Por Felipe Milanez.
Um jovem branco corta a garanta de um bebê índio no colo da sua mãe. Vitor, o bebê Kaingang, morre em seus braços. Se um índio tivesse cortado a garganta de um bebê branco no colo da sua mãe, disse a mãe de Vitor, Sônia da Silva, tudo seria diferente, o Brasil viria abaixo.
Um jovem branco chuta e pisa na cabeça de um índio que dorme na rua em Belo Horizonte. Chuta, pisa. Quinze vezes. Quinze vezes, repito. Cabeça pisoteada, esmagada, e o corpo fica na rua se desvencilhando da vida por cinco horas até que policiais venham recolhê-lo. Um índio sem nome, sem povo, sem documento. Um objeto jogado na rua.
Dois crimes brutais, cruéis, racistas, praticados por jovens brancos que vivem nas cidades, em Imbitiuba (SC) e Belo Horizonte, o primeiro em dezembro e o segundo em janeiro. Aumenta o choque dessa covardia o fato de esses dois casos terem sido motivados puramente por ódio racial.
Não foram os usuais inimigos dos índios que disputam com eles terra ou recursos naturais, como os madeireiros que matam os Kaapor, os Awa Guaja e os Guajajara no Maranhão, ou os garimpeiros que assassinam os Yanomami em Roraima. Nem foram os fazendeiros do Mato Grosso do Sul, que exterminam sistematicamente pessoas Guarani e Kaiowá em um projeto de genocídio.
Foram brancos jovens da cidade que se uniram a esses inimigos dos índios pelo ódio.
Essa união do ódio ocorre em meio ao ataque brutal que os índios estão sofrendo por parte do governo federal e do Congresso contra seus direitos territoriais e suas vidas, potencializado pelo racismo propalado pela imprensa e pelas redes sociais.
No caso dos madeireiros no Maranhão, garimpeiros em Roraima, e dos fazendeiros no Mato Grosso do Sul, o ódio e o racismo têm se materializado no crime de genocídio. Ao contrário do que declarou, recentemente, o presidente da Funai, há sim genocídios sendo praticados no Brasil.
Um deles, o dos Kaiowa e Guarani. Fiz essa pergunta às próprias vítimas (veja aqui) desse crime de genocídio ainda em curso, e me responderam que, sim, é um genocídio — mesmo que o presidente da Funai tente inviabilizar a classificação dessa violência brutal contra a humanidade desqualificando-a de sua tipologia, do nome que merece ser dado: genocídio.
Também é genocídio o extermínio sistemático dos Awa Guajá, no Maranhão, caçados como animais por madeireiros e grileiros. E os Yanomami que enfrentam a morte por tiros e epidemias dos garimpeiros, garimpeiros, ainda, duas décadas depois do genocídio de Haximu. Os Kawahiwa que estão sendo mortos por grileiros e madeireiros no Norte do Mato Grosso. Entre outros casos que podem ser encontrados no relatório sobre violência contra os povos indígenas elaborado pelo CIMI.
E como classificar a omissão da Funai no caso dos “pelo menos 8” (expressão da Funai, pois podem ser 15) indígenas Korubo isolados mortos ano passado, assim como os dois Matis mortos nesse mesmo confronto, cuja culpa e a responsabilidade são dos agentes Estado, a omissão de seus agentes e a desastrosa política indigenista para a defesa dos povos em isolamento que não os protege (veja a carta com a versão indígena)?
Ainda sobre o racismo de Estado, a procuradora do Ministério Público Federal em Altamira (PA) classificou de etnocídio as ações do governo em Belo Monte. A linha que divide o etnocídio do genocídio é tênue. Etnocídio é matar a “cultura”, e genocídio eliminar fisicamente pessoas de um povo ou impedir que tenham condições de viver.
Acontece que matar a cultura ou a possibilidade de viver pode se confundir. Como me explicou uma liderança Guarani Kaiowá: “Eu acredito que já é um genocídio já. Porque, quando um povo, qualquer sociedade que não respeita o direito dele, já está matando ele. Você não mata só a bala, você mata tirando a cultura dele, seu espaço, sua mata, sua água, o seu jeito de viver, você já está praticando genocídio.”
Portanto, se Belo Monte é um projeto etnocida, ao autorizar a licença o presidente da Funai autorizou o prosseguimento do etnocidio — e porque não, como refletem os indígenas, um genocídio? Perguntem aos Arara da Cachoeira Seca do Iriri que irão saber a resposta.
O que há em comum entre os jovens brancos em Imbituba e em Belo Horizonte, o governo federal e o Congresso, fazendeiros e madeireiros?
Nessas ações, chutando a cabeça, cortando a garganta ou eliminando a possibilidade de vida na sua terra, todos eles enxergam o índio como um objeto — e como tal, com uma humanidade inferior. São os muitos “modos” de exterminar índios, como escreveu Leonardo Boff.
