Por André Monteiro e Lia Giraldo da Silva Augusto.
A microcefalia estoura como uma grande epidemia ao apagar das luzes de 2015. Uma tragédia sanitária de proporções ainda inimagináveis. Os casos em avaliação são, majoritariamente, de mães que vivem em áreas pobres, com condições precárias de urbanização e de acesso à água. Atinge aos pobres, já vulnerabilizados historicamente pela abissal desigualdade social brasileira.
Quais as ações de maior impacto para controle do Aedes aegypti tomadas pelas autoridades federal e estaduais? Soldados em guerra contra o Aedes. Com armas químicas. Na saúde pública, essas armas químicas remontam à II Guerra Mundial, quando os alemães e americanos, estruturaram seu parque químico e no pós-guerra precisavam dar vazão à essa capacidade instalada. A partir daí o controle dos vetores de endemias passa a ser feito, majoritariamente, com inseticidas. Nos últimos quase trinta anos o controle químico do Aedes tem sido a principal arma da saúde pública.
Terminologias de guerra, armas de guerra. Estamos em guerra? Qual o nosso inimigo mesmo? O Aedes? Ao centrar o discurso no mosquito, desloca-se o foco e se elege um inimigo. Essa é uma estratégia de comunicação. Pode ser eficaz para mobilizar agentes públicos e sociais por um tempo curto. Mas há décadas tem sido ineficaz. É necessário reconstruir a narrativa e reposicionar o objeto da ação, que deve ser os criadouros e não as larvas ou mosquitos adultos.
O controle químico do Aedes aegypti teve nos anos 1990, uma malfadada Campanha de Erradicação, conduzida pelo Ministério da Saúde, que sabemos onde deu. Esta estratégia tem sido inócua, perdulária com recursos públicos e envenenando a população. Parece que não sabem fazer outra coisa!
A eliminação dos criadouros deve ser realizada com o saneamento ambiental, sobretudo com o abastecimento de água universal e regular, e coleta de resíduos sólidos, com drenagem urbana e com manutenção desses sistemas.
As questões técnico-políticas devem ser pautadas por uma ideia de humanidade, pois enfrentamos um problema em que o andar de baixo é mais afetado. Até quando podemos suportar o infortúnio que grupos sociais carregam das mazelas de nosso desenvolvimento? Será necessário que a classe média e alta sejam atingidas pela microcefalia?
Pernambuco e Recife têm o maior número de casos de microcefalia do Brasil e contam com problemas de abastecimento de água graves. A crise hídrica é um pano de fundo que não pode dissipar as questões da gestão dos serviços de abastecimento de água. Temos um índice de perdas de faturamento de 56%. Ou seja, perdemos 56 litros a cada 100 litros tratados. No Recife é próximo de 60%. Com isso os racionamentos persistem. E com a crise hídrica, muitas cidades estão com sistemas de abastecimento em colapso, o que provocou altos índices de infestação predial do Aedes no Sertão.
As áreas que ficam mais dias sem água são as de populações mais pobres, que não possuem cisternas nem caixa d’água elevada protegidas devidamente. E aqui outro viés social: quem é mais pobre, recebe menos água, pois os rodízios favorecem as classes média e alta. Armazenam, em geral, água em baldes, latas, tonéis, tanques sem vedação adequada. Cerca de 90% dos criadouros do Aedes são reservatórios domiciliares de água, decorrentes desse quadro crítico de rodízio. Uma tragédia brasileira anunciada.
E agora, decidem colocar larvicida na água de beber das pessoas de forma indiferenciada (crianças, gestantes, idosos, doentes crônicos), tirando-lhes o direito à água potável, e impondo-lhes um veneno, que nos artrópodes causa mal formação. Portanto tem efeito teratogênico.
Manter as ações centradas no mosquito, conduzir uma narrativa de guerra com uso de arma química é não resolver o problema. É dar uma falsa ideia de solução. A história nos aponta os erros. O pior é que esses gastos poderiam ter sido revertidos em saneamento. Ao se adicionar veneno em água potável, se está despotabilizando essa água, e o pior é que os padrões de potabilidade da água para consumo humano são definidos pelo Ministério da Saúde.
Sugerimos como estratégias de curto prazo: I) centrar o foco da ação na eliminação do criadouro. Não confundir criadouro com reservatório de água para abastecimento, este deve ser limpo e protegido; II) cessar o uso de larvicida nos reservatórios domiciliares, como ação precaucionária, evitando efeitos adversos do veneno na saúde humana (os efeitos teratogênicos de alguns larvicidas devem ser valorizados inclusive na investigação de microcefalia ou outras malformações congênitas); III) não utilizar o fumacê para controle dos mosquitos adultos, pois alguns químicos utilizados tem efeito potencialmente cancerígeno; IV) priorizar investimentos na redução de perdas de faturamento nos municípios mais afetados; V) aplicar o princípio da equidade na definição do rodízio, destinando mais água para as áreas mais carentes; VI) reorientação dos serviços de limpeza urbana e coleta de resíduos sólidos para áreas mais afetadas. E, como estratégias de longo prazo, propomos redesenhar o modelo de políticas urbanas, adotando o saneamento integrado à urbanização de áreas de maior risco.
André Monteiro
Engenheiro de Saúde Pública, Pesquisador Fiocruz/PE
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Lia Giraldo da Silva Augusto
Médica Sanitarista, Professora da UPE, Pesquisadora do Programa de Pós Graduação em Saúde Pública da Fiocruz/PE
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