão de um isolamento absoluto do governo.
Sul21 – Ainda existem os grandes meios de comunicação. A diferença seria a força das redes sociais fazer? Elas poderiam fazer alguma diferença?
Emir Sader – Eu acho que eles [a grande mídia] ainda têm um monopólio. Na internet a gente faz guerrilha, mas eles têm o exército regular, que ocupa os grandes espaços e define as agendas. Não os jornais, que são cada vez menos lidos, mas os jornais dão a pauta para a cadeia de rádio e televisão com as quais eles se identificam. E na internet também tem uma presença muito forte dos sites ligados a eles. E a própria Dilma, assim como Lula, está ocupando espaço nas redes sociais para falar, então eu acho que a disputa vai ser mais equilibrada. Naquela sexta-feira [11], o Lula começou perseguido levado para Congonhas para ser transferido para Curitiba, para ser linchado pelos meios de comunicação. Ele terminou o dia com dez minutos no Jornal Nacional, se lançando candidato, colocando os temas no debate. É um debate sobre o projeto do país. Isso é o que está em questão.
Sul21 – Esse discurso que parte da direta faz, de que todos devem ser investigados, tem um fundo de realidade? Será que eles defenderiam a continuidade das investigações caso aconteça o impeachment?
Emir Sader – É uma hipocrisia de dizer que todos devem ser investigados, mas ao mesmo tempo apoiar o Eduardo Cunha, com todas as evidências de corrupção contra ele, que continua como presidente da Câmara e está liderando o processo de impeachment de uma presidente da qual não há nenhum fundamento de pedir o seu impedimento. Então isso dá a ideia de que querem investigar todos, mas todos do outro lado. Não estou nem falando de Aécio [Neves], mas daquele que está levando adiante o processo de impeachment [Cunha], no qual eles estão apostando fortemente.
Sul21 – A direita vem tomando espaço em alguns outros países da América Latina, como Argentina e Venezuela. O que pode explicar esse momento?
Emir Sader – Há uma combinação de fatores objetivos. A situação econômica estava favorável e agora está desfavorável, com a prolongação da recessão, diminuição dos preços dos produtos primários de exportação e, por outro lado, há erros internos também. O mais importante foi não ter democratizado os meios de comunicação, mesmo nos países onde se avançou, como a Argentina, o Judiciário brecou tudo. Na Venezuela, eles continuam a ter o predomínio. No Brasil, nem se fala. E outros erros que eles [a mídia] magnificam, como denúncias contra o Evo Morales e o que estão fazendo com o Rafael Correa, vão tentar fazer com a Cristina Kirchner agora. Eles tentam desqualificar a imagem. Por outro lado, o pessimismo econômico e a corrupção, que para a imprensa só interessa os casos ligados ao Estado, ao governo e não ao HSBC, tudo isso é deixado de lado.
Sul21 – Aqui, nos protestos, vemos uma crítica aos políticos, aos partidos e exaltação ao Judiciário e à Polícia Federal. Na sua opinião, qual a razão?
Emir Sader – Naqueles protestos de 2013, havia movimentos de crítica à política tradicional. Não era a esquerda que estava protestando para tentar renovar a política com métodos mais populares, mais transparentes, era a direita que estava nas ruas. E eles [a oposição] se valeram disso. Agora, desqualificar a política como um todo não é só desqualificar o governo do PT, mas é desqualificar o único líder político que tem prestígio, que é o Lula. Não é preciso dizer que nenhum outro deles tem prestígio, por isso que a obsessão deles é tirar o Lula da jogada no tapetão, porque nas eleições, eles perdem mesmo. Na pesquisa está ele e o Aécio. Bota ele e o Aécio fazendo debate para ver o que vai acontecer. Então, eles querem deixar o Lula sem prestígio pra dizer que está tudo contaminado, para que pudesse aparecer um líder como o Moro ou alguém de fora da política, porque na política, eles estão perdendo.
Sul21 – O Moro está sendo considerado um novo herói da direita, isso pode estar acontecendo pela falta de uma liderança política na direita?
