Honduras ainda sob o golpe

Por Elaine Tavares.

Na madrugada do dia 03 de março mais uma lutadora social tombou em terras hondurenhas. Berta Cáceres, ecologista e ativista dos direitos humanos foi assassinada dentro de sua casa, em La Esperanza, por mercenários encapuçados. Nos jornais locais, Berta apenas engordou as estatísticas de crimes políticos que vem sendo cometidos à exaustão desde o mal fadado golpe de estado de 2009, quando os militares sequestraram Mel Zelaya e o retiraram da presidência em nome de coisa nenhuma. Naqueles dias, o golpe, armado na embaixada dos Estados Unidos, visava retirar Honduras da órbita de Hugo Chávez, uma vez que Zelaya estabelecia acordos e buscava melhorias para o povo hondurenho via projetos em comum com o presidente venezuelano.

Logo após o golpe, uma eleição completamente ilegítima – porque negada por todas as forças de esquerda do país – colocou na cadeira presidencial Pepe Lobo, nada amis do que uma marionete dos interesses das grandes corporações e do governo estadunidense. A partir da daí, com o país vivendo em clima de quase guerra civil, intensificaram-se os assassinatos políticos. Jornalistas, sindicalistas, militantes do movimento popular, um a um foram sendo eliminados e de pouco adiantou a gritaria geral em todo o mundo. Os países reconheceram o novo governo e Lobo governou com mão dura até passar a faixa para o atual presidente Juan Orlando Hernández, que segue governando na mesma linha.

A morte de Berta Cáceres balançou o mundo todo e incendiou outra vez a luta em Honduras. Ela era uma liderança do povo originário Ienca – o mais importante grupo indígena em Honduras –  e sua luta tinha destaque mundial. No ano passado ela chegou a receber o Prêmio Goldman, o máximo reconhecimento que pode ter um ativista ambiental. Ninguém acredita na versão da policia local de que os homens que entraram em sua casa tivessem unicamente o intento de roubar. Isso chega a ser um acinte à inteligência de toda a gente.

Durante sua luta em defesa do território e do povo Ienca Berta, coordenando o Conselho Cívico das Organizações Populares e Indígenas de Honduras (Copinh),  viveu cercada de ameaças. Recebia telefonemas e bilhetes com gente dizendo que iria estuprá-la, linchá-la, atacar sua mãe, matar suas filhas e estourara os miolos de seus companheiros de luta. Mesmo assim Berta seguia seu caminho de denúncia de violação dos direitos das gentes, principalmente no âmbito da construção da represa de Água Zarca, que estava prevista para ser erguida num espaço sagrado para as comunidades indígenas. Suas denúncias e seu trabalho de organização popular fez com que a empresa chinesa Sinohydro, que compunha o consórcio construtor da represa, retirasse a sua participação do projeto hidrelétrico, coisa que provocou o ódio no governo e nas multinacionais envolvidas.

Berta não era ingênua. Sabia que estava se movendo num país que registra o maior número de assassinatos per capita de militantes sociais no mundo, mas ela mesma dizia que não podia fiar parada enquanto destruíam as terras ancestrais e a vida das comunidades. Entre 2002 e 2014 foram informadas 111 assassinatos de ambientalistas em Honduras, portanto, Berta tinha plena consciência de que estava com a cabeça a prêmio. Mas, seu senso de justiça sempre foi maior do que o medo. Aprendera com a mãe, que fora parteira e enfermeira de refugiadas salvadorenhas, durante as guerras de libertação nos anos 80. “Somos de uma família de muitas mulheres que aprenderam a lutar em comunhão. Minha mãe nos criou sozinhas, enfrentando ditaduras, golpes, guerra e sempre atuou na defesa dos direitos humanos. Ela nos motiva”, dizia.

Por conta de sua história e sua luta no movimento estudantil, Berta imediatamente se levantou em rebelião quando o território Ienca passou a ser novamente ameaçado com megaprojetos. A etnia Ienca tem uma história milenária em Honduras e hoje soma 400 mil almas. Apesar de todos os massacres já vividos eles resistem e insistem em preservar sua cosmovisão, na qual a natureza é considerada sagrada. “Nós, os Ienca, somos os guardiões da terra e dos ríos”, apontava Berta quando, em 2006 começou sua luta contra a represa de Agua Zarca. Naquele ano, a comunidade de Rio Blanco procurou a ambientalista para denunciar a chegada de máquinas pesadas na região, sem que ninguém tivesse conhecimento do que se tratava. Era a hidrelétrica. E sua construção iria significar o desalojo de milhares de famílias, a destruição de rios e de espaços sagrados.

Não houve dúvidas sobre a necessidade da luta e começaram as assembleias nas comunidades que queriam ser ouvidas, conforme garante o convênio 169 da OIT. O governo fez ouvidos moucos e Berta organizou protestos na capital Tegucigalpa. O silêncio governamental seguia, as ameaças também. As comunidades decidiram ocupar as estradas em múltiplos protestos e atos públicos. A rota que levava à região da obra ficou fechada por um ano (2013), sendo o período mais duro para Berta e as gentes tiveram de enfrentar as incursões militares, os guardas privados e os assassinos de aluguel. Três companheiros morreram nessa luta e por várias vezes crianças e velhos tiveram armas apontadas para suas cabeças durante os protestos. Mas, a batalha valeu, pois a empresa chinesa saiu do consórcio e a obra parou.

Só que o governo cogitava agora fazer a represa em outro lugar, o que mantinha acesa a luta, bem como a militância de Berta. De novo, as comunidades não estavam sendo ouvidas e a luta seguia. Dois dos filhos de Berta saíram do país por conta das ameaças, mas ela permanecia, incansável.

Por todo esse histórico fica mais do que claro que o assassinato de Berta Cáceres teve a clara intenção de calar uma das mais importantes vozes do país contra o projeto hidrelétrico. Na noite do crime, quando os assassinos balearam Berta, também foi ferido o militante ambientalista mexicano Gustavo Castro, que estava na casa de Cáceres. Ela morreu nos seus braços. Hoje, o mundo se levanta em defesa de Gustavo, que foi detido pela polícia hondurenha sob a alegação de prestar depoimento e agora está impedido de deixar o país por 30 dias. Há o temor de que ele também seja assassinado por ter sido testemunha do crime. Mesmo que ele esteja na embaixada do México, quem pode garantir sua proteção?

Militantes ambientais de todo o mundo exigem que seja levantada essa restrição de saída de Gustavo, e insistem que as investigações se voltem para a empresa Desenvolvimento Energético (DESA), que é a promotora do projeto Agua Zarca.

Na madrugada do dia três, homens encapuzados entraram pelos fundos da casa de Berta. Ela percebeu a movimentação, se levantou e lutou com eles. Teve a perna e o braço fraturados até que oito tiros a derrubaram. Qual ladrão faria isso?

Os assassinos cometem o mesmo erro de sempre. Pensam que matar uma pessoa impede que sua voz seja ouvida. Ledo engano. O que Berta Cáceres representa para o povo indígena hondurenho nenhuma bala pode destruir. Vai o corpo, fica o exemplo. A valente guerreira Ienca, de 45 anos, viverá para sempre. E, à frente de seu povo, seguirá como o estandarte da luta que ainda não terminou. Historicamente já aprendemos a lição. Nada pode parar uma ideia que voa.

Berta Cáceres, presente!

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