Por José Eustáquio Diniz Alves.*
“Não me proponho escrever uma ode ao desânimo, mas gargantear com o vigor de um galo matutino empertigado no poleiro, nem que seja apenas para acordar os vizinhos”
(Henry David Thoreau, 1817-1862)
O crescimento das atividades antrópicas, no contexto do fluxo metabólico entrópico, está degradando a vida no Planeta, como mostra a escola da Economia Ecológica. O progresso humano tem ocorrido às custas do regresso ambiental. Existem várias análises e metodologias mostrando a gravidade da saúde geral da Terra: 1) a pegada ecológica global já ultrapassou em 50% a biocapacidade e a civilização humana vive da herança ecológica do passado, sendo que esta herança natural está sendo dilapidada rapidamente; 2) Estudo publicado na Revista Science (janeiro de 2015), do Stockholm Resilience Centre, mostra que quatro das nove fronteiras planetárias foram ultrapassadas. Duas delas, a Mudança climática e a Integridade da biosfera, são o que os cientistas chamam de “limites fundamentais” e tem o potencial para conduzir o sistema Terra a um novo estado que pode levar a civilização ao colapso; 3) a humanidade, na época do Antropoceno, está provocando a 6ª extinção em massa no Planeta, como mostra o livro da jornalista Elizabeth Kolbert, The Sixth Extinction; 4) O mundo está ficando mais quente e rompendo com a estabilidade climática do Holoceno, conforme mostram diversos estudos da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA), da Nasa, que alertam para os riscos irreversíveis do aquecimento global e das mudanças climáticas (ALVES, 2014).
Diante da gravidade da situação do Planeta e da possíbilidade da extinção da vida de milhões de espécies que vivem na Terra – muito antes da chegada do homo sapiens – fica difícil compreender como há pessoas que ainda fazem ginástica para justificar o antropocentrismo, a redução das áreas anecúmenas e a expansão das áreas ecúmenas. O livro “O Mito Moderno da Natureza Intocada” (primeira edição de 1994), de Antonio Carlos Santana Diegues, foi escrito para combater os ambientalistas que defendem a perspectiva ecocêntrica (ou biocêntrica) de defesa do meio ambiente. O livro de Diegues, direta ou indiretamente, reforça o que há de pior na relação assimbiótica entre o ser humano e a natureza. Também é incompreensível como alguém pode combater a iniciativa de criação do Parque Nacional de Yosemite – inaugurado em 1864 (com 3.100 km2) e do Parque Nacional de Yellowstone – inaugurado em 1872 (com 8.980 km2).
Num país, como o Brasil, que já destruiu 92% da Mata Atlântica, mais de 50% do Cerrado e mais de 20% da Amazônia – sem falar nos demais biomas como os mangues, as araucárias, os pampas, etc. que continuam a ser destruídos – fica difícil entender como um pesquisador possa fazer um livro para combater as “áreas naturais protegidas”. A tática utilizada por Diegues foi criar um mito para depois ridicularizá-lo, como se a origem da perspectiva ecocêntrica fosse fundada neste mito relatado pela concepção antropocêntrica do autor, que nas conclusões do seu livro diz o seguinte:
“As áreas naturais protegidas, sobretudo as de uso restritivo, mais do que uma estratégia governamental de conservação, refletem, de forma emblemática, um tipo de relação homem/natureza. A expansão da ideia de parques nacionais desabitados, surgida nos Estados Unidos em meados do século passado, retoma, de um lado, o mito de paraísos naturais intocados, à semelhança do Éden de onde foram expulsos Adão e Eva (…) A persistência da ideia de um mundo natural, selvagem, não tocado, tem força considerável, sobretudo entre populações urbanas e industriais que perderam, em grande parte, o contato quotidiano e de trabalho com o meio rural” (p. 157).
Na verdade, o que Antonio Diegues fez no livro “O Mito Moderno da Natureza Intocada” foi criar e ridicularizar um suposto mito, atribuindo a simplicidade dos seus fundamentos ao núcleo da argumentação dos pensadores ecocêntricos. Se, pelo menos, este truque fosse bem elaborado até poderia servir para um diálogo entre os defensores do antropocentrismo e do ecocentrismo. Mas Diegues não só desconsiderou obras fundamentais para o entendimento do assunto, como deturpou o pensamento de outros.
