Por Elaine Tavares.
O primeiro originário dessas terras a perceber que os homens brancos e barbudos que chegavam pelo mar, naquele distante 1492, não eram “flor que se cheirasse” foi Hatuey, um jovem cacique da etnia Taíno, que vivia onde hoje está a República Dominicana, lugar onde desembarcou o grupo de Cristóvão Colombo. Bastaram alguns encontros para que ele percebesse que a cobiça e a violência eram tudo o que eles traziam. Foi então que decidiu dar combate aos espanhóis, mesmo em desvantagem no quesito armas. Percebeu aí que sozinho não poderia vencer e decidiu ir remando até a ilha próxima, onde hoje fica Cuba, para avisar aos demais povos da região sobre as atrocidades que o grupo estava cometendo e preparar a resistência. Junto a um baú com ouro e joias, ele falou aos parentes:
“Este é o Deus que os espanhóis adoram. Por isso eles lutam e matam, por isso eles nos perseguem e por isso é que temos de atirá-los ao mar. Nos dizem, esses tiranos, que adoram um deus de paz e igualdade, mas usurpam nossas terras e nos fazem de escravos. Eles falam de uma alma imortal e de recompensas e castigos eternos, mas roubam nossos pertences, seduzem nossas mulheres, violam nossas filhas. Incapazes de nos igualar em valor, esses covardes se cobrem com ferro que nossas armas não podem romper”.
Hatuey liderou muitas batalhas, mas acabou sendo capturado. Sofreu horríveis torturas foi condenado a morrer na fogueira. Contam que um padre, de nome Olmedo, ainda tentou convertê-lo na hora final. E Hatuey encontrou forças para perguntar:
– Os espanhóis também vão para o céu dos cristãos?
– Sim, claro – disse Olmedo.
– Então eu não quero o céu. Quero o inferno. Porque lá não estarão e lá não verei tão cruel gente.
Nesse final do ano de 2015, um pequeno garoto da etnia Kaigang encontrou com Hatuey em alguma terra sem males, bem longe da presença de gente tão cruel. O menino indígena, de nome Vitor Pinto, e com apenas dois anos de idade, foi degolado no colo da mãe, enquanto mamava. Um homem acercou-se, fez um carinho no rosto de Vitor e quando ele ergue os olhinhos para ver quem lhe afagava, recebeu o golpe fatal. Um faca, ou um estilete, ainda não se sabe, lhe rasgou a garganta. A mãe, em choque, correu em busca de ajuda enquanto o homem saiu tranquilo para longe dali.
Na temporada de férias, é bastante comum que famílias indígenas se movam até o litoral para melhor vender seus artesanatos. E foi o que fez a família de Vítor, saindo de Chapecó, no oeste de Santa Catarina, indo para Imbituba, no litoral. Lá, obviamente sem condições de pagar uma hospedagem, eles tiveram de improvisar e encontrar algum lugar razoavelmente seguro para dormir. O melhor espaço foi o da rodoviária, onde havia movimento e, por isso mesmo, segurança. Jamais poderiam supor que alguém, de maneira tão deliberada, pudesse fazer o que foi feito.
Três dias depois do assassinato foram divulgadas as imagens capturadas por algum dessas câmeras de rua e nelas se vê o rapaz se aproximando, normal, como se fosse conversar. Foi tudo muito rápido. A mulher estava sentada no chão, com o filho no colo. Ele chegou, abaixou-se, moveu a mão, primeiro no carinho, depois no golpe, e saiu. Tudo depois é perplexidade e dor.
Um garotinho indígena degolado enquanto se alimentava. Uma cena de arrepiar. A mesma velha cena de mais de 500 anos, repetida e repetida, à exaustão. Desde a chegada dos espanhóis e portugueses às terras de Abya Yala, mais de 40 milhões de indígenas foram exterminados. Chamados primeiro de não humanos, depois de seres de segunda classe, infiéis, inúteis. Não é, portanto, sem razão, que alguém se ache no direito de fazer o que fez esse rapaz em Imbituba. Ato parecido foi feito em Brasília contra Galdino Pataxó, quando alguns rapazes ricos o queimaram enquanto dormia num banco em um abrigo de ônibus.
É que ao longo de todos esses séculos foi sendo construída uma imagem negativa do indígena, justamente para que pudesse ser justificada a invasão e o roubo de suas terras e riquezas. Os índios são vistos como um atrapalho, uma lembrança desconfortável do massacre. Por isso que o melhor acaba sendo confiná-los em alguma “reserva” longe dos olhos das gentes. Mas, se eles decidem sair e dividir a vida no mundo branco, aí a coisa fica feia.
Assim que cada pessoa que siga disseminando essa ideia inventada de que índio é preguiçoso, é feio, é sujo, é ruim, é também cúmplice do assassinato de Vitor. Cada criatura que repete esses absurdos pelas redes sociais, nos encontros de família, na escola, nos bares e nas igrejas, armou a mão que degolou Vítor. E é responsável pela morte não só desse garotinho, mas de centenas de outros indígenas que tombam pelas mãos assassinas do latifúndio, da jagunçagem, do ódio. Esse mesmo ódio que escorre pela redes sociais contra o índio, o negro, as mulheres, os gays.
No mundo capitalista, no qual tudo vira mercadoria, não há espaço para o indígena. E não é só porque ele é uma presença incômoda, lembrança indelével do primeiro crime – a invasão. Mas porque ele é também a recusa histórica desse sistema. Ele não faz da terra uma mercadoria, ele não explora os parentes em fábricas de coisas, nem inventa produtos inúteis para vender aos incautos. O indígena pensa o território como espaço de vida e de espiritualidade. Reproduz suas cerâmicas, seus cestos, colares e bichinhos como resistência cultural e como única possibilidade de sobreviver no mundo que lhe foi imposto. E, se ocupa as ruas, as marquises e as rodoviárias é porque não têm outra escolha.
Então é assim, em Santa Catarina, nesse dia 30 de dezembro, um jovem se deu ao direito de degolar um menino Kaigang. Desde há anos a brava cacica dos Guarani do Morros dos Cavalos vem recebendo ameaças de morte por defender sua terra e sua gente, bem como os povos Xokleng e Kaigang vivem sendo escorraçados de outras praças e outras rodoviárias por autoridades competentes. Isso é coisa diária, sistemática, como também é sistemático o ataque dos meios de comunicação contra os povos originários. Essa máquina ideológica do ódio e da opressão.
Agora, à família do menino Vítor resta a luta pela justiça. Um suspeito já foi preso e fala-se em “distúrbios psicológicos”. Não se tem ainda a informação segura de quem é o assassino e o que o motivou. Mas, ainda que seja alguém “perturbado”, isso não tira a responsabilidade daqueles que diuturnamente destilam ódio e preconceito contra os povos originários.
O “mundo maravilhoso” da mercadoria insiste que não há lugar para o indígena no seu espaço. Mas, o que se vê é o movimento indígena brasileiro e latino-americano crescer a avançar na luta pelos seus direitos e pelos seu território. Isso não vai parar. Caem hoje os mártires, como naquele longínquo 1492 caiu Hatuey. Mas os que ficam não desistem, como não desistiram os Taínos, os Arawakes e todos os que caminhavam com o valente cacique. O pequeno Vítor, que sequer teve tempo de perceber que estava perdendo a vida, lá, na terra dos espíritos, será embalado por outros colos: Guyunusa, Guaicaipuru, Mani, Sepé. Por aqui, vamos garantir a justiça. A grande marcha continua.
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