Enviado por Flávio Santiago via Guest Post para o Portal Geledés.
A disposição de escuta da infância e das crianças exige que nos arrisquemos a ouvir os gestos, as paredes, as brincadeiras, os movimentos, abrindo os ouvidos até mesmo para aquilo de que não ecoa nenhum som. Como destaca Faria (2007), é necessário que deem oportunidade para as crianças serem ouvidas, pois voz elas têm, e como já dito anteriormente, aproveitam-se dela. Portanto, precisamos ouvi-las mesmo quando elas ainda não falam, não andam, não leem e não escrevem, tornando possível reconhecê-las como capazes de estabelecer múltiplas e potentes relações, com um alto e sofisticado grau de comunicação com crianças de mesma ou de idades diferentes e com as pessoas adultas.
É necessário que descolonizemos os “nossos ouvidos” do adultocentrismo permitindo olhar os meninos pequenininhos e as meninas pequenininhas como sujeitos que criam e recriam as relações sociais, bem como resistem a inúmeros enquadramentos normativos estabelecidos para a manutenção das desigualdades sociais.
Ao construirmos uma escuta descolonizadora, podemos perceber as crianças como protagonistas, como produtoras de culturas, como sujeitos que atuam diretamente nas relações sociais, contribuindo para construção do mundo, e estabelecendo conexões diretas entre os diferentes sujeitos, adultos ou não, que as rodeiam. Como apontam Abramowicz e Rodrigues (2014), a abertura para a construção de um movimento descolonizador possibilita a percepção de constituições sociais/individuais de formas singulares de existências, coletivas ou não.
É importante destacar que não existe algo mágico, místico nas culturas infantis, as crianças não estão em um mundo descolado do universo adulto. As produções infantis não são independentes das culturas adultas, das relações de poder, das opressões e desigualdades presentes na sociedade. Neste sentido, elementos como o racismo, as divisões de classe, a desigualdades de gênero, as normatizações da sexualidade, as hierarquias etárias, também podem estar presentes nas inúmeras relações vivenciadas pelas crianças.
Um exemplo desse processo é a existência de pedagogias racistas que mutilam as possibilidades de existência, construindo vidas encarceradas dentro de uma sobrevivência pautada em um padrão eurocêntrico. Tal processo é estabelecido com base no contexto histórico escravocrata brasileiro, no qual a população negra esteve sempre rechaçada à subalternização social e impelida a apagar suas memórias culturais.
Nesse processo são criados estereótipos do que é ser um menino negro ou menina negra, criando distorções que nascem de simplificações de características individuais, e ao mesmo tempo eleva um objeto de desejo – padrão de indivíduo e sociedade – contido em uma normatividade prescrita (BHABHA, 2007). Os estereótipos, enquanto atributos de qualificação são construídos por meio da valorização de um padrão (de uma forma de construir e perceber o mundo), desqualificando aqueles que se distanciam do modelo, ou possam vir a romper a ordem hegemônica da homogeneização.
Em oposição à tendência de considerar o racismo como “algo que tem a ver com a presença de pessoas negras”, Brah (2006) salienta que tanto as pessoas negras como as não negras experimentam seu gênero, classe e sexualidade através da raça. A racialização da subjetividade branca não é, muitas vezes, manifestamente clara para os grupos brancos, porque branco é significante de dominância, mas isso não torna o processo de racialização menos significativo.
Contrapondo-se ao racismo, as crianças pequenininhas resistem chorando, brigando, desestabilizando a ordem, recriando outros modos de existir, procurando fugir das amarras que as colocam em uma condição social de desigualdade. Na pesquisa desenvolvida por Santiago (2014), podemos observar que as crianças pequenininhas negras percebem o racismo presente nas posturas pedagógicas adotadas pela creche e deixam explícito, por meio de diferentes linguagens, a não aceitação dos enquadramentos que as fixam em posições subalternas na sociedade. A seguir, um dos fragmentos de uma entrevista concedida por uma docente, explicita essa afirmação:
As crianças percebem, percebem, percebem porque quando tá agradando uma criança que é mais lindinho, aquele que é largado de lado, ele fica ali em volta, sabe aquele olho de cachorrinho pedinte? Judiação, carente, aquela coisa de carência? E eu falo, Abbas vem aqui que vou te dar um abraço, a criança vem e abraça, sabe com aquela vontade. Ele sente que tem mais ou que é a maioria, graças a Deus ali não é a maioria, onde é assim, nós somos onze, cinco fazem assim, os demais não, a maioria ali trata de forma igual, tem carinho de forma igual, o zelo elas têm de forma igual, mas na hora do carinho não! Na hora de paparicar, bajular não… E as crianças percebem porque elas ficam com aquela carinha ali triste… tanto nas vezes que elas aprontam, na hora de morder, de empurrar é uma forma deles chamarem a atenção… tanto que hoje um menino negro deixou ser mordido duas vezes, a gente foi lá e ficou cuidando, cuidando… esse é pretinho… aí todo mundo em volta… aí todo mundo cuidando e chamando a atenção do outro que é paparicado… aí eu pensei como é que ele deixou, ele é esperto, inteligente, eu acho que ele fez isso para ter atenção. Lilian (negra) – entrevista realizada no segundo semestre de 2012 – (grifos nossos).
Como podemos observar na fala da docente, o menino negro, ao deixar ser mordido para conseguir um afeto, revela a crueldade impregnada nos processos de racialização, explicitando que ele também deseja ter carinho, atenção, ter uma igualdade de tratamento em relação às outras crianças. Por meio da mordida a criança demonstra a violência que marca seu corpo, criando um movimento que possibilita ser vista, mesmo que para isto seja necessário promover ações que à primeira vista possam aparentar estranhas ou inadequadas.
