Por Luiza Villaméa.
‘‘Ainda é um mistério para mim como pudemos nos reconhecer”. É assim que Nanette Blitz Konig descreve o reencontro com a amiga Anne Frank, no campo nazista de concentração de Bergen-Belsen, no norte da Alemanha, em janeiro de 1945. Esquelética, Anne caminhava enrolada apenas em um cobertor, pois dispensara as roupas, infestadas por piolhos. No braço, trazia um número tatuado no campo de Auschwitz, na Polônia, onde estivera presa antes de ser despachada para Bergen-Belsen. Nanette se encontrava em melhores condições, mas também esquálida. Perto delas, pilhas de cadáveres. Nada lembrava reuniões anteriores das duas adolescentes, que frequentaram a mesma classe de um liceu judaico em Amsterdã, na Holanda. Em junho de 1942, Nanette tinha festejado o aniversário de 13 anos de Anne na casa da família Frank, com direito a exibição de um filme de Rin-Tin-Tin. Levou um broche para a amiga, que ganhou do pai um caderno de capa xadrez. Nele, Anne escreveu o diário que se tornou um dos maiores fenômenos editoriais do mundo. Setenta anos depois, Nanette acaba de lançar o livro Eu Sobrevivi ao Holocausto – O Comovente Relato de Uma das Últimas Amigas Vivas de Anne Frank.
Na casa em que mora em São Paulo desde os anos 1950, cercada por um amplo jardim, Nanette repete várias vezes que não há nenhum “mérito” em poder relatar sua convivência com Anne, dona de fama internacional: “Foi um acaso”. As duas se conheceram no liceu em Amsterdã. Como outros estudantes de origem judia, elas tinham sido proibidas de frequentar escolas convencionais. Na Holanda invadida por tropas de Adolf Hitler, as adolescentes tiveram experiências similares, mas não chegaram a ser íntimas. Em seu diário, Anne, que vivia sendo repreendida por ser tagarela, até reclama de Nanette, porque “ela falava demais”. As duas, no entanto, eram próximas o suficiente para Nanette ser convidada para a festa de aniversário de Anne, que já sonhava em ser escritora. “Mas, naquele dia, na sala da família Frank, ninguém imaginava que o diário dela seria lido por milhões de pessoas de todo o mundo”, lembra Nanette.
Em julho de 1942, um mês depois de comemorar o aniversário de 13 anos, Anne sumiu da escola. Nanette não estranhou. Afinal, no primeiro ano havia 30 alunos em sua classe. “No segundo, éramos apenas 16”, conta. “As pessoas simplesmente desapareciam.” Parte delas era “deportada” para campos nazistas de concentração. Outra parte conseguia fugir ou se esconder. Nanette acreditou nos boatos de que a família Frank tinha escapado para a Suíça até o dia em que encontrou Anne no campo de concentração de Bergen-Belsen. Com a cabeça raspada, tremendo de frio, Anne contou que a fuga para a Suíça fora uma história inventada por sua própria família para despistar a polícia nazista. Na verdade, por mais de dois anos, ela e outras sete pessoas tinham ficado escondidas em um anexo secreto da empresa do pai, Otto Frank. Para sobreviver, contavam com a cumplicidade de antigos empregados, mas o esquema acabou delatado aos nazistas e todos foram presos e “deportados”.
Anne também contou que tinha deixado no esconderijo um diário com trechos reescritos, preparados para uma futura publicação. “Ela decidiu fazer isso porque um ministro do governo holandês no exílio pediu que as pessoas guardassem registros pessoais do período da ocupação”, diz Nanette, referindo-se a iniciativa do ministro Gerrit Bolkestein. “No esconderijo tinha um rádio e Anne ouviu o apelo do ministro na BBC de Londres”. Dois meses mais velha que Anne, Nanette jamais planejou registrar seu cotidiano na guerra: “Nunca pensei em ser escritora, mas, como sobrevivente, me preparei para contar sobre o Holocausto”. Hoje com 86 anos, ela tinha 70 quando começou a falar em público sobre a própria saga na Holanda ocupada. “As novas gerações precisam saber”, diz Nanette, que estudou Economia na PUC de São Paulo quando já era avó.
