A Tolice da Inteligência Brasileira: como o País se deixa manipular pela elite

Por Fernando Nogueira da Costa.

O título é um achado em ironia. De fato, a etimologia de “inteligência” vem do latimintelligent?a,ae “entendimento, conhecimento”. Tem a mesma sinonímia de “perspicácia”. Mas sua antonímia é “desentendimento, desinteligência, estultícia, estupidez, imbecilidade, tolice”. Em outras palavras, o título do livro de Jessé Souza, sociólogo que atualmente preside o IPEA, alerta para a inépcia dos intelectuais, situados na classe média brasileira, que constituem a “tropa de choque” na defesa dos interesses do 1% dos “endinheirados”, isto é, dos possuidores do top da riqueza.

O mundo social não é transparente aos olhos de imediato. Entre os olhos e a realidade há uma venda que é a ideologia. Venda pode ser vista como faixa de pano com que se cobrem os olhos ou como uma metáfora para a ação de não perceber o que se passa. Venda é também o ato de alguém que se deixa subornar por dinheiro ou vantagem. Não é o caso do nossosintelectuais midiáticos que servem à manutenção dos privilégios sociais?

Por que o interesse em “mentir” sobre como o mundo social realmente é? Os ricos e felizes, em todas as épocas e em todos os lugares, não querem apenas ser ricos e felizes. Querem ter a consciência limpa por saber que têm direito exclusivo à riqueza e felicidade. Isso significa que o privilégio – mesmo o injusto que se transmite por herança – necessita ser “legitimado”, ou seja, aceito mesmo por aqueles que foram excluídos de todos os privilégios.

Essa questão-chave remete ao Paradoxo Fundamental da Política, segundo Steven Pinker: “o amor que pais dedicam a seus filhos torna impossível que uma sociedade seja, ao mesmo tempo, justa, livre e igualitária”.

  1. Se é justa, as pessoas que tiverem maior competência, se esforçarem mais, e até mesmo contarem com eventos aleatórios favoráveis, acumularão mais dinheiro e propriedades.
  2. Se é livre, elas os transmitirão a seus filhos. Não há amor mais incessante quanto o amor dos pais para com seus filhos e o amor dos filhos para com seus pais.
  3. Mas, neste caso, a sociedade deixa de ser igualitária e justa, pois alguns herdarão riquezas pelas quais jamais trabalharam!

Dessa “trindade impossível” surge, então, o dilema entre liberdade, igualdade e paternidade. Diferentemente do lema da Revolução Francesa – “Liberté, Igualité, Fraternité” – a paternidade acaba predominando sobre afraternidade com concidadãos na transmissão da riqueza. Em vez de distribui-la, após a morte, a quem menos têm, a opção preferencial é doá-la a quem mais ama, interpretando que é este herdeiro filial quem mais necessita de si, isto é, da herança dos antecedentes responsáveis por ter o colocado no mundo.

Os europeus tendem a ser mais igualitários, enfatizando a igualdade de resultados ao acreditar que, em uma sociedade justa, não deve haver grandes diferenças de renda e/ou riqueza. No entanto, em uma sociedade livre e paternalista há a transmissão de herança, logo, a desigualdade de riqueza.

Culturalmente, estadunidenses chineses colocam mais ênfase na justiça social sob forma de igualdade de oportunidades. Desde que as pessoas tenham igualdade de condições básicas para subir na escala social, eles acreditam que uma sociedade com grande diferença de renda ou riqueza ainda pode ser justa. Ambos defendem a meritocracia a partir do pressuposto de igualação da “linha-de-partida”, seja por política afirmativa de cotas, seja por implantação de ensino público gratuito para todos sem a exceção de poder cursar escolas privadas de melhor qualidade.

No entanto, Souza argumenta que há um “capital cultural” que é transmitido de pais para filhos de “classe média”. Esta também é detentora de privilégio, não só no Brasil, mas em todo o mundo. A “classe dos endinheirados” (top 1% constituinte da casta dos comerciantes-financistas) acima dela (9% da população) acumula capital econômico-financeiro. O privilégio dos membros das castas de guerreiros-atletas e sábios-pregadores-e-artistas se baseia na apropriação de capital cultural valorizado e indispensável para a reprodução da ordem sob a égide da dupla mercado e Estado.

O capital cultural não é formado apenas por títulos escolares ou habilidades militares-esportivas, mas, antes de tudo, pelo aprendizado na socialização familiar desde o nascimento. As disposições para o comportamento competitivo, necessário para o sucesso escolar e profissional, são transmitidos pelos filhos aos pais como uma “herança cultural”. Ensina-se aos filhos a disposição para o autocontrole, a disciplina e o pensamento prospectivo que percebe o futuro como mais importante que o presente.