Um fato importante a ser destacado nesta ação é que a docente negra percebe o que o menino negro quer expressar. Em alguma medida, ela está alerta às linguagens infantis ligadas à insatisfação e tenta, de algum modo, proporcionar um confortar frente ao desprazer que as crianças negras sofrem quando são subjetivadas pela lógica racista.
Aqui reside uma das chaves fundamentais para a construção de uma educação antirracista, pois somente através da ruptura do “pacto colonial adultocêntrico” e da ampliação do olhar para as linguagens infantis é que será possível criar elementos que possibilitem destruir as amarras racistas presentes no cotidiano das creches.
O processo de colonização adultocêntrico, todavia, tenta impedir que percebamos as insatisfações, resistências e transgressões infantis frente à racialização. Muitas vezes acreditamos que um choro possa somente expressar a vontade de dormir de um menino pequenininho ou uma menina pequenininha, ou mesmo uma pequena rebeldia desnecessária, ao invés de representar uma insatisfação frente a uma ação racista que a toca. O adultocentrismo não permite olhar e ouvir o que as crianças pequenininhas querem nos transmitir, deixando-nos amarrados em padrões de linguagens e de comportamentos que muitas vezes não correspondem à “intempestividade” da própria infância.
As crianças pequenininhas, em decorrência deste processo, possuem sobre si um olhar colonizador que destitui a característica humana de produção de cultura. O primeiro golpe desta forma de colonialismo é a mutilação das linguagens infantis, as quais devem ser esquecidas em prol da unificação e sustentação da linguagem oral como único meio de expressão com o mundo.
Para romper com este processo, sugerimos que pensemos em construções de pedagogias descolonizadoras, com “escutas e olhares invertidos”, os quais nos irão ajudar a compreender as linguagens infantis e, também, problematizar as concepções pedagógicas para que não ocorra uma reprodução das desigualdades de classe, gênero, raça e sexualidade. Contudo, é necessário ressaltar, como afirma Faria e Finco (2011), este processo só ocorre quando olhamos:
(…) de ponta-cabeça e escrevemos ao contrário, quando procuramos ouvir e registrar as vozes de meninas e meninos, mesmo as/os pequenas/os, e compreendê-los como sujeitos que questionam os valores do mundo adulto, e que constroem relações a partir de seus próprios interesses, desejos, valores e regras (p.6).
Paralelamente a este processo, é necessário para a construção de uma pedagogia descolonizadoras da infância, que retomemos a gênese histórica da edificação das desigualdades e “estereotipização” das diferenças para, assim, podermos desenvolver condições materiais e ideológicas de superação destas. Esse processo é um movimento de desconstrução cont ínuo de verdades impostas como únicas e de reinvenção de si e do mundo, de modo a estabelecer meios de relações com os sujeitos, e de ser e viver em sociedade.
1 Doutorando do programa de pós-graduação em Educação da Unicamp, membro do grupo Gepedisc-Linha Culturas Infantis e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
2 Essa designação foi inicialmente utilizada por Patrícia Dias Prado (1998) que traduziu a palavra italiana “picolissimi”, ou os “muito pequenos”, e refere-se às crianças na idade de 0 a 3 anos completos. O objetivo principal dessa denominação, segundo Prado (1998), resulta da necessidade emergente de se produzir novos conhecimentos relativos dentro das ciências sociais sobre a criança pequena brasileira, tanto mais, sobre as muito pequenas, que não conhecemos, senão pela Medicina e pela Psicologia.
3 O adultocentrismo é um dos colonialismos mais naturalizados pela sociedade contemporânea, esta percepção olha para a infância como procurando o universo adulto; o adulto que a criança será. Como destaca Rosemberg (1976, p. 17-18) “a biologização e naturalização da criança e do bebê, com os padrões adultos e de maturidade permeando a compreensão do desenvolvimento, retiram da infância a sua historicidade e seu potencial transformador”.
REFERÊNCIA:
ABRAMOWICZ, Anete; RODRIGUES, Tatiane C. Descolonizando as pesquisas com crianças e três obstáculos. Educação e Sociedade. Campinas, v. 35, n. 127, p. 461-474, abr.- jun. 2014.
BHABHA, Home. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
BRAH, Avat. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu. Campinas, 2006, v. 26, p. 329-376.
FARIA, Ana. L. G. de. Para uma pedagogia da infância. Pátio: educação infantil. Porto Alegre: Artmed, out/2007, v. 5, n. 14, p. 6-9.
FINCO, Daniela; FARIA, Ana. L. G. Creches e pré-escolas em busca de pedagogias descolonizadoras que afirmem as diferenças. In: ABRAMOWICZ, Anete e VANDRENBROECK, Michel (Orgs.). Educação Infantil e diferença. 1ª ed. Campinas: Papirus, 2013, v. 1, p. 14-32.
PRADO, P. D. Educação e cultura infantil em creche: um estudo sobre as brincadeiras de crianças pequenininhas em um Cemei de Campinas/SP. 1998. 139 f. Dissertação. Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. 1998. ROSEMBERG, Fúlvia. B. M. Educação para quem? Ciência e Cultura (SBPC). 1976, v. 28, n. 12, p. 66-71.
______. Educação infantil e relações raciais: a tensão entre igualdade e diversidade. Cad. Pesqui. 2014, v. 44, n. 153, p. 742-759.
SANTIAGO, Flávio. Meu cabelo é assim… igualzinho o da bruxa, todo armado! Hierarquização e racialização das crianças pequenininhas negras na educação infantil. 2014, 147 f. Dissertação. Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.
—
Fonte: Geledés.