Não são os índios as únicas pessoas transformadas em objetos pelos brancos e que têm sido abatidas, mortas, eliminadas, desterritorializadas de forma a impedir a sua sobrevivência. Também os negros. O genocídio do povo negro, para usar a expressão já descrita por Abdias Nascimento, é o tipo penal mais preciso para qualificar, por exemplo, o extermínio de cinco jovens negros no Rio.
Negro Belchior descreveu a inacreditável capacidade da sociedade brasileira em conviver com o genocídio do povo negro. E ele pergunta: “E se fossem brancos padrão globo-zona-sul os corpos fuzilados e sem vida?”
Por que, por qual razão, algumas vidas valem menos que as outras? O que divide, no Brasil, a humanidade do branco da subumanidade, ou desumanidade, do índio e do negro? Que linha é essa que divide aqueles que existem, aqueles que são sujeitos, daqueles que são objetos, que são animalizados?
Ao contrário do que disse o presidente da Funai, quando afirma que o “racismo aumenta a violência”, o racismo é violência. E violência não é resultado, é a própria geradora da desigualdade.
Racismo é justamente essa hierarquia de superioridade e inferioridade, para fazer uma reflexão seguindo as ideias do filósofo negro Frantz Fanon. Essa linha que divide os que são sujeitos daqueles que são objetos. Os que estão abaixo da linha têm a humanidade negada. Os índios e os negros, abaixo da linha racial no Brasil, têm a sua humanidade negada.
Quando o governo federal anuncia que vai leiloar usinas no rio Tapajós contra a vontade dos Munduruku, sem aceitar consultar os Munduruku, o governo pratica o racismo de Estado. E aos Munduruku que dependem se sua relação com o rio Tapajós, frente a esta violência instauradora de uma relação colonialista, só resta resistir, e sem outra alternativa, também por meio da violência em que estão colocados, ao declarar a guerra ao governo que quer exterminá-los.
Racismo é violência em estado bruto, e contra essa violência é preciso insurgir-se. É uma violenta força externa que retira a humanidade de um grupo racializando-o. E o racismo organiza a violência de um sistema racista, onde os atos racistas são tidos como atos normais, em harmonia com o sistema racista – ainda seguindo Fanon.
É o racismo que faz essa divisão daqueles que estão em uma linha do que existe, do mundo que não existe. Essa divisão foi instaurada com a colonização, e ainda permanece, porque o sistema permanece. A Constituição Federal, apesar da letra da lei, não eliminou o racismo. Tivesse, as terras indígenas estariam demarcadas, Belo Monte não existiria e Vitor estaria mamando no colo de sua mãe, na sua aldeia, e não na sarjeta de uma rodoviária.
Aqueles que vieram no porão do navio e aqueles sobre os quais por muito tempo se discutiu se tinham seus corpos habitados ou não por almas, vivem um mundo diferente no Brasil. O mundo habitado pelo negro e pelo índio é diferente do mundo do branco, no Brasil.
O diário do escravizado Mohammah Baquaqua, recém lançado no Brasil, possui uma descrição absurdamente precisa de como era o porão do navio negreiro. Para ele, aos que eram contra a abolição bastaria que fizessem uma viagem transatlântica no porão para mudar de opinião.
Não precisavam, escreveu Baquaqua, nem submeter-se ao trabalho forçado. Bastava viver o porão do navio negreiro. Mas se ainda não mudassem a sua visão, que passassem a servir nos campos de algodão, nas plantations. E se ainda não se convencessem, que fossem atados a ferro, sem coração ou alma.
O clamor de Baquaqua para que todos se convencessem a ser abolicionistas, a por fim a escravidão, parece lembrar o grito de desespero da mãe Kaingang, ou o do ativista negro sobre os jovens executados, ou dos Guarani: se o branco tivesse essa experiência de ter a sua humanidade negada, seria ele também um antirracista e se juntaria à luta?
Mas o racismo, essa hierarquia, existe justamente para que não haja essa troca de experiências, a não ser como pequenos desvios de condutas sem que se afete a norma.
Para romper com a norma, ensina Fanon, só resta lutar. Só a luta pode emancipar as vidas destes “condenados da terra”, atados por instituições coloniais e racistas que os prendem em uma linha abaixo da humanidade. É preciso, portanto, agir. O índio, o negro e os aliados que, após refletirem sobre essa situação colonial, racista, agem e lutam para mudar.
E assim têm sido as ocupações das ruas, do Congresso, as retomadas das terras indígenas invadidas por fazendas, os rios invadidos pelo governo por usinas hidrelétricas, as marchas pelas vidas do jovem negro vivo, para que o negro e a sociedade reajam.
São lutas por libertação. Não há como combater o racismo se não for pela luta, e é preciso, portanto, juntar-se aos índios, ao negro, à mãe Kaingang, ao Guarani, aos Korubo e aos Matis, ao Yanomami, aos pai do jovem negro fuzilado no Rio.
Fonte: Carta Capital
Foto: Daniel Caron / FAS