Emir Sader – É uma questão mais de fundo. Nós [o PT] cometemos erros gravíssimos de ou ter sido incompetentes ou coniventes com a corrupção de empresários em relação à empresa mais importante da economia brasileira, que é a Petrobrás. Não estou acusando ninguém em particular, mas governamos o país por 12 anos e deixamos acontecer isso. Não fomos capazes de descobrir, denunciar e combater, criamos um espaço que gera algo que a maioria da população considera positivo, que é colocar esses caras, especialmente das empreiteiras, na prisão. Da maneira arbitrária que seja, mas isso importa menos em relação a essa novidade que rico vai pra prisão.O Moro claramente se aproveita disso pra desqualificar a politica como um todo e em particular o PT. O objetivo político é reescrever a história do Brasil, como se tudo o que o PT tivesse feito fosse indevido por ter sido com dinheiro da corrupção.
E se pode falar que o futuro político do Brasil é “o Lula ou o Moro”, ou seja, ou uma liderança popular forte ou a destruição da política e a aparição de alguém autoritário, como o Moro, pregando uma certa superação de esquerda e direita, moralismo. Eu acho que eles não vão se arriscar, o ex-presidente do Supremo [Joaquim Barbosa] também tinha prestígio da direita. Enquanto o Lula estiver aí e estiver falando, vai dificultar para eles. Ainda mais no governo, podendo melhorar o governo. Por isso eu acho que nós revertemos a situação, a gente estava no canto do ringue, só se esquivando, eles atacavam e nós desmentíamos. Agora recuperamos capacidade de iniciativa. Lula no governo significa que há possibilidade de esperança para que seja um governo de esquerda, com apoio popular, discutindo alternativas no país.
Sul21 – O senhor também defendeu recentemente uma reforma no Judiciário. Acredita que seria possível isso acontecer?
Emir Sader – Acho que foi uma surpresa para todo mundo que o Judiciário brasileiro seja tão engajado politicamente, de maneira tão unilateral. A imagem que a gente tem de juiz é de uma certa imparcialidade, teoricamente um juiz que tem o grau de engajamento do Moro… E não é só opinião, ele esteve na campanha do candidato a prefeito de São Paulo pelo PSDB pelo menos duas vezes. Isso é impossível, inviável. A tolerância do Judiciário com isso surpreende o país e isso desmoraliza o Judiciário, mesmo que a questão de colocar rico na cadeia fortaleça. E o Moro vai acabar sendo punido, porque ele toma atitudes de desafio, parece uma criança testando limites, o próprio Supremo está de alguma maneira amedrontado.
Sul21 – O senhor acredita que o PT consiga se manter no governo e retomar o crescimento do país, ao invés de ficar preso nesse debate sobre corrupção?
Emir Sader – O momento mais difícil que já tivemos foi passar por aqui em abril do ano passado, havia manifestações maiores. O Lula conseguiu injetar de novo confiança, discurso, desmascarar o caráter das denúncias que estavam acontecendo. E acho que hoje o clima político é diferente, não só na quantidade de mobilização, a gente recuperou a capacidade de ocupar as ruas. Acho que o mais grave seria, naquele momento, derrubarem a Dilma, porque existia o risco de ela ser derrubada e ninguém sair na rua para defender. Porque defender o quê? Se o ajuste caía diretamente nas costas do povo. Agora, o Lula está abertamente contra a reforma da Previdência. Até porque qualquer reforma não vai resolver o problema das contas públicas hoje, mas sim a médio e longo prazo. Então acho que a esperança, a expectativa de que com Lula o governo melhore, é o que gera as manifestações de hoje. O último dia que tivemos boas notícias foi quando a Dilma ganhou, de lá para cá foi um horror, eu fiz debates e terminava mal, porque não tinha expectativa. E o Lula se deu conta que precisava entrar, ele não foi lá para se proteger, é porque o governo tem que melhorar.
—
Fonte: Sul21