Uma visita ao Museo de las Memorias de Asunción, Paraguai.
Por Marcelo Labes*
Ontem conheci Martin. Enquanto visitávamos, Luiza e eu, o Museo de las Memorias – Dictadura y Derechos Humanos, este sujeito simples e com a pele queimada de sol veio nos explicar sobre o museu, o prédio, sobre “La Técnica”, departamento policial encarregado das investigações, da inteligência ditatorial — e também das torturas e desaparições.
O Paraguai esteve sob o poder ditatorial de Alfredo Stroessner (diz-se Stroner), de 1954 a 1989. Neste período, calculam-se mortes e desaparecimentos em cifras que podem chegar a 2000 pessoas, sem contar os povos indígenas dos interiores do país. Após assumir o poder nos anos 1950, o então presidente teve oito supostas reeleições vitoriosas. Ao cair, em 1989, vítima de um suposto golpe, Stroessner deixa o poder após trinta e cinco anos de perseguições a opositores e cidadãos que queriam o direito de exercer seus direitos democráticos.
O prédio onde hoje funciona o Museo de las Memórias abrigou, de 1956 a 1992, a Policía Técnica. Tendo recebido treinamento especializado do coronel estadunidense Robert K. Thierry, os militares que ali trabalhavam recebiam medalhas de honra pela prestação de serviços à pátria, tendo muitos deles sido condecorados com a medalha da Escola de las Américas, instituição estadunidense-panamenha onde foram treinados, a partir de 1961, centenas de militares latino-americanos para agir contra o comunismo no continente. Com a descoberta dos Archivos del Terror em 1992 em Lambaré (cidade próxima à capital) pelo Doutor Martin Almada, pedagogo e ativista pelos direitos humanos, o prédio da técnica foi esvaziado, modificado e esquecido. Para sua inauguração como museu, o prédio contou com reformas: foram refeitas algumas das celas que haviam nos fundos do prédio, construído um auditório e dispostos à visitação mapas, informações sobre desaparecidos e objetos utilizados pela Técnica nas perseguições e torturas. É a Fundación Celestina Pérez de Almada — cujo nome homenageia a esposa do Dr. Martin Almada, falecida durante um interrogatório aos 33 anos, em 1974 — que mantem, com apoio internacional, o espaço de memória da ditadura paraguaya.
Martin nos falava porque precisava dividir com alguém sua responsabilidade. Apesar de inaugurado pelo governo, o museu não é mantido por órgãos públicos. Ao Partido Colorado, o mesmo de Ströessner, e no poder desde então, parece não fazer sentido esse resgate de memória. É Martin, então, o responsável pelo museu, do atendimento ao público à manutenção. “Do jardim eu cuido aos sábados pela manhã, sem cobrar nada por isso”, diz ele, orgulhoso. A relação deste senhor com a ditadura stronista não foi violenta, salvo por seu pai, que teve deixar o Paraguay em direção à Argentina, país onde Martin nasceu. A relação de Martin com a ditadura se fez e faz dentro do museu, onde é procurado por ex-vítimas de perseguição e por ex-militares. As primeiras, procuram-no para contar o que aconteceu, sendo que, nos diz Martin, muitos ainda ocultam de seus cônjuges e filhos o que passaram nos porões militares. Já os ex-militares visitam-no para reconhecer o prédio, caminhar por onde funcionava a Técnica e contar a Martin, de maneira discreta, onde funcionava o quê, de que maneira guardavam o espaço, como chegavam e saíam os detentos.
Sentamos para conversar no auditório. Martin explica que na parte da frente da sala em que nos encontramos trabalhava o fiscal da polícia. Naquela primeira sala eram fichadas e interrogadas as vítimas. Uma vez que apresentassem suspeitas, eram encaminhados para a primeira sala ao fundo. Ali havia a primeira pileta, uma banheira antiga, pintada com esmalte branco, onde se “interrogavam” os presos. Martin nos conta que algumas vezes os soldados que se mantinham em guarda escutavam chegar o prisioneiro, ouviam a música alta que tocava enquanto os interrogatórios se davam. Se ao final da sessão de tortura não se ouvissem os gemidos de dor do preso, era porque algo havia dado errado. Neste caso, conta Martin, todos compreendiam o que havia se passado. Pergunto, então, o que faziam com os corpos. Martin explica rapidamente sobre uma propriedade de um militar do alto escalão, perto de Asunción, no meio do rio Paraguay. Fala de porcos que selvagens que comiam até as roupas, que roíam até os ossos. Esqueci de perguntar o que faziam com os sapatos.
Stroessner viria a morrer em 2006 em Brasília, sem ser julgado, junto de seus cúmplices, pelas torturas, assassinatos e desaparecimentos ocorridos durante os 35 anos em que esteve no poder. O Partido Colorado, em que era filiado o ex-presidente, segue no poder à força. Vale lembrar que Fernando Lugo (Alianza Patriótica para el Cambio) foi deposto por um golpe constitucional (à paraguaya, como se convencionou chamar no Brasil), em 2012, depois de um processo de impeachment que durou menos de 24 horas. A partir de então, o Partido Colorado reassume o poder, com Horácio Cartes à frente do país.
A luta de Martin é a luta por memória e justiça, para que se reconheçam os horrores da ditadura paraguaya e as marcas que deixou em muitos de seus cidadãos. É o reconhecimento dos milhares de mortos e desaparecidos. É uma luta cotidiana, que pouco a pouco vai sensibilizando estudantes, turistas, paraguayos que relutam em entrar no museu e saem aos prantos, reflexivos. A luta de Martin é para que o passado não seja apagado e para que todos possam saber o que houve durante o governo de Stroessner e está sempre próximo de haver enquanto o poder for um monopólio de poucos.
Texto escrito em Asunción, 30 de dezembro de 2015.
*Marcelo Labes é escritor.