Por exemplo, a forma como Diegues tratou o pensamento de Henry Thoreau é não só incorreta, como inaceitável para os padrões acadêmicos, pois as citações de Thoreau foram feitas por “apud”, ou seja, Diegues não leu nenhum texto de Thoreau (embora todos deles estejam disponíveis na Web, inclusive vários em português), mas atribui ao autor de Walden concepções que não são verdadeiras. Diegues implica, particularmente, com a noção de wilderness (vida natural e selvagem). Ele diz:
“O movimento de criação de “áreas naturais” nos EUA foi influenciado por teóricos como Thoreau e Marsh. O primeiro estudou administração florestal e criticou a destruição das florestas para fins comerciais (…) A ideia de parque como área selvagem e desabitada, típica dos primeiros conservacionistas norte-americanos, pode ter suas origens nos mitos do “paraíso terrestre”, próprios do Cristianismo (…) Esse mito do paraíso perdido e de sua reconstrução parece estar na base da ideologia dos primeiros conservacionistas americanos. Assim, Thoreau escreveu em 1859: ‘o que nós chamamos de natureza selvagem é uma civilização diferente da nossa’ (apud Nash, 1989). Dessa forma, os primeiros conservacionistas pareciam recriar e reinterpretar o mito do paraíso terrestre mediante a criação (pp 26 e 27).
Acontece que Henry David Thoreau (1817-1862) foi um precursor de movimentos libertários nos Estados Unidos e no resto do mundo, defensor de uma vida simples, autossuficiente e em harmonia com a natureza, além de um rigoroso crítico do modelo de desenvolvimento consumista e degradador do meio ambiente. Aos 16 anos foi estudar Letras e Literatura na Universidade de Havard. Aprendeu grego, alemão e francês e se tornou grande conhecedor de textos clássicos das culturas grega, hindu e chinesa. Segundo o filósofo Ralph Waldo Emerson, amigo que influenciou a formação do autor de Walden, “Thoreau era celibatário e nunca foi à igreja”. Portanto, não tem nenhum sentido dizer que as concepções filosóficas de Thoreau foram influenciadas pelo cristianismo, pois é amplamente conhecido que Thoreau foi mais influenciado pela cultura clássica da Grécia e pelas filosofias orientais.
Em nenhuma página do livro “O Mito Moderno da Natureza Intocada” foi dito que Thoreau se opôs à Guerra dos Estados Unidos contra o México, à escravidão, ao genocídio dos índios americanos e à escravidão animal (ele era vegetariano). Não foi dito que Thoreau escreveu o famoso texto “A desobediência civil” (publicado em 1849) que se transformou numa grande referência da luta contra a opressão, a exploração, a injustiça e a discriminação em todas as suas formas. Thoreau foi a referência central para a atuação política de: a) Leon Tolstói (1828-1910), que passou a utilizar a ideia da desobediência civil no combate ao totalitarismo czarista na Rússia; b) Mohandas Gandhi que utilizou os mesmos princípios na luta contra a discriminação racial na África do Sul e na luta pacífica pela independência da Índia; c) foi com base em Thoreau que Martin Luther King organizou a luta não violenta contra a discriminação racial e pelos direitos civis nos Estados Unidos; d) o princípio da desobediência civil influenciou pensadores da ciência política como Hannah Arendt, John Rawls, etc.
Ao contrário do que disse Diegues, Thoreau não estudou “administração florestal”, mas construiu sozinho uma pequena cabana às margens do lago Walden, localizado nas florestas ao redor da cidade de Concord, onde viveu uma vida simples e autossuficiente por dois anos. Ele não só deu o exemplo pessoal, como fez uma defesa dos direitos ambientais e dos direitos das espécies vegetais e animais. De fato, o livro Walden faz uma defesa da natureza e da vida selvagem (wilderness). Mas isto nada tem a ver com a concepção de “paraíso perdido” do cristianismo e muito menos com concepções malthusianas ou neomalthusianas. O que existe é uma questão ética. Por conta disto, cada vez mais pessoas defendem o crescimento das áreas anecúmenas, como no livro de Caroline Fraser: Rewilding the World.