Daí, “a classe média se acha a tal”. Ela tende a se acreditar como a classe que se fez por “mérito individual”, conquistado por esforço próprio e não por privilégio de nascimento. Torna-se o baluarte da “meritocracia”, esquecendo/escondendo todos seus privilégios culturais desde o nascimento.

Acha que só ela, composta de “vencedores”, tem “direito” a prestígio, reconhecimento social e melhores salários. Culpa as vítimas, isto é, “osperdedores”, em processo intelectual que obscurece a desigualdade da “linha-de-partida” e de oportunidades, por sua própria miséria e sofrimento, como elas escolhessem ser pobres e humilhadas.

A reprodução contínua de todos os privilégios injustos depende do “convencimento” imposto por uma “violência simbólica”, perpetrada como consentimento mudo dos excluídos dos privilegiados. Isto depende da permanente atuação de aparelhos ideológicos – jornais, rádios, TVs, editoras, universidades, etc. – e intelectuais orgânicos a serviço da classe dominante.

A tese central deste livro de Jessé Souza, A Tolice da Inteligência Brasileira(São Paulo; LeYa; 2015), é que tamanha “violência simbólica” só é possível pelo sequestro da “inteligência brasileira” para o serviço não da imensa maioria da população, mas sim do 1% mais rico. Isso que possibilita a justificação, por exemplo, de que os problemas brasileiros não vêm da extraordinária concentração de riqueza, mas sim da “corrupção do Estado”, levando a uma falsa oposição entre Estado demonizado e mercado virtuoso.

Não existe fortuna de brasileiro que não tenha sido construída de maneira independente de financiamentos, infraestrutura e privilégios concedidos pelo Estado nem corrupção de agentes estatais sem conivência e estímulo de participantes de O Mercado, especialmente de carteis.

Souza afirma que “indivíduos e classes sociais têm que, efetivamente, ser feitos de ‘tolos’ para que a reprodução de privilégios tão flagrantemente injustos seja eternizada. Daí ser fundamental compreender como intelectuais e especialistas distorcem o mundo para tornar todo tipo de privilégio injusto em privilégio merecido ou, na maior parte dos casos, privilégio invisível enquanto tal”.

O conhecimento do autor sobre Sociologia, logicamente, supera imensamente o meu. Porém, acho que suas hipóteses a respeito da complexidade da sociedade brasileira seriam melhor elaboradas a partir da estratificação social por castas.

Casta, no sistema de estratificação tradicional da Índia, é um grupo social fechado, de caráter hereditário, cujos membros pertencem à mesma etnia, profissão ou religião. Por extensão, designa qualquer grupo social, ou sistema rígido de estratificação social, de caráter hereditário. Portanto, refere-se à camada social que forma uma das partes de uma sociedade que se organiza de maneira hierárquica. Em sentido pejorativo, usa-se a expressão para hostilizar o grupo de cidadãos que se destaca dos demais por seus privilégios, ocupações, costumes e/ou preconceitos.

Pária é o indiano não pertencente a qualquer casta, considerado impuro e desprezível pela tradição cultural hinduísta. Por extensão, designa qualquer pessoa mantida à margem da sociedade ou excluída do convívio social. O sociólogo Jessé de Souza utiliza-se da expressão “ralé” para referir-se ao conjunto de indivíduos pertencentes à camada inferior da sociedade brasileira, ou seja, a arraia-miúda, a plebe, o populacho…

Prefiro usar “pária”, inclusive porque seus membros, condenados a exercer os trabalhos mais duros, humilhantes e sujos, são tão “intocáveis” pelas castas brasileiras como ocorre na Índia. A elite brasileira, na vida cotidiana, recusa-se a “dar-a-mão” para os miseráveis.

Outro exemplo seria reconhecer que tanto os sacerdotes quanto os cientistas assumem o mesmo papel de pregadores (tais como pregam os economistas na mídia em permanente defesa do livre-mercado e acusação do Estado regulador) pertencentes à casta dos sábios.

Como Souza mesmo reconhece, “afinal, a ‘ciência’ – e os cientistas e especialistas que a incorporam – é, atualmente, quem herda os ‘prestígio’ das grandes religiões do passado e diz o que é certo e o que é errado. Não existe notícia em jornal ou TV que não necessite do ‘aval’ de um especialista”.

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