Por Joanna Burigo.
RuPaul’s Drag Race é uma série de televisão que documenta a busca da mais famosa das drag queens pela “próxima estrela drag dos EUA”. A icônica RuPaul vem desfrutando de sucesso global desde os anos 1990 com programas de televisão, participações no cinema e vários álbuns lançados, mas foi sua capacidade de criar conexões entre os públicos LGBT e simpatizantes que a catapultou para o status de entidade midiática.
No programa, Ru é anfitrião, mentor e musa inspiradora para as drag queens, que competem pelo título por meio de uma série de desafios que exigem desempenho artístico polivalente, bateção de cabelo e muita maquiagem. A série, campeã de audiência e que conta com uma base fiel de fãs ao redor do mundo, iniciou sua oitava temporada na segunda-feira 7.
O reality show pode ser assistido apenas pelo prazer do entretenimento, mas ele também revela uma série de lições preciosas a respeito de gênero. Além das drag queens, certos episódios contam com a participação de outros grupos conectados por um senso de identidade comum para disputas de makeover, ou transformação, nos quais atletas másculos, militantes gays da velha guarda e até veteranos do exército já se permitiram brincar com suas expressões de gênero.
Nem todos se divertiram, e esta é a menos alarmante das críticas que já vi sendo feitas ao programa, tanto por mulheres como por drags, pessoas trans e até mesmo ex-participantes.
Contudo, conheço pessoas, aos montes, e de todas as variedades, que são completamente apaixonadas pela série. E acredito que, de dentro do formato pop de reality show competitivo, ela mais ajuda do que atrapalha, elucidando questões delicadas a respeito de identidade com mais bom-humor e gentileza do que qualquer programa semelhante.
“Você nasceu nu, o resto é drag”
O famoso jargão do programa, perdão pela simplificação selvagem, resume a teoria que Judith Butler propõe em Problemas de Gênero. No livro, a superstar da teoria queer critica contundentemente um dos principais pilares do pensamento feminista: a identidade.
Para Butler, a identidade humana não é fixa, e deveria ser pensada no plural. Ao indagar as origens de categorias frequentemente usadas para definirmos nosso senso de identidade, Butler propôs reflexões a respeito de sexo biológico, expressão de gênero e orientações sexuais, nos convidando a questionar o que faz um homem ser homem ou uma mulher ser mulher.
De Beauvoir famosamente disse que não se nasce mulher, torna-se uma – e se esse entendimento de “mulher” como categoria construída socialmente propulsionou a segunda onda feminista, a famigerada teoria de gênero surgiu a partir da sugestão de Butler de que nascemos humanos, mas o restante das nossas identidades é moldado ao longo da vida, por meio de (não apenas mas também) o que ela chama de performatividades.
#Werk
Para Butler, um fenômeno cultural que revela a fragilidade da ficção normativa de gênero é a drag queen, cuja existência levanta questões sérias sobre identidade. O homem em roupas femininas é apenas um homem que parece uma mulher? Ou a feminilidade ostensiva exibida por ele prova que sua essência é feminina? Existe uma essência masculina ou feminina?
Indagações assim acabam por revelar a instabilidade da relação entre sexo, gênero e sexualidade, e esta instabilidade pode denotar o caráter performativo do nosso senso de identidade.
A arte da drag queen reside precisamente no tornar-se. Através de uma série de artifícios e trejeitos, um homem, tradicionalmente, faz uma performance do feminino, numa representação (corriqueiramente) exagerada. Reconhecemos a drag. Drag, a categoria, não é mulher; drag é performance de mulher através de artifícios do que é tradicionalmente entendido como feminino.
Assim, drag expõe que o feminino – e, portanto, gênero – é um conjunto de códigos culturais. A paródia do feminino que constitui a performance da drag queen exprime a falta de qualquer verdade inerente sobre gênero, e acentua o quão rígidas são suas normas.
Drag também é a arte do deboche, o que pode ser uma estratégia importante de resistência às estruturas de poder que regulam nossas vidas e identidades: a paródia de gênero debocha de suas expressões culturais normativas.
Drag desestabiliza qualquer “verdade” sobre identidade sexual e de gênero, e expõe a coerção social baseada na biologia que pauta a construção de nossas identidades. E uma vez que não existe uma base essencial da identidade de gênero em cada corpo, esta pode ser interrompida, quebrada e alterada completamente, causando assim “problemas de gênero”.
Sashay Away
O reality show não é isento de críticas, e em alguns momentos apresenta doses desconfortáveis de machismo, xenofobia, misoginia e até mesmo transfobia – o que é negativamente surpreendente num programa que se propõe a ser a quermesse da inclusão.
Também nunca me escapa que a série seja composta por uma tropa de homens ocupando espaço midiático com – e apenas por causa de – feminilidades artísticas. Esta reflexão não é gratuita, tampouco uma crítica à drag ou às drags, principalmente frente à notória baixa participação de mulheres em cargos de decisões de mídia.
E nessa nota: bem-vindos ao pensamento feminista, que requer a habilidade de entreter pensamentos contraditórios ao mesmo tempo.
Assisto à série com voracidade, paixão, e talvez menos senso crítico do que o aconselhável. E entendo que apesar de ela ser – para tirar a poeira de um termo defasado – politicamente incorreta, é o politicamente incorreto o que a sustenta: se fosse politicamente correta não poderia ser debochada, e se não fosse debochada… seria drag?
Essas coisas são complexas. Sugiro assistir à série, que oferece estas complicações de forma bastante divertida. Good luck, and don’t f**k it up.
Fonte: Carta Capital