É lamentável que o livro “O Mito Moderno da Natureza Intocada” tem se valido de uma falsa dicotomia entre a preservação de áreas naturais e selvagens (wilderness) e os direitos das populações indígenas e tradicionais. Na realidade esta dicotomia não existe, mas serve para desqualificar a luta em defesa dos direitos da natureza e a manutenção de parques nacionais e áreas de proteção natural. Em pleno século XXI todos os biomas brasileiros estão ameaçados. Principalmente a Amazônia que tem sido alvo da sanha destruidora do agronegócio, das empreiteiras interessadas na construção de hidrelétricas na Amazônia e da indústria de combustíveis fósseis interessadas na exploração do petróleo, do gás natural e do gás de xisto. Recentemente, a Comissão de Minas e Energia rejeitou o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 2602/10, que susta os efeitos do Decreto 7.154/10, que estabelece procedimentos para autorizar e realizar estudos de aproveitamento de potenciais de energia hidrelétrica e de implantação de sistemas de transmissão e distribuição de energia elétrica no interior de unidades de conservação (UC).
Estudo da fundação da navegadora Ellen MacArthur e da consultoria McKinsey, divulgado durante o Fórum Econômico Mundial de Davos (WEF, 2016), mostra que os oceanos terão mais plásticos do que peixes em 2050. Segundo o documento, a proporção de toneladas de plástico para toneladas de peixes era de uma para cinco em 2014 que será de uma para três em 2025 e vai ultrapassar uma para uma em 2050. Portanto, mais do que nunca é preciso preservar as áreas naturais e os territórios anecúmenos. Não é hora de brincar com mitos de natureza intocada. Cabe lutar pela preservação do meio ambiente contra toda ganância humana assimbiótica, contra a geração crescente de luxo e lixo e contra os interesses egoísticos do processo de acumulação de capital.
Assim, por tudo isto, fica claro que a defesa de áreas naturais e selvagens e as concepções da Ecologia Profunda nada têm a ver com o “mito da natureza intocada”. O que o mundo precisa é realmente reforçar a concepção ecocêntrica e anti-antropocêntrica. Henry Thoreau está localizado no panteão dos grandes pensadores da humanidade. Felizmente sua influência e seu reconhecimento vão muito além de quaisquer detratores, populistas e demagogos de ocasião. O pensamento de Henry Thoreau continua vivo e cada vez mais presente nos movimentos libertários e no combate ao antropocentrismo. A defesa do meio ambiente é cada vez mais necessária no século XXI, para evitar o crescimento da pegada ecológica, o rompimento dos limites das fronteiras planetárias, a perda de biodiversidade e o agravamento do aquecimento global e dos efeitos desastrosos das mudanças climáticas.
Referências:
The Walden Woods Project: https://www.walden.org/
Planetary Boundaries 2.0 – new and improved, Stockholm Resilience Centre, Stockholm. Janeiro 2015
Thoreau, Henry David, Walden, ou, A vida nos bosques, São Paulo, Ground, 2007
THOREAU, Henry David. Desobedecendo: a desobediência civil e outros ensaios. Tradução de José Augusto Drummond. Rio de Janeiro, Rocco, 1984.
ALVES , J. E. D. População, desenvolvimento e sustentabilidade: perspectivas para a CIPD pós-2014. R. bras. Est. Pop., Rio de Janeiro, v. 31, n.1, p. 219-230, jan./jun. 2014
ALVES, JED. Sustentabilidade, Aquecimento Global e o Decrescimento Demo-Econômico, Revista Espinhaço, Diamantina. UFVJM, Revista Espinhaço, v. 3, n. 1, 2014.
ALVES, JED. Henry Thoreau, um revolucionário, Projeto Colabora, RJ, 20/01/2016
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: [email protected]
Fonte: EcoDebate