Nascida e criada em Amsterdã, ela tinha acabado de completar 11 anos quando a Deutsche Luftwaffe, a Força Aérea alemã, invadiu a Holanda, em maio de 1940. “A partir desse dia minha vida mudou para sempre”, lembra. Uma das primeiras restrições foi não poder andar de bicicleta. À medida em que passava o tempo, placas com os dizeres “Proibido para judeus” se multiplicavam pela cidade, dos cinemas aos parques, das lojas ao transporte coletivo. Nanette já havia sido transferida para o liceu de estudantes de origem judaica quando o pai foi afastado do Banco de Amsterdã, onde era um dos diretores. “Até que um dia bateram com muita força na nossa porta e nos levaram para o campo de transição de Westerbork”, lembra Nanette, referindo-se a si própria, ao irmão dois anos mais velho, Bernard, e aos pais, Helene e Martijn Willem.
Situado no nordeste da Holanda, Westerbork funcionava como um lugar de passagem para judeus prestes a serem transferidos para campos nazistas de concentração ou de extermínio. A família de Nanette, no entanto, permaneceu quatro meses em Westerbork, por integrar um grupo que poderia ser trocado por prisioneiros de guerra alemães. “Era a chamada Lista Palestina. Por estarmos nela, pudemos ficar com nossas roupas, não tivemos a cabeça raspada nem o braço tatuado”, conta Nanette. A diferença já havia sido estabelecida no momento do desembarque. Ao contrário da maioria dos prisioneiros, que viajava em vagões para gado, Nanette e sua família chegaram ao campo em um trem de passageiros e não foram destacados para nenhum tipo de trabalho.
Em fevereiro de 1944, a situação mudou. Embora continuassem na Lista Palestina, eles foram transferidos para o campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha. Não se tratava de um campo de extermínio, como o de Auschwitz, mas havia poucas condições de sobrevivência. A comida era escassa, faltava higiene e sobravam surtos de doenças. “Muitos morriam de ‘tifus’ ”, diz Nanette, que tem fluência no português, mas sempre adota pronúncia estrangeira para ‘tifo’. Com o passar dos meses, a situação só deteriorou. À medida que perdiam terreno para o Exército soviético no Leste Europeu, os nazistas passaram a transferir prisioneiros para Bergen-Belsen. O campo, que somava sete mil prisioneiros na metade do ano, tinha 15 mil em dezembro de 1944.
Àquela altura, Nanette estava sozinha em Bergen-Belsen. O pai, que trocava por cigarros a pouca comida que recebia, tinha morrido de infarto em novembro. O irmão e a mãe haviam sido transferidos para outros campos em dezembro. Aos 15 anos, perambulava pelo campo quando viu Anne Frank. O reencontro das duas, rememorado no livro de Nanette, é contado também em outra obra recém-lançada no Brasil, da holandesa Janny van der Molen. Dedicado ao público infantil, O Mundo de Anne Frank – Lá Fora, a Guerra, contextualiza a história da adolescente em livro com belíssimas ilustrações de Martijn van der Linden, artista que tem, por coincidência, o mesmo nome do pai de Nanette.
Da família de Anne, o único sobrevivente foi o pai, Otto Frank, que estava em Auschwitz quando o campo foi liberado, em janeiro de 1945. Na ocasião, a médica soviética Zinaida Berezovskaya, que acompanhava o Exército Vermelho, encontrou perto dos crematórios um caderno com 100 páginas escritas pela adolescente Rywka Lipszyc , publicadas agora com o título O Diário de Rywka. Dois meses depois da liberação de Auschwitz, tropas britânicas chegaram ao campo de Bergen-Belsen, onde 60 mil prisioneiros se amontoavam em condições desumanas. Nanette estava entre eles. Com 1,69m, pesava apenas 31 quilos, mas teve forças para tentar reconstruir a vida. Fluente em inglês, ela pediu ao major Leonard Berney que escrevesse a uma tia dela que morava em Londres. “Estava muito fraca e ainda contraí ‘tifus’”, diz. Depois de passar por três anos de tratamento em um sanatório holandês, Nanette foi para Londres, onde conheceu o engenheiro John Konig, que estava de mudança para São Paulo. Mais dois anos, e ela seguiu a mesma trajetória. Estão juntos até hoje.